A visibilidade, representatividade e paridade de mulheres em todos os setores da sociedade têm sido pauta cotidiana nos últimos tempos. Também por esta razão este assunto foi um dos temas do Panorama Cultura e Mercado deste ano (veja aqui como foi).
Consciente da urgência do tema, mulheres da cultura de todas as linguagens têm se mobilizado de diversas formas promovendo encontros e trocas reais ou virtuais. A produtora cultural Malu Andrade criou em 2016 o grupo Mulheres do Audiovisual Brasil (organizado em rede social) que conta com mais de 12 mil pessoas de todo o país. Voltado somente para mulheres (cisgêneras e transgêneras e homens transgêneros / cis ou homens trans), o grupo busca ser uma plataforma de ajuda mútua e troca de informações e de ofertas de trabalho para mulheres que trabalham no audiovisual, sobretudo por trás das câmeras. O crescimento do grupo aponta a necessidade das mulheres de ter um espaço de auxílio para evolução de pensamento num setor que ainda é bastante masculinizado.
Inspirada por este grupo, a gestora cultural Carol Marinho Martin criou o grupo Mulheres do Teatro Brasil, que se organizou num primeiro momento nas redes sociais.
Frequentadora assídua de teatro em São Paulo e em vários festivais pelo Brasil, ela foi provocada sobretudo pela invisibilidade das mulheres em setores técnicos, como a direção e a dramaturgia, pela fragilidade de grupos de cooperação no setor e pela ausência de indicadores de dados em relação às questões de desigualdade nesta área.
“O mercado de trabalho no campo cultural, em diversas áreas, está repleto de mulheres. Mas assim como acontece em outras linguagens, o teatro restringe boa parte das mulheres aos palcos, na atuação. Essa constante presença da mulher acaba por mascarar a falta de representatividade em cargos ditos ‘técnicos’, como a dramaturgia, a direção, a cenografia ou a iluminação. Mais ainda, a carência de mulheres nos espaços de decisão, como na coordenação de escolas e cursos, na curadoria e programação de instituições, nas comissões de editais de fomento e de prêmios teatrais e nas entidades representativas do setor, reflete uma desigualdade de gênero ignorada e camuflada tanto na esfera pública como privada. O grupo visa discutir e mudar essa realidade.”
A partir destas reflexões, organizamos no último dia 12 de junho, no Teatro de Contêiner, sede da Companhia Mungunzá de Teatro, o primeiro encontro ao vivo de algumas integrantes do grupo Mulheres do Teatro Brasil.
Na reunião informal e pública foram discutidas questões como o lugar de fala e o protagonismo do discurso, o mercado de trabalho e a formação de mulheres em áreas técnicas. Mas também veio à tona a questão da violência física e psicológica contra a mulher nas artes cênicas, sobretudo no momento em que várias denúncias de abuso têm sido feitas contra figuras masculinas de peso da cena teatral paulistana.
Propus-me então a buscar dados que pudessem nos indicar caminhos para ações concretas. Fica claro que o primeiro passo é o mapeamento da situação das mulheres nas artes cênicas em São Paulo, onde vivemos e conhecemos a cena. Dados como a quantidade de mulheres trabalhadoras de teatro, o local de trabalho, posições e cargos que ocupam em instituições culturais públicas e privadas e que tipo de discriminação sofrem, dentre outros.
Não é surpresa que esses dados não existam. Resta a percepção de que no setor teatral existem inúmeras disparidades de oportunidades, de redes, de salários entre homens e mulheres. Mas também de mulheres cujo trabalho faça parte do cotidiano da programação das instituições (as mulheres programadas) ou cuja programação esteja sob sua curadoria. Por essa razão, vale um olhar para dados macro brasileiros.
O Fórum Econômico Mundial (WEF, na sigla em inglês) divulgou em 2016 um amplo relatório que examina as diferenças de oportunidades para homens e mulheres em 144 países. Segundo o estudo, no ritmo atual seriam necessários 95 anos para que mulheres e homens atingissem situação de plena igualdade no Brasil. O relatório destaca ainda que as brasileiras têm um desempenho melhor que os brasileiros nos indicadores de saúde e educação, mas ainda enfrentam acentuada discrepância em representatividade política e paridade econômica.
É possível deduzir, nesse sentido, que o setor cultural e conseqüentemente o das Artes Cênicas, seja igualmente impactado por esta enorme disparidade. Soma-se a isso a carência de dados que indiquem o perfil das trabalhadoras, como o grau de instrução, salários, evolução na carreira, dificuldades enfrentadas na formação, no mercado de trabalho, dentre outros aspectos.
Diante desse quadro intangível e pouco concreto, busquei estudos fora do Brasil com informações sobre a situação das mulheres na área cultural.
Na França, é publicado anualmente pelo Observatório da Igualdade entre Mulheres e Homens na Cultura e Comunicação, (ligado ao Ministério da Cultura e Comunicação) um relatório sobre a evolução das políticas culturais, o engajamento das instituições e as propostas jurídicas para diminuição da desigualdade. Também examina nas diferentes áreas da cultura as mudanças de ano para ano, a fim de verificar a eficácia das medidas adotadas.
Além desse documento, analisei uma pesquisa comandada pelo ministério de caráter mais qualitativo (links abaixo). É importante frisar que a França, mesmo já com sua sexta Ministra da Cultura, tem muito a fazer ainda pela igualdade entre homens e mulheres na área cultural.
O relatório analisa dados de trabalhadoras do próprio Ministério, de instituições chanceladas, empresas culturais , artistas sindicalizados , escolas e profissionais fora do mercado de trabalho, mulheres na programação, dentre outros.
Destaquei aqui, alguns pontos interessantes para refletirmos a partir do contexto brasileiro.
” O conjunto dos dados reunidos no relatório de 2017 nos apresenta uma constatação severa, mostrando que ainda falta muito a fazer para que haja o reconhecimento justo das mulheres na cultura e na comunicação inclusive no setor das artes cênicas.
Com exceção do meio do livro, em qualquer que seja a área artística, as mulheres têm menos visibilidade e consagração que os homens: raramente estão atrás da câmera ou na direção de espetáculos e as diferenças de remuneração persistem.
Em 2017 se algumas raras melhoras puderam ser observadas em particular no audiovisual publico, a cultura é ainda um mundo onde o poder é dos homens. Assim as mulheres são minoritárias em postos de direção de instituições culturais e os lugares que elas dirigem dispõem frequentemente de um orçamento mais modesto. “
Na França, os teatros e centros culturais têm por hábito lançar sua programação anual com toda informação sobre os espetáculos. O relatório indica que, para a temporada de 2016/2017, os espetáculos de teatro programados pelos teatros nacionais e pelos centros dramáticos nacionais e regionais são pouco dirigidos por mulheres. Apesar de alguns teatros, como “A Comédie de Poitou Charentes” em Poitiers ou o “Teatro de Amendiers” em Nanterre, respeitarem a paridade de gênero, na maioria dos teatros a participação das mulheres na direção de espetáculos oscila entre 25% e 30%.
“Testemunhando a evolução dos números: a parte das mulheres programadas em instituições chanceladas passou de 22% em 2006 para 26% em 2015, ou seja uma progressão de 4% somente em 10 anos.”
Dentre os dirigentes das 100 maiores empresas culturais, há somente 12 mulheres. Elas são principalmente ligadas a empresas de livros (3 mulheres em 11 instituições) e as da publicidade (4 mulheres em 21 empresas). As grandes empresas do audiovisual são dirigidas por homens: existe uma mulher para 29 empresas.
O relatório aponta a notável dificuldade das mulheres em se autorizarem à candidatura a postos de direção. Segundo a antropóloga Françoise Héritier, professora do College de France, as sociedades tradicionais excluem as mulheres do direito ao poder. Segundo ela, “o acesso das mulheres à direção de lugares culturais passará por um duplo processo: por modelos que a sociedade chegará a construir mas também pela capacidade do sistema educativo fazer com que as meninas tenham tanta confiança nelas mesmas quantos os meninos têm confiança em si mesmos”.
Na pesquisa qualitativa, há consenso sobre a necessidade de “feminilizar” a direção das instituições culturais (incluindo as de maior porte) não somente para que as mulheres sejam equiparadas aos homens, mas também para permitir que haja diversidade de perfis daqueles que acessam responsabilidades mais elevadas. Essa diversidade de perfis impacta diretamente na programação, na gestão de pessoas (recursos humanos) e na gestão da própria igualdade entre mulheres e homens.
Foi apontado ainda no relatório qualitativo a ausência total de mixidade em algumas áreas e a necessidade de masculinizar a áreas tradicionalmente femininas como a comunicação, a produção e feminilizar áreas tradicionalmente masculinas como a técnica. Este ultimo dado me parece também bastante relevante pois é semelhante ao que se observa a olho nu na situação de instituições e produtoras brasileiras.
Acredita-se que, por causa de questões mais profundas ligadas a permanência de certos estereótipos vinculados a algumas profissões e da forma como as formações técnicas são organizadas, haja muita dificuldade para a evolução desta situação. Por outro lado, importantes avanços foram concretizados pela via legislativa recentemente.
Em termos de contexto jurídico, os franceses estão mobilizados sobretudo desde 2015 para que a administração de instituições tenha por obrigatoriedade a nomeação de no mínimo 40% de membros de cada sexo, assim como nos júris de concursos, exames profissionais e comitês de seleção. Em 2016, a “Lei 7 de julho” (relativa a liberdade de criação na arquitetura e no patrimônio) determina a igualdade como um dos objetivos a favor da criação artística, consagrando o princípio de igualdade quanto ao acesso de homens e mulheres que encabeçam as instituições culturais chanceladas. Em janeiro de 2017, outra lei foi criada para determinar a obrigação da presidência alternada entre mulheres e homens de júris e comitês de seleção.
Esses relatórios são uma fotografia em números da atualidade e mostram a evolução a partir do que tem sido proposto a cada ano. Somente conhecendo a realidade do vão que separa mulheres e homens em termos de direitos e igualdade é que poderemos começar a propor mudanças e vislumbrar algum equilíbrio.
No contexto brasileiro, e especialmente no paulistano onde atuo, fica clara, sobretudo nos últimos tempos, a necessidade de troca de informação e encontro para fortalecimento de redes. Por meio desse intercâmbio e comunicação (virtual ou real) é que chegaremos a ações práticas, a definição de metas e a mensuração de indicadores de desigualdade.
Que contextos, perspectivas e formas de combater? Estas são questões que confrontaremos por muito tempo, mas a construção coletiva de redes de proteção e comunicação podem nos dar pistas do caminho a seguir.
Pesquisas para a formação de indicadores e reinvindicação de políticas, cartas de repúdio, manifestos e boicotes são algumas das ideias que têm surgido.
Acredito porém que isso é só o começo.
FONTES :
> Site Ministerio da Cultura e Comunicação da França
> SYNDEAC
> WEF