O clima de tranquilidade que dominou praticamente toda a primeira audiência pública sobre o PLC 116/2010, realizada na semana passada, acabou na segunda rodada de debate sobre o projeto de lei. O encontro desta terça-feira, 7, foi marcado por discursos contrários ao projeto que pretende reformar o marco legal do mercado de TV por assinatura. O principal problema para as empresas representadas hoje na audiência é o sistema de cotas de fomento do conteúdo brasileiro independente nas grades de programação das TVs pagas.
As antigas mazelas que tumultuaram a tramitação do PLC 116/2010 na Câmara dos Deputados (antigo PL 29/2007) voltaram à tona. O projeto pretende criar um novo marco legal para o serviço de TV por assinatura, mas ao longo de sua análise na Câmara também passou a incorporar uma política de fomento do conteúdo audiovisual brasileiro. E é essa política que ainda atrai as maiores divergências em torno do projeto.
Representantes de produtores de conteúdo estiveram presentes no debate. E, como já havia acontecido na audiência da semana passada, reforçaram o discurso em favor das cotas de conteúdo nacional existentes no projeto. Para o diretor da Associação Brasileira dos Produtores Independentes de Televisão (ABPTI-TV)e produtor, Adriano Civita, o exemplo internacional precisa ser seguido pelo Brasil como forma de manutenção da identidade cultural nacional. “Diversos países têm medidas de cotas, que são respeitadas pelas empresas. Essas políticas mostram que a produção brasileira precisa de mais espaço sim”.
Já a diretora da Associação das Produtoras Brasileiras de Audivisual (APBA), Tereza Trautman, não ficou apenas na defesa das cotas e partiu para o ataque contra o discurso das programadoras internacionais de televisão paga. Para Tereza, é inadmissível que o Congresso Nacional aceite pacificamente os argumentos de empresas estrangeiras contra o conteúdo brasileiro. “Eu acho chocante que empresas internacionais venham aqui questionar a legitimidade de termos uma produção regional de conteúdo que representará apenas 1% do mercado audiovisual”, protestou. “Essa questão das cotas não pode ser a Geni do projeto. Estou estarrecida com o que vi aqui. Acho que devíamos ir para casa, colocar a cabeça no travesseiro e pensar qual é o país que queremos para os nossos filhos e netos. Fico muito triste porque eu acredito que o Brasil pode mais do que isso.”
O relator do projeto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ), senador Demóstenes Torres (DEM/GO), mostrou-se sensível às críticas apresentadas principalmente pelos programadores internacionais. O senador, que na semana passada já havia antecipado a este noticiário que via problemas nas cotas de conteúdo, reforçou o tom de seu discurso nesta terça ao dizer que vê “inconstitucionalidades” na proposta aprovada pela Câmara dos Deputados.
“Realmente, o projeto padece de alguns vícios, inclusive de inconstitucionalidades”, afirmou Torres, que tem formação jurídica. “Mas nada que não seja possível sanar. Nós temos competência para sanar esses vícios”, amenizou logo depois. A mensagem passada pelo relator foi clara: Torres não pretende fazer um relatório apenas validando o texto encaminhado pela Câmara. O relator e demais senadores de oposição retomaram o discurso contra a posição pacífica do Senado Federal em relação aos projetos, especialmente com apoio da base do governo, encaminhados pelos deputados. “Não somos uma casa chanceladora”, reclamou Álvaro Dias (PSDB/PR). Assim, a linha de ação da oposição no jogo político-partidário em torno do PLC 116 é mexer sim no projeto, caso seja necessário, mesmo que isto custe a aprovação rápida da matéria.
Assim como ocorreu com os deputados, os senadores agora se defrontam com a posição francamente contrária dos programadores internacionais em relação à proposta. Representados pela Associação Brasileira dos Programadores de Televisão por Assinatura (ABPTA), os canais estrangeiros mostraram-se irredutíveis com relação às cotas de transmissão de conteúdo brasileiro independente previstas no projeto de lei. Também a Sky e a Rede Bandeirantes mostraram clara insatisfação com o projeto, a primeira também por discordar das cotas e a segunda, por ser contra a regra que proíbe que empresas de radiodifusão entrem no setor de telecomunicações.
O presidente da Rede Bandeirantes, ligada à Associação Brasileira de Radiodifusores (Abra), resumiu a situação. “Não há consenso algum”, afirmou Johnny Saad. “Essa proposta foi apoiada por nós no seu nascedouro, porque entediamos que havia a necessidade de mais liberdade nesse mercado. Mas por ação de algumas teles e outros organismos, ele virou um ‘Frankenstein’. Virou um projeto ruim, inconstitucional”, reclamou o executivo.
A ABPTA também foi bastante clara com relação à inexistência de uma unanimidade que garanta a aceitação tranquila do projeto. “Gostaríamos de evidenciar que não há consenso nenhum da parte dos programadores em diversos pontos do projeto de lei”, declarou Marcos Bitelli, consultor jurídico da associação. “Essa lei se transformou em uma árvore de Natal onde as bolas são mais pesadas do que os galhos”, complementou.
A ABPTA também reclama da atribuição de poderes à Ancine para controlar o cumprimento das cotas. Para a associação, as novas atribuições seriam uma “carta em branco” do Congresso para a agência decidir o que pode ser veiculado pelas TVs pagas no Brasil. A mesma tese anti-cotas foi apresentada pela representante da Sky, Renata Bonilha. Para a advogada, a filosofia de fomento da produção nacional é um atentado ao direito de escolha dos consumidores. “A visão da Sky é que o projeto viola, sim, o direito consumerista, o direito de escolha do consumidor. É impor às pessoas o consumo nacional de conteúdo”, atacou.
As posições divergentes apresentadas ontem não são novidade na tramitação do PLC 116. A ABPTA e a Sky foram as duas entidades que mais criticaram o projeto em sua reta final de aprovação na Câmara dos Deputados. No caso da Band, como o próprio Johnny Saad admitiu, houve mudanças de posição da emissora em relação ao projeto de lei nos últimos três anos. As críticas feitas hoje só ganharam um contorno mais forte porque a base aliada do governo no Senado Federal vinha se fiando no fato de que existiria um consenso em torno do projeto e sua aprovação poderia ser acelerada.
Mesmo as polêmicas gerais sendo velhas conhecidas dos que acompanham a tramitação desde seu início, em 2007, alguns argumentos apresentados hoje deram novo contorno ao conflito. A ABPTA dedicou-se a atacar a constitucionalidade da medida, reacendendo dúvidas sobre a própria capacidade de existir uma legislação sobre conteúdo audiovisual nacional. O ataque centrou-se no artigo 221 da Constituição Federal, que trata da regionalização da programação e da criação de “políticas de fomento”. Para a equipe da ABPTA, a inserção da política de cotas no PLC 116 não pode ser considerada uma política de fomento.
A tese envolvendo a Constituição Federal e os limites para legislar sem ferir o conceito genérico da “liberdade de expressão” já havia sido utilizada na Câmara, mas não prosperou
Sobre o PLC 116/2010
Define o objeto e especifica termos técnicos e legais relativos à comunicação audiovisual de acesso condicionado; estabelece princípios fundamentais que regem a referida atividade de comunicação audiovisual de acesso condicionado; determina regras para a prática das atividades de produção, programação e empacotamento de conteúdo; obriga a veiculação de conteúdo brasileiro nos canais de espaço qualificado; altera a regulamentação da Contribuição para o Desenvolvimento da Indústria Cinematográfica nacional – CONDECINE para estimular a produção audiovisual; estabelece regras para o exercício da atividade de distribuição de conteúdo pelas prestadoras do serviço de acesso condicionado; assegura direitos aos assinantes do serviço de acesso condicionado; define sanções para as empresas prestadoras do serviço de acesso condicionado que não cumprirem as obrigações a elas imposta pela presente lei.
*Com informações da Tela Viva News.