O debate sobre a Lei Rouanet é mesmo “complexo e necessário”, como afirmou Marcus Faustini em artigo no jornal O Globo do último dia 5 de maio (Rouanet sem inocência). Mas também é inadequado e secundário. E voltou à agenda de um modo equivocado.

Inadequado, porque o contexto atual é ruim para a cultura brasileira e as políticas públicas de cultura em níveis federal, estadual e municipal. O Ministério da Cultura está às voltas com os restos a pagar de 2014 e teve seu orçamento para 2015 cortado e contingenciado.

O valor, anunciado na última semana, é o menor da história da instituição, em comparação ao orçamento total do governo federal. Equivale ao da Secretaria da Pesca. Além disso, na maior parte dos estados e municípios, os orçamentos das SECs e SMCs estão sendo reduzidos, em virtude da queda na arrecadação (por conta da crise econômica) e de prioridades outras.

Finalmente, a crise também está reduzindo o estoque de incentivo das empresas, e o valor alcançado em 2014 pela Lei Rouanet, cerca de R$ 1,4 bilhão, não se repetirá em 2015. Com o debate, e sobretudo com o próprio MinC detonando publicamente a Lei Rouanet, a situação deve piorar.

A tendência é que muitas empresas não usem o mecanismo, com receio de associar suas marcas a uma controvérsia. Ou seja… Menos dinheiro para a cultura. E mais desemprego, mais recessão, mais exclusão.

Secundário, porque o desafio central da cultura brasileira é o reconhecimento de seu papel estratégico na vida social e no processo de desenvolvimento do país, seja pelo poder público, pelo conjunto das instituições, pela mídia e pela sociedade em geral. E, claro, para além dos guetos e nichos culturais. O debate sobre o financiamento público e privado da cultura (e não apenas sobre um dos mecanismos) deve ser consequência do enfrentamento deste desafio maior, e sucedê-lo, não antecedê-lo.

Por fim, equivocado, pois começou não com um chamado público à reflexão e ao diálogo, não com um levantamento criterioso de dados e a divulgação de uma análise racional de resultados, mas com uma crítica feroz ao mecanismo por parte de autoridades encarregadas da sua gestão (o ministro da Cultura, o presidente da Funarte etc), crítica esta acompanhada de números errados, de sofismas, de visões superficiais e do clássico (e pavoroso) discurso “Nós (os bons, os puros, os excluídos) x Eles (os privilegiados, os consagrados, os maus)”, que infestou a retórica petista nos últimos anos.

Primeiro, o MinC detonou; depois, chamou ao debate. Trata-se de um jogo de cartas marcadas, em que já se sabe previamente a posição do organizador, e não de um debate real, de escuta e fala verdadeiras. Como acreditar que a condução do processo será justa? Estará o organizador disposto a mudar de opinião, caso os argumentos de quem apoia o mecanismo, ou de quem quer apenas uma revisão, e não a substituição, sejam mais convincentes e obtenham mais apoio na sociedade?

Por outro lado, por que empregar tempo e energia participando de um debate que começa assim, e que acontece num momento de refluxo para a cultura, em que o volume e a intensidade da atividade cultural no país inteiro tendem a cair, pelas razões expostas acima? Espero estar enganado, mas o MinC parece mais interessado em legitimar sua posição do que empreender uma discussão aberta, em que a conclusão não esteja pré-determinada.

A priorização do debate sobre a Lei Rouanet, ainda mais deste modo, é um equívoco que beira a irresponsabilidade, e que pode ter sérias consequências para todos os que fazem cultura e vivem de e para a cultura no Brasil. Refiro-me ao Brasil real, e não à caverna de Platão habitada por quem, chova ou faça sol, recebe seu salário no início do mês e, tendo ou não orçamento, continua ocupando cargos e usando carros oficiais.

O MinC deve priorizar a busca do orçamento perdido; o aumento de sua eficiência e de sua eficácia; e a valorização da cultura brasileira como um vetor estratégico da vida social e do desenvolvimento do país, para que a área seja objeto de políticas públicas e investimentos públicos e privados à altura da excelência e do talento dos nossos criadores, artistas, produtores, técnicos e artesãos, e da importância econômica e social que ela já tem (e que pode ser ainda maior).

O ponto, hoje, não é se a Lei Rouanet concentra ou desconcentra, ou o bizantino embate entre Excluídos e Consagrados. O ponto é: Onde está o orçamento do MinC? Cadê o dinheiro do Fundo Setorial do Audiovisual? Quando haverá um edital nacional de Pontos de Cultura? Como pode a Funarte ter um orçamento menor do que o da SMC de Nova Iguaçu? Quando a presidente Dilma cumprirá o que afirmou na campanha eleitoral e incluirá a política cultural entre as prioridades reais (e não apenas retóricas) do seu governo? Quando o que ouvi no Teatro Casagrande em 2014 se tornará realidade? O mesmo, claro, vale para boa parte dos prefeitos e governadores.

Em 2015, a palavra de ordem da cultura tem que ser: “Independência (e mobilização)… Ou morte!”


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CEO da Escarlate Conteúdo Audiovisual e da Escarlate Experiências Criativas. Ex-secretário municipal de cultura do Rio de Janeiro.

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