Mignone, acabo de passar uma noite em claro pensando contrariadíssimo no caso dos direitos autorais dos discos. Positivamente desisto de me manter nessa história. Por tudo quanto você me diz e me diz o Guarnieri, a coisa está cheirando a grossa maroteira de alguma casa comercial que não sei qual é, se a Odeon, se a Ricord. E vocês dois estão sendo vítimas disso. É mais um absurdo desavergonhado em que pensei toda a noite e matraqueei no meu espírito. Estou lhe escrevendo às cinco horas da manhã, à matinada caçoísta dos galos todos do meu bairro. Nós estamos os três, servindo de joguete de interesses comerciais alheios, e isso positivamente não pode ser. Não quero me meter nisso não. Só porque seria praticar uma injustiça com um amigo como porque não sirvo aos interesses financeiros de casas de negócios. E se a Odeon ou a Ricord ainda usarem do meu nome, eu faço barulho e tiro a coisa a limpo nos jornais. Se a rua do mundo põe lama nos meus sapatos, quero encontrar em casa sempre os mesmos piedosos olhares amigos que me esquecem desta lama. Arre!”. (Mário de Andrade em carta a Francisco Mignone – 20-03-1940).
O que tem assustado à velha oligarquia patriarcal é o debate nacional que está com o vocabulário renovado, trazendo um outro desenho à nação brasileira com uma geopolítica própria com características do povo brasileiro que não aceita mais que um projeto nacional seja frequentemente jogado na lata do lixo de forma subserviente aos interesses alheios ao Brasil.
A partir de agora a sociedade produzirá uma extraordinária contrapartida aos desequilíbrios e distorções estruturais que a fragmentavam, através não só das desigualdades sociais graves, mas da alienação de uma sociedade que não tinha a verdadeira noção de sua história e os destinos eram traçados sempre fora de uma abordagem real, onde não era considerada a opinião do próprio povo. Portanto, o Brasil a partir do governo Lula sai da condição de nação passiva e se transforma numa nação ativa. Este fato terá que ser contabilizado nas políticas públicas nacionais. É o fim das mentes cativas subvencionadas por uma produção de manchetes de conformidade. O Brasil agora aparece com uma linguagem fluida e veloz, mostrando-se uma nação ativa extremamente articulada como arma desarticuladora do motor único das classes dominantes. Cada vez mais o brasileiro toma consciência da riqueza do seu solo, do seu trabalho, do seu pensamento, enfim, da sua cultura.
O que se pretende com os ataques à participação cultural da vida brasileira quando a classificam como “fúria ideológica” não é outra coisa que não a tentativa de dissolução das ideologias. Nunca as utopias foram tão pertinentes, nunca as possibilidades reais nos deram condições tão concretas de realização dos nossos sonhos e de exorcizarmos as verdades absolutas. Hoje qualquer projeto dependerá de sua clareza para ter a combinação entre gestão e adesão da sociedade. O futuro será construído assim, com a participação de todos e não a partir do reino da vontade de uma ministra ou dos obstáculos que contrariem a força das massas.
É o fim da propaganda ostensiva e de sua ideologia hegemônica. A orientação hoje é outra. Para se ter uma produção representativa na esfera pública, o cidadão brasileiro cada vez mais terá que construir o seu próprio caminho. E o software livre será progressivamente veloz como serviço e instrumento de milhões de vozes. O que se precisa é identificar o fundo de cada questão.
Quando citei no cabeçalho a carta de Mário de Andrade a Francisco Mignone, quis deixar bem claro que nada tem a ver o software livre com a ganância das editoras e das gravadoras que são a própria imagem do Ecad que, por sua vez, é a própria imagem da gestão do MinC de Ana de Hollanda. Portanto, quando se tenta fazer uma campanha de vitimização da ministra, temos que lembrar que é a própria ministra que se revelou contra os movimentos da sociedade em prol dos interesses e da força dos símbolos que historicamente mais atormentaram o território cultural brasileiro. Portanto, espero que a simbologia ideológica de Mário de Andrade descrita em sua carta a Mignone sirva de fertilizante à ética e de símbolo de uma nova bandeira que revele o movimento da sociedade em substituição aos símbolos de baixos produtos intelectuais que estiveram sempre a serviço dos poucos negociantes do setor cultural.
Há uma metamorfose em marcha, característica do nosso período. E é esse conjunto de fenômenos que podemos classificar como obras públicas que administrarão a necessidade de uma outra informação. É a era da cultura digital. É a expansão e diversificação que o software livre dará a uma sociedade que caminha a passos largos para consolidar a sua democracia social, política e cultural.
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