A revista Carta Capital desta semana traz um balanço da crise da Lei Rouanet, em matéria assinada por Ana Paula Sousa. Nela, Juca Ferreira escolhe novo vilão para as mazelas da Lei: a Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo, que utiliza o mecanismo para bancar projetos governamentais. O tiro sai novamente pela culatra, pois a prática foi iniciada pelo próprio MinC, que faz uso próprio do dinheiro das estatais, como já vem apontando Cultura e Mercado em diversos artigos e comentários.  Acompanhe a íntegra da matéria, que confirma haver um projeto de inserção de análise de mérito no julgamento dos projetos:

Quem manda no dinheiro?
MinC quer mudar a Lei Rouanet. Pior para São Paulo e os megaprodutores

Ana Paula Sousa

Em 2007, a Lei Rouanet, principal mecanismo de incentivo à cultura do País, movimentou 1 bilhão de reais. Para a cultura, é uma bolada. Basta dizer que o ministério de Gilberto Gil conta, anualmente, com menos de 200 milhões de reais para aplicar em projetos considerados importantes. Não à toa, artistas e produtores ficam em polvorosa sempre que entram em fervura as alterações no modelo – que permite às empresas a aplicação de até 4% do imposto devido em projetos. Estamos em um desses momentos.

Ensaiada desde 2003, primeiro ano do governo Lula, a mudança parece, de novo, estar à porta do Ministério da Cultura (MinC), pronta para aterrissar no Congresso, em forma de projeto de lei. Como tudo o que fica entre as quatro paredes dos gabinetes, o texto tem alimentado fofocas e alarmes vários. Em entrevista à CartaCapital, o secretário-executivo do MinC, Juca Ferreira, tenta desfazer alguns dos temores e, ao mesmo tempo, evidencia cabos-de-guerra até aqui disfarçados.

Cada vez mais ministro, dado o distanciamento de Gil, Ferreira parece especialmente disposto a brigar pelas mudanças. Mas, quando perguntado sobre o prazo para o anúncio do projeto, apóia os dois braços na poltrona do agitado gabinete, em Brasília, e quase ruboriza: “Já tenho vergonha de falar de prazos. Mas, qual a expectativa? Um ou dois meses”.

A partir de agora, nós difíceis de desatar começarão a ser cutucados. Um deles está em São Paulo. De acordo com o MinC, o estado captou, em 2007, cerca de 40 milhões de reais pela Lei Rouanet para atividades regulares. “A meu ver, São Paulo está trabalhando na brecha da lei. Estou consultando o governo sobre o assunto, mas, por ora, cortamos parte da captação da TV Cultura.”

Quem capta são, na verdade, as organizações sociais (OS) que administram entidades como a Orquestra Sinfônica (Osesp), a Pinacoteca e o Projeto Guri. As OS têm um contrato de gestão com o governo e, como qualquer entidade privada, teriam o direito de procurar empresas interessadas em patrocinar projetos por meio da renúncia fiscal.

“Parece que São Paulo se preparou para isso. Até acho que é possível pensar na integração do mecanismo da Lei Rouanet com as instâncias municipais e estaduais, mas não podemos deixar que um Estado, por coincidência o mais rico, drene os recursos de imposto federal”, argumenta Ferreira.

“Ah! Imposto federal? Mas recolhido, na maior parte, por empresas de São Paulo. O incentivo fiscal não pertence ao governo federal, mas às empresas”, rebate João Sayad, secretário de Cultura do Estado administrado por José Serra. Tanto Sayad quanto Ferreira, após observações enfáticas, ponderam ser amigos e procuram jogar água na fogueira que eles próprios acenderam.

“A grande rivalidade é sempre com os que estão mais próximos. A obsessão do Figueiredo era o Geisel, e não Montoro ou Tancredo”, graceja Sayad. Sobre os 11 milhões de reais captados, em 2007, pela Fundação Padre Anchieta (mantenedora da TV Cultura) ou os 8 milhões da Osesp, insiste que o governo do Estado não tem nada a ver com isso. “São fundações de direito privado. Se a Natura decide pôr dinheiro na Osesp ou o Bradesco na Pinacoteca por considerá-los modelos de excelência, o que há de errado? Não vejo sentido nessa discussão”, amaina.

Sayad, ministro do Planejamento de Sarney, secretário da Fazenda de Franco Montoro e de Marta Suplicy e vice-presidente de Finanças e Administração do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID), volta ao ninho numérico para refletir sobre a discussão em curso.

“Quando se quer brigar com os bancos, deve-se brigar com a política de juros, que nos faz gastar 50 bilhões de dólares por ano, e não com os institutos culturais mantidos por eles”, diz. “A estratégia deveria ser muito mais a de aumentar o volume dos recursos da cultura do que a de redistribuí-los. Eu já estive no outro lugar. Sei como se joga no Planejamento ou na Fazenda. A cultura tem de aprender a jogar esse jogo político e brigar por recursos. Na cultura, somos maus políticos. Deveríamos aprender a ser mineiros.”

Baiano, Ferreira não tem nada do jeito mineiro. Mas, à sua maneira enfática, está fazendo política. Na segunda-feira 2, reuniu-se com o Ministério do Planejamento, pois está convencido de que, sem a melhoria no orçamento no ministério, não há mudança na lei que se efetive.

“Só é possível fazer uma mudança significativa com a cooperação do governo. O mecanismo de renúncia não é adequado para financiar a política pública. Nem sempre se pode contar com o empresário que, legitimamente, quer retorno de imagem. Como mobilizá-lo para investir no parque arqueológico de São Raimundo Nonato, no interior do Piauí?”, pergunta.

Mas é ao pote da Lei Rouanet – a exemplo do que ocorre em São Paulo – que o governo federal corre para viabilizar muitos de seus projetos, do DOC-TV (produção de documentários exibidos em tevês públicas) ao Pixinguinha, caravana musical realizada pela Funarte. Pela falta de orçamento, o MinC ficou, ele próprio, refém do mecanismo criado, em 1991, para tornar possíveis iniciativas da sociedade. Hoje, calcula-se que os vários governos abocanhem ao menos metade dos recursos da lei.

Consciente de que a dependência excessiva fragiliza o ministério, Ferreira, ao falar do novo projeto, bate na tecla orçamentária. “Ampliamos o conceito de cultura e passamos a tratá-la como política pública. O governo, pela primeira vez, incluiu a cultura na agenda social. Mas, se é política pública, precisa de dinheiro orçamentário”, diz, como se mandasse recado. “Não podemos ficar caudatários do apoio empresarial. Se o governo assimilou o discurso de que se trata de uma necessidade básica, que não é cereja do bolo, vai manifestar sua responsabilidade na determinação do orçamento.”

Pela projeção do MinC, a necessidade, “sem delirar”, seria de cerca de 3,5 bilhões de reais. Em 2003, a pasta abocanhava 0,2% do orçamento da União (237 milhões de reais). Saltou para 0,6% em 2007 (pouco mais de 600 milhões de reais) e caiu para 0,5% de novo. As deficiências na estrutura do MinC têm feito, inclusive, com que os projetos se acumulem em pilhas e os telefones estejam sempre ocupados – algo que aumenta a insegurança do setor em relação às possíveis novidades.

“Os governos gostam que o financiamento seja feito com renúncia, que é dinheiro público, porque não aparece como despesa no cálculo do superávit. Mas não podemos submeter o desenvolvimento da cultura a essa hipocrisia contábil”, afirma Ferreira. O MinC propôs ao Planejamento e à Fazenda um orçamento de 1 bilhão de reais. Por que conseguiriam? “Por que não?”, retruca. “Não saímos de 200 para 600? Se fôssemos sensatos não teríamos feito o que fizemos aqui. Precisamos de um pouco de ousadia.”

Faz também parte da ousadia tentar mexer com os grandes beneficiários da Lei Rouanet. “Há muita resistência a mudanças. Sabemos que 3% dos proponentes captam 50% dos recursos, o que é um absurdo”, diz Celso Frateschi, presidente da Funarte, na mira dos produtores por ter 4 mil projetos parados em suas gavetas. Ele admite os problemas na instituição, mas observa: “Alguns produtores mais ideológicos têm tentado desqualificar o debate. Ninguém está querendo destruir nada.”

De fato, pelas informações obtidas por CartaCapital, o projeto não pretende, como já se disse, acabar com o mecenato. As alterações se concentram em pontos específicos. Mas nem por isso fáceis. A principal mudança deve dizer respeito à avaliação dos projetos que pleiteiam o incentivo.

“Foi o próprio (Sergio Paulo) Rouanet (criador da lei) quem disse: ‘Não acreditem que dinheiro público pode ser gasto sem avaliação, isso não faz parte do espírito da lei’. O discernimento do gestor é insubstituível”, aposta Ferreira. “Não é papel do Estado brasileiro financiar espetáculos da Broadway. Nada contra, mas não temos dinheiro sobrando.” O caso de mau uso tornado célebre foi o do Cirque du Soleil, que captou 9,4 milhões de reais e cobrou ingressos de até 400 reais.

A avaliação do que merece ou não o benefício estaria apoiada num tripé: características objetivas (repercussão do projeto, quantas pessoas pretende atingir), relação com as políticas públicas estabelecidas pelo recém-lançado Plano Nacional de Cultura (PNC) e coerência interna.

Também caberia ao MinC decidir a que índice de abatimento cada projeto teria direito. Como em vários setores o abatimento é de 100%, a lei não criou no empresariado brasileiro a cultura do investimento com dinheiro próprio. Hoje, a variação se dá de acordo com as áreas de atuação. “Nossa idéia é que o índice seja definido a partir de uma grade de critérios. Não há nada de subjetivo nisso”, ressalta o secretário-executivo do MinC.

Eduardo Saron, superintendente de atividades culturais do Itaú Cultural, o maior captador da Lei Rouanet, concorda com o princípio. A instituição não usa o artigo que permite dedução integral do imposto. Isso significa, trocando em miúdos, que, para cada 1 real incentivado, o banco coloca 2 reais na atividade. “Por que música popular tem direito a 30% de abatimento e música instrumental a 100%? Quer dizer, se o artista toca só violão entra num artigo e, se cantar, muda de categoria?”

O que, tecnicamente, se chama “julgamento de mérito” é visto, por alguns produtores, como intervenção do governo. Na avaliação de Paulo Pélico, integrante da diretoria da Associação de Produtores de Espetáculos Teatrais do Estado de São Paulo (Apetesp), a centralização das decisões é prejudicial a todos. “É perigoso e não funciona. Por mais que esteja baseada em conceitos preestabelecidos, o mérito pode criar um instrumento de alinhamento político. E cai na subjetividade.”

Quem está distante dos grandes centros, por sua vez, sabe que, sem intermediação do governo, dificilmente conseguiria tocar no butim do incentivo. A companhia mineira Candongas, premiada no último concurso de artes cênicas da Funarte, estava desde 2003 tentando montar As Grandes Lonas. “Se não fosse o edital, não conseguiríamos recursos. Todo mundo sabe que a Lei Rouanet é concentradora de renda”, diz Gustavo Bartolozzi, um dos criadores do grupo.

Outra mudança diz respeito à possível criação de um teto de captação e de um número-limite de projetos por produtor. Com isso, o governo tentaria corrigir o conhecido problema de concentração territorial no Sul e no Sudeste e a disparidade entre os artistas ditos consagrados e os demais. “Melhor do que limitar seria exigir contrapartidas, exigir apresentações gratuitas ou mais baratas”, opina Saron. “A lei deveria caminhar na direção de estimular mais empresas a investir e não segurar quem investe.”

Ferreira assegura, porém, que a idéia não é minar a lei. Ele acentua que as mudanças se darão no contexto de uma “política integrada de cultura”. Além do mecanismo de renúncia, haveria os recursos orçamentários e o Fundo Nacional de Cultura, hoje vazio. “Pretendemos criar fundos setoriais. Os editores de livros já se comprometeram a dar 1% do lucro, o que somaria cerca de 70 milhões de reais por ano.” Tudo isso estaria integrado ao Plano Nacional de Cultura, que reúne as diretrizes básicas do governo, fruto de anos de seminários e audiências por todo o País.

Mas, se esta não é a primeira vez em que se fala disso, por que agora, no meio do segundo mandato do presidente Lula, o plano sairia do papel? “Eu tinha a expectativa de realizar antes, mas foi a realidade que nos impôs esse tempo. Não podia ser um gesto unilateral do ministério, com a classe desconfiada e a sociedade sem compreender plenamente. Foi bom ter a experiência maturada.”

O ministro Gilberto Gil, à distância, também assegura que a alteração na lei não será uma meta não-cumprida. “Espero que até o fim do ano a gente tenha mudança. Estamos programando para agosto o lançamento da confecção de uma nova minuta, que vai ser feita, como o Plano Nacional de Cultura, a muitas mãos”, diz, tentando acalmar os ânimos dos que temem que o MinC tire da cartola um projeto com cara de bicho-papão.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

2Comentários

  • Maria Alice Gouveia, 10 de junho de 2008 @ 10:03 Reply

    Bem amigos …
    Acho que o diagnóstico sobre a Lei Rouanet já está feito, não é? Parece que a maioria do pessoal do Minc é a favor da manutenção da lei com alterações aqui e ali. Agora, que tal se o pessoal parasse de falar e começasse a fazer?

  • Conrado Lima, 12 de junho de 2008 @ 10:40 Reply

    A disparidade entre música popular e erudita, a porcentagem de IR que pode ser usada e a que pode ser abatida no caso da música popular, por exemplo, deixam claros que a lei quer incentivar mecenas, patrocinadores ou doadores de pessoa física, que gozam de abatimento de 60% e 80%, respectivamente, para projetos enquadrados no artigo 26. Mas, na prática, o artista está completamente refém das grandes empresas e de suas políticas culturais viciadas. Os artistas sabem bem disso. O caso é sim de incentivar as empresas a patrocinarem, mas mirar a lei no sentido de melhorar a condição para as pequenas empresas o fazerem também. Caso contrário, teremos cada vez mais espetáculos de Broadway e menos a nossa arte tropical e criadora.

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