Com uma velocidade típica de nossa era, imprensa, tuiteiros de plantão, classe cultural e sociedade civil ocuparam-se, nos últimos dias, de um assunto: o blog O mundo precisa de poesia, projeto de Maria Bethânia. A pauta, porém, não foi a poesia, tampouco a música, mas sim o valor do orçamento do blog. Foi aprovada para captação, no sistema da Lei Rouanet, a quantia de R$ 1,3 milhão. Certo? Errado? Desperdício? Caro? Barato diante da carreira da artista e de seu valor cultural? Peço a paciência de vocês, leitores, para, ao invés de clicar no botão tweet, publicando opinião calorosa sobre o assunto, trazer a discussão para um contexto mais amplo e estruturante.
Para início de debate, devemos considerar que políticas públicas estruturadas para a cultura no Brasil são muito jovens. O Ministério da Cultura foi criado apenas em 1985, tendo o economista Celso Furtado como ministro (ah, se já pensássemos sobre a economia da cultura naquela época…). Somente no início da década de 90, período das “trevas” do governo Collor, quando o orçamento para a cultura diminui drasticamente e há o rebaixamento do ministério à condição de Secretaria Nacional, é que o estado brasileiro lança mão de um instrumento de política cultural por renúncia fiscal, a fim de captar recursos no mercado privado para o financiamento de atividades e bens culturais. Sérgio Rouanet, o então Secretário Nacional de Cultura, implanta um modelo de incentivo fiscal para a cultura que, com poucas alterações pontuais ao longo do tempo, está em vigor até os dias de hoje: trata-se da Lei Rouanet.
O mecanismo parece simples e mágico: o governo federal confere poder a representantes da sociedade civil para que escolham projetos que notadamente têm valor cultural e que receberão a permissão pública para captar recursos no mercado, sendo permitido que estes sejam deduzidos do imposto a ser pago pela empresa investidora. Após essa distinção conferida a alguns projetos, um “selo” que reconhece o valor cultural, o proponente pode, então, colocar seu projeto embaixo do braço e bater à porta do empresariado para angariar fundos a fim de viabilizá-lo. Parece uma equação exata: diminuem-se os custos da burocracia, evita-se a ingerência política do estado, antecipa-se recursos, divide-se custos com a iniciativa privada na parcela de projetos que requerem alguma contrapartida e mobiliza-se a sociedade empresarial em torno do “fazer cultural”.
Contudo, a equação é errática. Esse modelo tem imperfeições que o tornam ineficiente como instrumento e carente de lógica pública como conceito. Em um plano conceitual, estamos conferindo ao empresariado poder para definir uma grande parte do investimento público em cultura. Imposto não pago é dinheiro público, e a decisão seletiva em última instância sobre o investimento em cultura é do empresário (ou melhor, do seu gerente de marketing). Esse agente econômico tem poder de influenciar o mercado e o tipo de bens culturais disponíveis para a sociedade, se teremos como cultura Autrans, Gilbertos, Glaubers ou Ivetes, Bondes ou Zicos & Zecas. Não é um julgamento estético. Pelo contrário, é em prol da diversidade e da multiplicidade de bens que não é recomendável transferir essa decisão para um grupo específico. Na parte instrumental, a Lei Rouanet não tem servido para dinamizar a Economia da Cultura e dar pluralidade ao mercado: gera concentração e não influencia positivamente a estruturação da cadeia produtiva. Além disso, a maioria avassaladora das empresas recolhe seu imposto por lucro presumido, e as únicas que podem participar da lei Rouanet são as tributadas por lucro real.
Esse é o quadro geral que nos mostra problemas estruturais da Lei Rouanet. O problema, no entanto, é ainda maior: esse instrumento corresponde hoje a uma fatia muito grande dos nossos esforços em termos de investimento para a cultura. O instrumento quase que se confunde com a própria política cultural. Nesse contexto, tem-se uma grande quantidade de bens culturais que são aprovados nos conselhos para a captação e pouquíssimos bens culturais que realmente chegam a captar de fato – e estes o fazem de forma reiterada. Concentração é a palavra de ordem.
Então, meus caros, onde entra o blog da Bethânia nisso tudo? Garanto para vocês que ele faz parte do seleto grupo de projetos que conseguem captar recursos. Logo, a chancela obtida para a captação é quase uma garantia de que recursos públicos serão utilizados, em detrimento de diversos outros projetos incipientes, que poderiam ser financiados se tivessem poder de marketing ou algum mecanismo público que os contemplasse. Da mesma forma que ecoa por aí a tese de que “não podemos discriminar os famosos”, é justo do ponto de vista da equidade da política pública que também não discriminemos quem não tem poder de alcançar a captação, seja por falta de capital social ou poder de divulgação a oferecer para as empresas.
Devemos responsabilizar, então, os grandes artistas ou empresas que operam no sistema? Não seria justo. Não fazem nada de ilegal. Leis e instituições são expressões de acordos sociais, e o projeto cultural de grande artista que se utiliza do sistema vigente da Rouanet opera dentro do que é permitido, e seria um contrassenso não fazê-lo. Até porque, até mesmo para esses, o mercado não oferece meios para um voo solo consistente. O problema não é um artista ou um projeto específico: é sistêmico. Temos que amadurecer como sociedade, pautando políticas culturais que incorporem proteção e apoio estruturante ao que não tem mercado, cumuladas com um amplo programa de incentivos ao empreendedorismo individual daqueles que têm mercado. Faço fé de que essa pauta seja tão tuitada e retuitada quanto o blog da Maria Bethânia e que disso brote conscientização da sociedade brasileira quanto à necessidade de novos parâmetros estruturantes de economia da cultura em sentido estrito e de políticas culturais em sentido amplo.
6Comentários