Sem dúvida, à arte cabe a nobre tarefa no processo de reumanização de nossa sociedade, tão deteriorada eticamente neste primeira década do terceiro milênio.
As contradições que assolam a vida do brasileiro nesses tempos de globalização chegam muitas vezes a ser risíveis de tão desprositadas. Por exemplo: a divulgação feita por algumas empresas na região do ABC paulista, tempos atrás, alertando que só contratariam funcionários com o segundo grau completo, gerou uma dupla conseqüência: de um lado, o estímulo ao aumento da competência e da tão falada competitividade; de outro, o anúncio de uma tragédia de proporções inimagináveis para a grande maioria da população semi-analfabeta, caso não haja uma intervenção decidida de nossos famigerados setores dirigentes.
Esta recente passagem do milênio, carregada de efeitos simbólicos, representa sem dúvida uma época de mudanças profundas em todas as esferas da vida humana. Com a derrocada do comunismo, das ideologias e das utopias igualitárias, a paixão inebriante pelo lucro, que desconsidera quaisquer parâmetros éticos e quaisquer sentimentos humanitários, passou a ser o impulso orientador do comportamento do homem urbano moderno. A “economização” de todas as áreas da vida, baseada num suposto direito à liberdade absoluta de exploração inescrupulosa do próximo, leva inevitavelmente à permissividade e à patifaria generalizada. Lamentavelmente, esta é a visão de alguns jovens sociólogos quanto ao futuro da humanidade, em virtude dos ventos neoliberais que sopram a partir do hemisfério norte. Será que isso não passa de uma visão escatológica produzida por alguns intelectuais primeiro-mundistas entediados com a saturação do conforto e do consumo descomedido? Ou seria apenas um “nhenhenhém” pessimista e inconseqüente?
Ruína e humilhação
De qualquer modo, sabemos que este momento de transformação contém potencialmente todas as possibilidades: da degeneração geral à descoberta de novos caminhos; da barbárie pós-moderna, retratada nos filmes futuristas e nas ações internacionais de paz norte-americanas, à reorganização da sociedade com base na justiça e na solidariedade. Ou segundo a sensibilidade e a interpretação totalizante de Fernando Pessoa:
Deus ao mar o perigo e o abismo deu
Mas nele é que espelhou o céu.
A rápida readaptação das estruturas produtivas, conforme as novas exigências do mercado e, sobretudo, da concorrência, mostram já uma de suas facetas que parece irreversível: a diminuição acelerada do número de empregos, fruto da automatização, a par do aumento constante da população, particularmente nas camadas mais carentes. Como o mundo é irônico! Há algumas décadas, a abolição do emprego significava a libertação, hoje significa a ruína e a humilhação! No Brasil, há o agravante da falta de uma formação profissional compatível com a vida moderna e a existência – ainda que parca – de métodos de ensino obsoletos e muitas vezes absolutamente inúteis. Por conseguinte, a massa de excluídos cresce assustadoramente a nossa volta e as classes dirigentes limitam-se quase sempre a ridicularizá-la e a exigir ironicamente que se comporte de maneira imaculadamente íntegra e pacífica. Por outro lado, os nossos economistas oficiais defensores do status quo e dos atuais índices de distribuição de renda ambicionam conseguir algo insólito e sui generis nestes nossos tempos em que se recebe salário a prazo: compatibilizar 80 milhões de miseráveis com a inflação de um dígito e o crescimento do PIB. Perversão ou cegueira? Frieza mórbida ou obsessão contábil?
Saídas para um futuro mais digno
Enquanto isso, a televisão distrai diariamente milhões de pessoas, afastando-as, com as melhores das intenções, dos problemas da vida e da realidade circundante, colocando-as na condição de Tântalos destinados a ver ininterruptamente o que a bondosa sociedade de consumo produz de melhor. Nossa fábrica de sonhos estimula os meninos a se imaginarem ronaldinhos big-brothers e as meninas a se verem como futuras louras protuberantes mostrando suas libidinosas facetas. Os meios de comunicação, por sua vez, enfatizam a todo momento, como disse certa ocasião Hermann Hesse, “o otimismo despreocupado, a cômoda recusa a todo problema profundo, a renúncia covarde e orgulhosa a todo questionamento realmente importante, a fruição pura e simples dos prazeres momentâneos”, através de imagens nas quais sempre nos vemos rodeados por loiras esbeltas, automóveis velozes e cartões de crédito que nos fazem sentir donos do mundo. Um otimismo americanizado, obviamente tolo, hollywoodianamente feliz, intoxicando a todos e fazendo com que ninguém se atenha a qualquer coisa realmente séria visando tornar-se um dos principais alimentos espirituais da grande massa dos “sem-tudo”, formada em sua maioria por seres humanos supérfluos e desnecessários nessa nossa nova ordem econômica. Mesmo considerando-se que nada se pode fazer contra o “progresso”, será que teremos de nos resignar a tudo isso?
O ideal seria investirmos nossos maiores esforços em nossas maiores carências. Por mais paradoxal que pareça, nossos melhores produtos continuam sendo nossa alegria, nossa criatividade e nossa disponibilidade para buscarmos jeitos e caminhos que burlem a inexorabilidade do avanço histórico. Por que não estimular em um número cada vez maior de pessoas a prática da atividade artística, não só pelas conseqüências econômicas positivas e pela geração de empregos, mas sobretudo pelos efeitos psicológicos e sociais benéficos e duradouros? Da formação de orquestras com menores carentes à criação de centros culturais na periferia; das oficinas de curta duração à monitoração de organizações já existentes; há um imenso leque de possibilidades à disposição daqueles que desejam criar um futuro mais digno e mais salutar para os habitantes deste país continente. Em suma, a aprendizagem artística pode dar um sentido mais amplo à existência dessas novas gerações confrontadas cotidianamente com a indiferença e o vazio, além de lhes possibilitar meios de expressão social e fazer delas pessoas mais sensíveis e probas. Afinal, ética e estética sempre caminharam juntas e o amante da arte, por natureza, nega-se a ser fraudulento e a usar o seu talento e as suas habilidades para disseminar atitudes desumanas e incompatíveis com a criação do belo.
Sem dúvida, à arte cabe esta nobre tarefa no processo de reumanização de nossa sociedade, tão deteriorada eticamente, neste primeira década do terceiro milênio. Que nossos dirigentes enxerguem o suficiente para lhe assegurarem este importante papel no futuro, que já bate à nossa porta! Pois, enquanto os políticos e os administradores públicos são responsáveis pela organização social, ao artista – segundo Hermann Hesse – “cumpre descobrir e mostrar as possibilidades da beleza, do amor e da paz.” Esta aí, uma ótima parceria.
Erlon José Paschoal
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