Px Silveira retoma a discussão sobre a Lei Rouanet, com uma análise do nosso estágio de desenvolvimento democrático, expondo as zonas de conflito em torno dos usos da lei
De todas as formas de relacionamento entre governo e seus cidadãos, a via democrática parece ser, ainda e inegavelmente, a melhor. Não por ser perfeita ou mesmo suficiente, mas por ser a única em que se pode debater e criticar abertamente não apenas seus atores, mas até ela mesma, chegando-se a uma meta-crítica; o que faz com que suas fraquezas possam ser vistas, também, como suas fortalezas. E assim tem sido desde os inícios dos tempos ditos democráticos –e assim será, até os governistas de plantão o permitirem.
No que diz respeito especificamente à área da cultura, vemos agora mais uma tentativa de desvio da via democrática. Para se chegar a essa conclusão, basta acompanhar o que está acontecendo com o lado administrativo da Lei Rouanet e o atual debate sobre ela.
Internamente, vive-se uma situação beirando o caos na Secretaria de Fomento do Ministério da Cultura. Os prazos de análise dos projetos não são cumpridos, a cada dia proclamam-se novas normas, em sua maioria inconstitucionais; comumente, os pareceres são equivocados, se não, risíveis; os orçamentos são cortados aleatoriamente, com o agravante de que uma redução de 50% no seu valor implica na rejeição do projeto; e as plenárias da CNIC passaram a ser meros encontros legitimadores de todo este circo.
No que diz respeito ao debate sobre a lei Rouanet, pobre e dissimulado, penso que ele ocorre por iniciativa do próprio Ministério para escamotear a sua inércia jurídica e falta de ação no tema. É interessante de se reparar que os artigos com os pontos de vista oficiosos surgem sempre assinados à quatro mãos. Seria porque eles precisam pensar aos pares, qual sertanejos da cultura, solista e acompanhante? Ou porque querem usar logo dois canos com receio de errar o alvo?
Seja qual for a resposta, o objetivo destes artigos é claro –e também simplista, demasiadamente. Apela-se para a manutenção de uma cultura pura, longe do mercado, e que está, portanto, longe de nosso tempo. Sem a preocupação de querer apontar novos caminhos viáveis por meio à complexidade do panorama contemporâneo, estes artigos, no geral, trazem o preconceito surrado de que a cultura não pode lidar com dinheiro. Como se fosse pejorativo à cultura ter números e expressão econômica. E como se coubesse à ela apenas o eterno papel de animação da corte, negando-lhe o direito de sustentabilidade e independência.
A estes patamares, o da independência e o da sustentabilidade, a cultura, como expressão de valores e trocas, somente poderá aceder se souber lidar per si com as normas de regulação da sociedade em que vivemos. Neste tecido social, qualquer coisa para ter valor e utilidade, tem que ter sua codificação, seu acabamento, sua produção, comunicação e decodificação para usufruto do usuário final. Qualquer outra fórmula que procure negar essa linha aqui retratada apenas razoavelmente, soaria arcaica ou, no mínimo, extemporânea. Podemos assim dizer que a cultura se expressa por meio da produção de produtos –e não há porque negar. Este fato é perfeitamente aceitável se não utilizamos de preconceito para entender o que seja um produto.
Digressões à parte, o debate sobre a Lei Rouanet vale pela pedagogia social nele implícita e pela oportunidade que temos de afirmar que não é a cultura que precisa da política, mas a política é que precisa da cultura. Longe de se verem inseridos na disputa do poder pelo poder, a produção, o acesso e o usufruto precisam desenvolver instrumentos e parâmetros estáveis para despertar de vez o potencial da cultura. Ao contrário do que parece desejar os representantes da via ministerial e suas vinculadas, para se realizar, a cultura não precisa do super aparelhamento dos quadros oficiais e tampouco necessita da centralização de um órgão discernido e onipresente.
Não resta a menor dúvida de que a cultura pode sobreviver sem o pomposo Ministério da Cultura –ao qual ela não deve nenhum favor. Mas é o Minc que não sobrevive dignamente sem a Lei Rouanet, que é hoje responsável pela execução do quádruplo do valor de seu orçamento anual, em média. E a prova disso é que se não estivéssemos falando de lei Rouanet, falaríamos de que deste Ministério? Temos, sim, os Pontos de Cultura e, bem ao largo, os infindos pontos de interrogação.
Mais que apenas números, é inegável que a simples manutenção da Lei Rouanet já representa um importante ganho da diversidade cultural do Pais. As cerca de 1.500 empresas que fazem uso anual da Lei, segundo dados do próprio Minc, determinam uma maneira plural de escolher e investir nos projetos, mesmo se concentradas nas regiões mais ricas do país, o que é umas das distorções que podem e devem ser corrigidas. A alternativa a este modelo seria a volta ao balconismo, com as nuances próprias aos arbítrios do poder.
Na verdade, o que tem incomodado –e com razão, é que a lei Rouanet está dando certo demais para uns e certo de menos para outros. Mas isso só deixa patente a necessidade de arranjos internos e externos (onde estão, afinal, as mudanças há tempos prometidas?), mas não é motivo para se ir contra a íntegra da lei, que tem bem mais acertos que erros.
Um dado subjacente ao debate, mas nem por isso menos importante, é que existe essa parcela ligada ao teatro, principalmente localizada em São Paulo, que sempre foi contra a lei de incentivo à cultura, pelo simples fato de que ela é uma renúncia fiscal que prevê o lucro na economia de mercado. Não é que, ao longo destes anos de implementação da lei federal, os membros dessa parcela tenham perdido espaço para as grandes produções incentivadas –que erroneamente taxam de concorrentes. A verdade é que essa turma nunca se dispôs a usar a lei. São grupos localizados, pertencentes a uma elite do pensamento quase elizabetano, o que no Brasil corresponderia a era pré-Collor –divisora de água para a atual lei. De braços cruzados, mas falando muito, eles esperam ver o renascimento de um tempo em que se acostumaram aos repasses governamentais sem muito esforço e, como não poderia deixar de ser, sem muitos resultados.
Estes atores insistem em ver unicamente o lado negativo da lei Rouanet. Não lhes interessa saber se ela é um instrumento jurídico que obviamente carece de aprimoramento, eles apenas fazem suas criticas e se recusam a lutar pelos pontos positivos alcançados, mesmo sendo alguns deles doublé de funcionário público, o que, estando do lado de dentro, teoricamente lhes permitiria um melhor trânsito na mudança da lei. Mas não é isso o que lhes interessa: adequar, complementar, aprimorar, evoluir. O que deve ser feito, na visão dessa parcela, é dinamitar toda e qualquer ponte em que não conseguiram instalar seus pedágios ideológicos.
Essa elite alternativa se dá ao luxo de nadar contra a onda e poder dispensar os parcos recursos que a lei acena para os comuns mortais. Seus discursos são intimidadores e levantam a poeira por um bom tempo, onde quer que passem. Mas fazendo sombra a todos eles, seja individualmente ou em companhia, podemos citar o exemplo do Oficina, que faz um teatro visceral e que nem por isso deixa de se permitir o patrocínio incentivado.
Tão certo quanto o fato de que a produção cultural não vive sem recursos, é o fato que nada é mais pernicioso a ela que a relação de favores que se estabelece entre culturas e balcões de repasse. Se é o governo que dá, como preferem alguns, ou o mercado, como conseguem os mais dedicados, isso faz muita diferença, inclusive na qualidade do produto artístico apresentado e na conseqüente compreensão e adesão do público, ou não.
É preciso muito cuidado com a visão monopolizante do Estado. Na cultura ela é ainda mais daninha. A supressão ou simples limitação excessiva de instrumentos legais de acesso aos recursos, sempre necessários, fará aumentar o flerte com o suborno social. Nestes tempos de subsídios do leite, do pão, da geladeira e da cerveja, pode-se chegar ao ponto de termos em breve a Bolsa Cultura para o produtor, como um dos exemplos.
O louvável, mesmo, seria ver o esforço do governo no incentivo de um maior consumo da cultura –e não só na sua produção. Neste sentido, seria providencial se fossem levados adiante os estudos para que os benefícios da lei Rouanet sejam aplicados não apenas na feitura dos produtos, sejam filmes, shows, espetáculos teatrais; mas também na compra e disponibilização de ingressos para o público, democratizando de vez o acesso.
Dado relevante é que o limite de renúncia fiscal para a lei Rouanet, valor que é estabelecido anualmente pelo Ministério da Fazenda, jamais foi atingido. Portanto, é falsa a idéia de que os mega projetos competem com os pequenos e com outros considerados mais pertinentes pela tábula ministerial, pois os patrocinadores daqueles só se interessam mesmo pelo tipo de produto que representa sua visão mega de mercado.
Vamos agora chorar por isso? Parar o jogo e levar a bola para casa? Vamos por isso aprovar que o governo dê repasses contínuos ao pessoal que faz teatro ao falar sobre a lei de incentivo? Acho que merecem um não. Pois não nos queremos platéia ou meros expectadores da dramaturgia política, somos os protagonistas desse drama.
Temos que saber utilizar e aprimorar todas as ferramentas ao nosso alcance. A cultura não tem alergia a dinheiro e nem teme ser também um bom negócio. Já o governo cultural, no seu natural papel regulador -e exercendo o esperado discernimento mínimo, deveria entender que no estágio incipiente em que nos encontramos, bom mesmo seria ter cada vez mais projetos e produções culturais na praça e no mercado, deixando-nos bem à vontade diante de nossa diversidade cultural.
O empresário patrocinador, os artistas, os produtores e o público, não são excludentes nem preconceituosos. Apenas querem fazer suas escolhas.
Px Silveira
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