Mesmo após o fim da escravidão e o Estado laico-republicano, o negro vivia – e vive de certa forma até hoje – sob a condição tácita de comungar do credo católico. E aprendeu, assim como todo brasileiro mestiço, a acender uma vela para o santo e outra para o orixá. Ou ainda, no sincretismo mais clássico, a acender uma única vela para um santo-orixá, com características próprias de duas matrizes, com lógicas e dinâmicas completamente diversas, quando não antagônicas entre si.

Essa capacidade própria do brasileiro, mas também presente em outras sociedades, é um poderoso antídoto contra os efeitos malignos da globalização. A capacidade de absorção e re-processamento de práticas, modos e crenças permite, por um lado, o esvaziamento das barreiras internas contra o avanço da camaleônica cultura do consumo, e, de outro, a possibilidade de avanço e diálogo com as outras formas de interação, convivência e expressão presentes na arena global. O que pode significar a abertura de mercados para as indústrias culturais brasileiras.

Celebrar o sincretismo e a mestiçagem como um traço inerente e potencializador da cultura brasileira é questão de preservação e promoção da memória e das tradições. Um exemplo recente disso é o movimento Mangue-beat em Pernambuco. Ferozmente combatido pelos defensores da cultura tradicional e do maracatu, pois buscava elementos de raiz para dialogar com o pop e com a indústria cultural, o movimento só fez valorizar as tradições e as comunidades que praticam o maracatu rural, colocando, por exemplo, a cidade de Nazaré da Mata (PE) no mapa da música contemporânea universal.

Tropicália, bossa-nova e muitos outros movimentos culturais brasileiros nascidos na indústria do entretenimento, partem desse jeito brasileiro de ativar e dialogar com o outro, a partir da valorização do seu próprio referencial simbólico.

Mas como permitir o desenvolvimento artístico e o acesso a esses mercados a uma camada da população distante do Estado e dos meios de comunicação?

* trecho do livro O Poder da Cultura.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

12Comentários

  • gil lopes, 28 de maio de 2010 @ 17:53 Reply

    A recuperação do teatro Municipal do Rio de Janeiro evidentemente é benvinda, não faz sentido um patrimônio daqueles se deteriorando, mas o Teatro Municipal impõe também outras reflexões sobre nosso momento cultural.
    A primeira delas e o uso que continuamos fazendo desse equipamento nos dias de hoje. No momento nacional inaugurar com uma ópera de Verdi é simplesmente anacrônico e um engano monumental. É um tiro na capacidade da cultura nacional. Será que nada há que possa representar nossa cultura para ser exibido no Municipal? Por quanto tempo ficaremos celebrando a memória alheia ou universal em detrimento da memória nacional. Falta patriotismo, e isso não tem nada a ver com patriotada que seria empurrar alguma coisa sem sentido. As tais temporadas líricas do Municipal não devem acabar de jeito algum, mas já está na hora de valorizarmos a produção nacional. Sem isso ficaremos no discurso.
    A segunda delas é a necessidade de finalizar a Casa da Música, equipamento que por motivos políticos continua aguardando impávido e magnífico, a hora de finalizar. O Rio merece os dois lugares e uma programação que priorize o produto nacional de qualidade.
    Ou seja, continuamos fechando nossas portas para a produção nacional, e essa tem sido a nossa política cultural, ou seja, a anti política cultural brasileira. Nossa política cultural é anti nacional, não é feita para valorizar o Brasil, ao contrário.
    O mesmo jeito, a mesma atitude de sempre, desde os anos 30, 40, 50, …imaginar uma arte de elite produzida fora do Brasil, continuamos assim, inaugurando com ópera, com Verdi…francamente…estamos mesmo muito atrasados…é uma vergonha, macumba pra turista.

  • Daniel Lopes, 28 de maio de 2010 @ 20:59 Reply

    Acho interessante a comparação entre arte e religião. Além do passado extremamente associado, ambas compartilham de elementos. Um exemplo é a relação não necessariamente racional, aonde o “sentir” é tão valorizado quanto o “entender”. Outro ponto interessante é o conceito de “produtos” não poder ser aplicado ao pé-da-letra como em outros setores (comércio, indústria etc).

    No entanto, quero abordar um ponto um pouco mais controverso no meu comentário.

    Não é da “cultura do sincretismo e mestiçagem” que provem a pluralidade de religião no Brasil. Sincretismo e mestiçagem são fins, não meios. O que permite a pluralidade e diversidade é a capacidade do cidadão de reger sua vida com liberdade de consciência.

    Vou explicar… (acho que poderia ser um artigo interessante)

    Até 1981, tínhamos a religião católica como oficial no nosso país. O Estado centralizava e coagia a sociedade para o que “ele” acreditava que deveria ser seguido.

    A partir da Constituição Republicana de 1981, o Estado permitiu a livre associação religiosa e com tempo tomou sucessivas medidas liberais em relação as instituições religiosas, entre elas a não intervenção, isenção de impostos, entre outros. O que vimos? A vasta expansão de manifestações religiosas, pluralidade, acesso (alguém ai já viu alguém reclamar de dificuldade de acesso à religião?).

    Não cabe aqui julgar o que é religião boa ou ruim (como também não cabe para fins de políticas públicas julgar a arte em si). Pessoalmente, tenho minhas preferências em relação ao 2 tópicos, no entanto, cada indivíduo deve ter o poder de se expressar segundo sua própria consciência.

  • Sérgio Martins, 28 de maio de 2010 @ 22:11 Reply

    Bem legal essa abordagem que põe em cheque a relação entre potencial simbólico e não tão distante mercadológico, talvez na forma como se conduz hoje as políticas culturais no Brasil, esse seja o grande Paradigma.

    Muito a ver com o que conversamos sobre Diversidade Cultural na apresentação e bate papo sobre o CTRL-V no Instituto Pólis.

    Abraços…

  • Erick Wolff8, 30 de maio de 2010 @ 12:43 Reply

    O sincretismo religioso nada mais é do que um vírus que consome silenciosamente a raiz de uma cultura subjugada por outra, claro que ao observar a cultura afrobrasileira, ou melhor, falando dos templos de Umbanda e candomblé que ainda se sujeitam ao sincretismo arcaico e rançoso, você terá um exemplo claro do que falo.

    Ao ressaltar a imagem de Jesus ou qualquer santo católico, o consulente leigo que chega ao templo vai identificar aquela imagem como sendo o representante da cultura e não vai entender que ali é apenas um símbolo da energia ao qual está sendo cultuada, que muitas vezes ao tem nada haver com aquele fetiche que está no altar. Para mais tarde ter um choque de cultuara quando começar a entender o que se cultua não são os santos católicos e sim energias da natureza ou ancestres.

    Claro que para quem esta de fora é muito lindo e harmonioso ver os santos católicos, chega mexer com a essência da alma, afinal forma séculos de imposição de uma cultura que foi imposta para a humanidade sob a tutela da paz e amor, mesmo sabendo que muitas vezes o credo não atua com a razão.

    com tantos anos de tentativas para se firmar como uma religião e cultura, a raiz afrobrasileira sofreu, ou melhor, foi estuprada culturalmente, onde víamos a mãe de santo negra se ajoelhando na beira do altar para beijar a mão do padre (a soberania cristã). E mais uma vez víamos uma cultura subjugando outra, sendo que uma sacerdotisa da cultura afrobrasileira (umbanda ou candomblé) DEVE SER RESPEITADA E CONSIDERADA COMO TAL, porem não é isso que acontece, pois todos os sacerdotes da cultura se cumprimentam trocando bênção. Entoa o que faz o padre melhor que uma sacerdotisa antiga, nada, ao meu ver nunca foi melhor, nem pior, ambos estão no mesmo patamar e são merecidos de honra e respeito, mas graças ao sincretismo, o que eu vejo é apenas a cultura afrobrasileira sempre dobrando o seu joelho perante a soberania.

    Resumo o sincretismo é um veneno que silenciosamente consome as culturas que equivocadamente se misturam.

  • Felipe Julián, 30 de maio de 2010 @ 20:21 Reply

    Publiquei este texto no Overmundo alguns anos atras:

    SINCRETISMO E NOVAS MÍDIAS

    O sincretismo, na formação do Brasil, muito mais do que um modo de resistência e autopreservação, foi um dos alicerces com o qual a cultura brasileira se construiu. Uma cultura mestiça, uma cultura dominada e dominante. Uma cultura da coexistência e da assimilação.

    Uma coexistência a força em sua origem. Uma relação de dominação entre senhores e escravos, entre brancos e índios que fracassou enquanto modelo cultural. Tendo sido submetida a figura do dominador de tal forma aos hábitos e costumes dos dominados, e com tamanho isolamento das metrópoles culturais do mundo daquela época, pouco restou a estes desarraigados senão perder-se no espaço-tempo cultural de um Brasil em plena construção.

    A cada investida no sentido de civilizar negros e índios o branco assimilava mais e mais a cultura que visava suprimir. Eram os brancos, na verdade, os primeiros antropófagos.

    E essa mesma nação que aprendeu a praticar e fazer uso de um certo tipo de tolerância – como no caso da capoeira – uma luta disfarçada de jogo e dança – é hoje, uma das sociedades que mais se apropria antropofagicamente das novas ferramentas de comunicação.

    Optando cada vez mais por sistemas livres, democráticos e descentralizados de comunicação e difusão de idéias esta sociedade começa a encontrar alternativas midiáticas cada vez mais independentes daquele velho sistema de comunicação de massas que, ainda que as vezes público, sempre atendeu a interesses privados por definição.

    A voracidade dos usuários destes novos meios de comunicação banaliza a mídia convencional e revela seu anacronismo numa sociedade que tem urgência para o debate e produção de soluções.

    A circulação de idéias aumenta em velocidade e quantidade.
    Cada vez menos se tolera o direito à exploração financeira destas idéias ou dos meios de intercambio das mesmas. Qualquer empecilho é visto como um anti-catalizador destes processos. Conceitos antiquados como os implícitos na propriedade intelectual passam a ser cada vez mais postos a prova. E quanto mais ampla é a aplicação destes conceitos na realidade do mundo, mais eles se revelam imperfeitos e insuficientes. Mais eles se revelam subservientes de interesses de uma minoria em detrimento de um coletivo maior.

    O fato é que temos experimentado algums goles a mais de liberdade do que o que estávamos acostumados. E isso tem despertado uma sede voraz. E portanto começam a surgir os subprodutos: liberdade de mercado sendo defendida com base nos mesmos argumentos que a liberdade de expressão. Um erro perigoso visto que a imaterialidade das idéias permite-lhes o direito ao erro, a experimentação e à prova; enquanto que um mercado que se permite o errar e o experimentar é um mercado potencialmente capaz de matar e destruir ainda que não o faça intencionalmente. É um mercado que conhecemos bem.

    Daí o papel fundamental da arte enquanto um laboratório de idéias e técnicas. Sim. Na arte é permitido ao ser humano errar. E cada erro da arte é tão útil a sociedade quanto um acerto. Quem sabe a função do acerto na arte não seja muito mais do que simplesmente evidenciar o que seria um erro. E sendo a arte imaterial (não enquanto suporte mas sim enquanto conceito) nos permite colocar a prova e refletir a respeito absolutamente toda e qualquer coisa que a sociedade produza ou reproduza.

    Daí a fundamental importância da arte fazer uso desses novos sistemas de comunicação enquanto matéria prima ou suporte, neste momento um tanto peculiar da historia humana.

  • Octaviano Moniz, 31 de maio de 2010 @ 8:25 Reply

    Aqui Na Bahia,ainda na decada de 70,Mãe Stella de Oxossi,Odé Kayode,84,yaloriza do Ilê Opô Afonjá ,lançou um manifesto contra o sincretismo,haja visto os orisas não terem representação humana ,são energias;fisica quantica!Na sua visão o sincretismo foi uma forma eficaz de manter o culto aos orixas,mas perdeu a razão de ser.O catolicismo nada tem a ver com o candomble.Importantes mães de santo assinaram o documento.Pode ser bom para a Cultura ,para reallizarmos uma arte miscigenada,hibrida……mas para a religião é uma negação aos principios do Candomble.Pelo menos para a nação nagô(Youruba).A umbanda mais difundida no Rio,é um capitulo a parte!Mãe Stella,escritora e hoje considerada a principal Yalorixa brasileira prega a volta a pureza do candomblé brasileiro,que tambem é diferente em certoa aspectos do africano!
    Cordial abraço,
    Octaviano Moniz(Olodenâ)da Bahia

  • Silmar Oliveira, 31 de maio de 2010 @ 9:21 Reply

    De fato, Brant, “como permitir o desenvolvimento artístico e o acesso a esses mercados a uma camada da população distante do Estado e dos meios de comunicação?”.
    Respondendo adequadamente a esse questionamento iremos naturalmente gerar desenvolvimento econômico, social e cultural, além, de como você mesmo destacou, um escudo contra os aspectos negativos da globalização.
    Eis o poder transformador da arte: redifinindo o universo simbólico, redefine o indivíduo e a sociedade.

  • Geraldo Edimar, 31 de maio de 2010 @ 22:27 Reply

    Sempre fui um estudioso das questões religiosas com essas tendências de misturar e mostrar o óbvio para quem quer seguir suas tradições. Aqui no norte de Minas há os quilombolas e são sem muito desenvolvimento e até atrasados pela distancia e pela interação com outras culturas. Não tendo o mesmo alcance que nosso autor, escrevi um romance sobre esse tema e misturei um pouco de curandeirismo da raça negra. O uso de remédios e rezas para curas de males da carne e do espírito. Meu livro O EScravo Itor conta como um homem foi educado para se tornar escravo de outro na época moderna em terreiros de curandeirismo de um localidade daqui de perto conhecida como gorutuba. As margens do Rio com o mesmo nome. Daí a importância de se manter as pessoas em suas raizes e de dar mais chances de serem felizes com o que acreditam e podem praticar sem nenhuma restrinção ou indução da igreja católçica aos seus credos. Misturar e colocá-los como pagâos é diminuir a sua identidade. Parabêns ao nosso autor.

  • Badah, 1 de junho de 2010 @ 0:26 Reply

    Há quem chame isso aí de “jeitinho brasileiro”, com conotação pejorativa. Eu chamo de “adaptação” com conotação de necessidade. Se tirar esse elemento do brasileiro, não sobra nada. Dependendo do brasileiro, sobra metade de um francês ou metade de um africano, e outras frações responsáveis por negar o sincretismo. Passou da hora de nos valorizarmos como inteiros.

  • Vanice da Mata, 1 de junho de 2010 @ 2:08 Reply

    Celebrar o sincretismo como cartão de acesso ao mundo globalizado é inverter a lógica das coisas. Não é possível racionalizar o ser. O ser é e ponto final. É em grande parte inconsciente. É dom. É verdade. É como se para sermos aceitos em uma determinado grupo a gente precisasse fingir ou mostrar que é, para só depois ser, de fato. Deste jeito eu afirmo: nao vai ser nunca! Nem que a vaca tussa, o gato morto mie e a galinha tenha dente! Por isso o mundo está cheio de equívocos, de coisas medíocres. Eu, daqui, até entendo que nem todos tenham que saber o que é viver o Candomblé como religião. Contudo, é necessário minimamente compreender a sua complexidade. Em sua essência, digo-lhes: é igualzinha a qualquer outra Fé. Os caminhos é que possuem suas particularidades, somente. Depois de séculos de opressão que se perpetua até hoje, corporificada nas constantes manifestações de intolerância religiosa de que são vítimas o povo de Orixá, ou mesmo nos conteúdos discretamente revelados na escrita de cada um de vocês neste espaço virtual com a melhor das intenções (e eu sei disso!), honradas as raras exceções, a pós-modernidade nos dá chancela para existirmos com liberdade. Ou, melhor, co-existirmos com (e na) liberdade. Cristo, Olorum, Jeová, Maomé. Ciência. Religião. A minha inteireza não está na afirmação de uma metade que não me respeita em minha diversidade, em minha outra(?) riqueza. A humanidade precisa seguir e para isso o povo de Orixá tem muito a contribuir, na medida em que persiste no seu caminho de conquista incondicional da sua passagem. A diversidade mundial agradece. Não é ser africano sendo brasileiro, mas é ser o brasileiro que lhe faz sentido ser. Assim.

  • daniel carneiro, 1 de junho de 2010 @ 17:44 Reply

    ótimo artigo do cezar sobre o que pode estruturar um mercado artistico. fomentar vidas. sss://www.revistaglobalbrasil.com.br/?p=339

  • Roseli Oliveira, 2 de junho de 2010 @ 17:12 Reply

    Só tenho a dizer que concordo com o comentário do Erick Wolff8. Sincretismo como o que foi feito e se faz no Brasil, é veneno!

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