Atualmente, mais do que qualquer outra cidade europeia, Berlim tem sobre si os holofotes da cultura. Desde a queda do muro em 1989, a capital alemã vem recebendo milhares de artistas a cada ano atraídos não só pelo interesse histórico e cultural intrínsecos à cidade, mas pela excelente relação entre baixo custo — principalmente dos aluguéis, dado à reocupação de bairros abandonados — e boa qualidade de vida.
O contingente formado por criadores das mais diversas áreas reúne hoje algo em torno de oitenta mil pessoas, entre eles vinte mil artistas*. O impacto dessa presença faz com que a cultura seja responsável por 20%** do produto interno bruto da cidade. Com instituições artísticas de peso — a exemplo da Haus der Kulturen der Welt e dos museus Pergamon, Hamburguer Bahnhof e Martin-Gropius-Bau — somadas às cerca de 430* galerias comerciais e aos incontáveis espaços e iniciativas independentes voltados às mais variadas expressões da música, da literatura, das artes digitais, visuais e cênicas que surgem diariamente, Berlim consolidou sua vocação como pólo mundial de cultura e, sobretudo, da arte contemporânea .
Ao longo dos últimos anos, a prefeitura de Berlim soube se valer da vocação cultural como ativo social, econômico e político. Incentivou a vinda dos artistas a fim de sustentar essa vocação. Propagandeou a cidade com o rótulo da arte e da cultura sabendo dos benefícios que colheria com o turismo. Promoveu a revitalização de bairros ocupados por artistas e galerias, causando uma proposital valorização imobiliária e, como consequência, aquecimento das economias locais e maior arrecadação de impostos. Manteve a verba destinada às instituições de porte que geram visibilidade internacional para a cidade. No momento das eleições, entrou com projetos estratégicos para angariar votos e apoio da classe artística. Ou seja, cultura não mais tratada como vetor secundário, mas sim como eixo fundamental de atuação política. É justamente aí que aparece o problema.
Há cerca de dois meses, o instituto KW (Kunst-Werke), sediado no bairro de Mitte e responsável pela Bienal de arte contemporânea de Berlim, lançou um documento intitulado P/ACT for Art. Materializado em uma edição de jornal impresso e on-line, o documento propõe a ideia de um acordo entre artistas, governo e instituições com o objetivo de redefinir as relações entre esses agentes e garantir melhores condições para a cena artística. Artur Zmiejewski, encabeçador da iniciativa e curador da 7ª Bienal de Berlim, promovida pelo KW, encomendou artigos de 49 produtores culturais residentes na capital alemã que, além de comentarem a ideia do acordo, manifestaram suas visões e reinvidicacões quanto às políticas culturais empreendidas pelo governo e pelas instituições públicas dedicadas à arte.
Dentre a gama de colaboradores, estão artistas visuais, galeristas, escritores, curadores, produtores, pesquisadores, diretores de cinema e outros agentes tanto alemães quanto de origens diversas, visto que a cena local é altamente internacional. Os textos, publicados em alemão e inglês, em grande parte apontam críticas ao governo — e em especial ao prefeito Klaus Wowereit — relacionadas à falta de políticas mais adequadas para as artes, à arbitrariedade decisória das grandes instituições culturais, à falta de apoio a projetos de base sem visbilidade, à necessidade de melhores condições infra-estruturais para criação e circulação dos trabalhos, à consequente submissão da arte ao mercado, e aos projetos de fachada, pontuais e dispendiosos, que não contribuem para a sustentabilidade da cena cultural a longo prazo (soa familiar?).
Em específico, há um tema quente nesta pauta, o da gentrificação dos bairros. Áreas industriais e bairros degradados foram reocupados por artistas após a queda do muro. A revitalização dessas áreas fez subir consideravelmente o valor dos aluguéis dos imóveis, obrigando os artistas, protagonistas desta transformação, a se mudarem para regiões distantes. Este processo continua em curso ainda hoje em bairros como Neukölln (sudeste) e Wedding (noroeste) e faz a indagação pairar no ar: os artistas viraram fantoches desse cenário? O sentimento é de manipulação.
Mas o documento deixa ver também que as opiniões divergem em boa parte. Alguns dos colaboradores criticam diretamente o movimento, argumentando ser ele uma tentativa de formalização da arte, uma ação política em si, e que o envolvimento da arte nesses processos é o primeiro passo para aniquilá-la. Neste caso, artistas deveriam se preocupar em fazer arte, e não se ocupar em regulações contratuais que, por natureza, impõem restrições. Em certos casos, é classificada como igênua a proposta de elaboração de um pacto, visto que este estaria certamente movido por diversos interesses distintos, não necessariamente os da arte. Quem representa e quem estaria sendo representado por este contrato? Trata-se afinal tão só da redistribuição de recursos? Um dispositivo burocrático dessa natureza é a saída efetiva para o problema? São algumas questões levantadas.
As oposições de ponto de vista são saudáveis para o debate. Como sempre, ampliam a compreensão da complexidade do tema e também exigem mais tempo de maturação das decisões. Na leitura completa dos artigos, fica evidente que existe um pouco mais de consenso quanto aos problemas do que quanto às soluções. Para elas, está programado pelo KW uma nova edição do documento P/ACT for Art, dessa vez com artigos encomendados a formuladores de políticas culturais (não convidados à presente edição, dedicada apenas a “produtores”) com vistas a apontar caminhos de concretização desse acordo — caso ele venha a existir — ou de outras alternativas, utilizando, evidentemente, os artigos da primeira leva como base.
Mesmo ainda não conhecendo seus resultados, vale tomar a iniciativa berlinense como exemplo de articulação da cena cultural local, como exercício organizado de reflexão sobre preocupações coletivas, algo que parece ser raro em qualquer parte.
Para conhecer a versão online do P/ACT for Art em inglês e alemão, clique aqui.
Fontes:
*Levantamento do DIW – Deutsches Institut für Wirtschaftsforschung (Instituto Alemão de Pesquisa Econômica) – Marco Mundelius Einkommen der Berliner Kreativbranche: Angestellte Künstler verdienen am besten: Wochenbericht der DIW Berlin, No. 9 (2009)
** Brochura promocional da SPD: Lebenswerter. Liebenswerter. 2006–2011. Gute Jahre in Berlin