As discussões sobre a música clássica no Brasil, em especial as que surgiram após a demissão de John Neschling da Orquestra Sinfônica do Estado de São Paulo, tendem ao equívoco. No Caso Neschling, o ponto nevrálgico não é quem estaria certo ou errado. Todos se comportaram de maneira deselegante, tanto nosso governador José Serra quando o bravo maestro. A questão também não está no salário que o diretor artísitco da OSESP recebia. Afinal, para a quantidade de intrigas palacianas, macumbas políticas e anátemas invejosas que Neschling deve ter sofrido já justificariam o dobro de salário por insalubridade.
A questão também não está em uma pretensa elitização da política cultural do governo. Em primeiro lugar, porque não há política cultural nem no governo municipal, estadual e muito menos no federal. Ao menos não no sentido de policy dado pela língua inglesa. Gritar contra o investimento realizado na música clássica, com o argumento de vivermos em um país repleto de problemas estruturais básicos, é de um rousseanismo tão bronco quanto constranger as plantações de cana a contratar mão de obra humana, dificultando a mecanização da lavoura, para “criar empregos”. Ou seja, mantenha-se a população o mais ignorante possível, de preferência cortando cana, porque o desenvolvimento é um conceito elitista e eurocentrado!
A saída de Neschling é um problema, sim, não porque ele seja o melhor maestro do mundo. O que também não são os nomes divulgados, todos de segunda linha considerando-se o panorama mundial. Maestro Eleazar de Carvalho, que estava no primeiro time mundial, ao lado de Leonard Bernstein, Herbert von Karajan, George Solti, e foi professor das atuais estrelas Zubin Mehta, Claudio Abbado. Seiji Ozawa para ficarmos apenas nos mais conhecidos, não conseguiu dar à OSESP o destaque obtido nos últimos anos. A maravilhosa orquestra e sua impecável Sala São Paulo são fruto de marketing? Claro! Isso é elementar. E necessário na atual sociedade de consumo.
O fato é que John Neschling colocou a música clássica na primeira página dos jornais. Não nas colunas sociais ou até páginas policiais, como o já esquecido “Caso Pau Brazil”. Ou, como no caso do Theatro Municipal, cuja direção artística demonstra com garbo o que é uma mentalidade burocrática, não-criativa e provinciana.
A questão que se levanta é que Neschling é essencial, sim, ao projeto OSESP. Não pela sua técnica de regência ou pela simpatia, ambas controversas. Neschling tornou-se único porque dedicou-se de corpo e alma ao projeto, cuidando de todos os detalhes pertinentes e não pertinente à sua função, seja escolhendo o tecido e cor dos uniformes das recepcionistas à valorização do repertório nacional. Sua saída, neste momento, e da forma em que foi feita, coloca a orquestra em uma rota perigosa, não porque ele seja um gênio, mas porque o Brasil carece de instituições. Mesmo que seu sucessor fosse de primeiro time, não teria condições ou mesmo visão global do projeto. Ainda não temos uma Filarmônica de Berlim, uma orquestra que passou por duas guerras mundiais, fome, frio, bombardeios e continua gloriosa como nunca. Se agora, neste exato minuto, 70% de seus músicos pedisse demissão, incluindo Simon Rattle, e ingressassem novos profissionais, ela ainda manteria sua identidade. Isso é instituição! Assim como a Ópera de Paris, ou o Balé Bolshoi. Não é o que temos por aqui. Nas escolas públicas, por exemplo, o padrão de qualidade muda de acordo com seu diretor, do nível de ensino ao papel higiênico nos banheiros. A cada novo presidente da república, prefeito ou mesmo zelador do edifício tudo muda, para pior ou melhor. Somos personalistas, queremos líderes carismáticos, que Dom Sebastião volte e resolva todos os males.
Essa ausência de instituições fortes cria um espaço para lideranças fortes, ou mesmo autoritárias. Um maestro de primeira linha não irá se envolver na extensa lista de necessidades e pendências comumente encontradas nas orquestras brasileiras. No máximo conduzirá alguns concertos por ano, receberá seu cachê e tomará o primeiro avião para seu próximo compromisso profissional. Dificilmente terá tempo ou interesse em aprender nosso idioma e muito menos de se envolver na comunidade local. Que dizer do repertório brasileiro para orquestra, para o qual Neschling, genial ou não, criou uma discografia até então inexistente tanto em qualidade como quantidade.
Perdeu-se uma excelente oportunidade, tanto para Neschling como para a Fundação OSESP de se solidificar o projeto. Bastaria tanto nosso governador, como o presidente da fundação, Fernando Henrique Cardoso, não tomarem a peito as diabrites de Neschling. Declarações públicas como “o maestro é um artista e portanto pode ser temperamental às vezes” e uma postura um pouco mais discreta do próprio Neschling demonstrariam muito mais sabedoria e força do que o que se assistiu. E principalmente que o próprio Neschling tivesse se antecipado criando um processo de transição “lento, gradula e seguro” como ouvi inúmeras vezes em minha infância.
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