A busca do Wellington não é por reconhecimento próprio. Isso ele tem de sobra. Ele quer reconhecer um lugar e um espaço para arte, além das instituições ditas culturais. Ele quer reconhecer também no outro o artista, o interventor, o protagonista. Da própria vida e de toda a sociedade
A lembrança mais distante que tenho dessa extraordinária figura que é o Wellington Nogueira localiza-se no saudoso prédio da Fradique Coutinho 701, em São Paulo. Lugar onde nasceu o Instituto Pensarte e havia uma comunhão de profissionais da cultura, que incluía a Pensarte (agora Brant Associados), a Vila Rica, a Cesnik Quintino e Salinas, que ainda trazia o “Azevedo” da nossa saudosa e querida Ana Carmo, à frente. Ele vinha para uma reunião – ou um bate-papo, o que pra mim não faz diferença – com uma bolsa cheia de apetrechos de palhaço. Vinha da filmagem do seu premiadíssimo “Doutores da Alegria”, o filme.
A razão do convescote era algo que incomodava o Wellington naquela época. Por que um trabalho genuinamente artístico e cultural como o do Doutores, reconhecido por todos os setores da sociedade, sofre um certo preconceito justamente do setor cultural? Isso me fez e ainda me faz pensar sobre os surtos de linearidade que muitas vezes o setor cultural nos impõe. Sempre que nos encontramos, e graças aos felizes acasos da vida, isso tem acontecido com uma certa freqüência, retomamos o assunto.
A busca do Wellington não é por reconhecimento próprio. Isso ele tem de sobra. Ele quer reconhecer um lugar e um espaço para arte, além das instituições ditas culturais. Ele quer reconhecer também no outro o artista, o interventor, o protagonista. Da própria vida e de toda a sociedade. Criador de um dos raros exemplos de ação cultural que se transforma em política pública, de maneira transversal, íntegra e complexa, Wellington nos cedeu um pouco do seu tempo e suas idéias a respeito da política pública de cultura. Mas antes, fiz questão de colher o seu relato sobre o próprio Doutores e a arte de fazer pessoas mais íntegras e felizes:
Leonardo Brant – Eu gostaria que você falasse um pouco a respeito do trabalho dos Doutores da Alegria. Qual o limite entre o social e o cultural? Existe essa diferença? E se existe, qual é?
Wellington Nogueira – Essa diferença é uma necessidade para que as pessoas possam se relacionar com seu próprio trabalho. Todos, para se relacionarem com algo, precisam dar um rótulo, uma identidade. Precisam encontrar uma conexão. O trabalho do Doutores e a experiência que eu tenho vivido, é que o conhecimento geral do impacto que ele causa é aproveitado de tantas formas, usado para tantos tipos de metáforas pelas pessoas, por vários públicos. Isso me toca muito. Enquanto que se você olha por uma vertente, vai ver um determinado ângulo, ao invés de ver o todo – porque este é complexo. De acordo com a minha história, com a minha formação de ator,de artista, este é um trabalho que nasce na cultura. E é uma cultura que é tão próxima e tão inserida na vida real, tão forte, que causa um impacto que pode ser lido como social. Por exemplo, dentro do Brasil, começamos a trabalhar em 1991. A partir de 92, 93, a gente ouve falar de um movimento de humanização hospitalar, que não é um movimento iniciado pelos Doutores da Alegria, que nunca entraram nos hospitais dizendo “viemos aqui para humanizar”. A gente nem sabe o que é isso e nem sabe fazer, a gente é palhaço. Sabemos ser bobos e levar alegria. A área da saúde reage tal qual a criança ao palhaço. É um trabalho forte, potente, e o povo da área da saúde fala “tem espaço para a mudança”. Então eles mudam, começam pelo visual, e sempre começamos a mudança por aquilo que a gente domina, que é a forma. Agora está se questionando a formação desses médicos e profissionais. Há uma mudança de postura, de atitude. Penso que o trabalho de um artista nasce para mostrar outras formas de ver e para oferecer novos caminhos, para você trilhá-lo ou não. Vejo toda uma área, como a da saúde, mudar de atitude, e esse movimento ser tão forte, tornando-se, em 1999, um programa de governo, como com a criação da secretaria internacional da humanização da saúde. O sonho de toda ONG é criar e influenciar políticas públicas. Em oito anos de atividade, eu nunca tive de ir a Brasília fazer um lobby para que humanização fosse assimilada. E de repente aconteceu. Eu credito isso ao impacto do trabalho artístico. Eu vejo no hospital, na área da saúde, uma mudança de cultura. Penso que qualquer trabalho é social quando bem feito, porque vive de desenvolver alguém, não só o remunerar, existe o caráter social. Porque no trabalho, o tempo que se passa dentro de uma instituição, o dispêndio de inteligência, o esforço a serviço da instituição, da causa, é sua obra autoral. Teríamos de ser capazes de ver isso acontecer no trabalho que escolhemos fazer. Qualquer atividade, em qualquer lugar, em que pessoas são chamadas para trabalhar, dando condições de desenvolvimento, de estímulo de mudança de olhar, isso para mim é um trabalho social. Não precisa ser com uma população específica, qualquer população é válida. Eu digo que o trabalho dos doutores, cujo berço é a cultura, através das artes cênicas, e por ser desenvolvido da maneira que é, causando impacto, tem uma conseqüência social.
LB – Você tocou em algumas palavras-chave na sua primeira resposta: a questão da complexidade. Se você trabalha com cultura, trabalha-se sempre com algo complexo. Mas as soluções implementadas pelo poder público em relação a atividades culturais são sempre lineares. Isso causa uma esquizofrenia social. A Lei Rouanet, por exemplo. Sem conseguir entender a cultura como algo complexo, você terá de desenvolver política de maneira muito linear: projetos, com categorias, as áreas, a prestação de contas contábil. Você vê algum horizonte de mudança dessa lógica? É possível, pelo paradigma de política governamental? Nas políticas não governamentais, você se vê daqui a dez anos tratando com o poder público de uma maneira em que as pessoas vão entender a complexidade do seu trabalho e vão potencializá-lo? Você enxerga essa possibilidade?
WN – É engraçado, porque um viés do meu trabalho é muito irônico. Apesar de eu dizer que eu nasço na cultura, dizendo que estou formando artistas profissionais, estou resgatando a arte e a cultura do palhaço, formando uma geração nova de artistas, com uma visão e metodologia muito específicas. A área em que vejo menos reconhecimento é da cultura: a área social e a da saúde me reconhecem. A minha área não me reconhece porque olha para mim com o parâmetro do espetáculo, do produto cultural, ao qual a gente está acostumado a lidar, que é o teatro, o cinema. Tanto que as leis de incentivo vêm para beneficiar somente este tipo de evento. Penso que esses espetáculos são empreendimentos, produtos, uma vertente do aspecto cultural, mas em absoluto pode-se considerá-los como cultura. Temos o hábito de considerar essa produção como sendo “a produção cultural do Brasil”, a cultura. Isso não é de hoje. Lembro-me quando voltei para o Brasil, tinha a tal da lei Sarney. Depois dela, o Collor entrou e implantou a Rouanet, havia a lei Mendonça. Definitivamente, existe até uma intenção de se olhar de maneira maior. Existe um conceito de que cultura é aquilo que você adquire quando sai de um lugar e entra num estabelecimento para adquirir essa cultura. Eu faço o caminho inverso. Não estou cuspindo no prato que comi, mas estou pegando tudo que aprendi – não como tendo saído do teatro ou do circo -, ampliando o alcance deles e levando para públicos que normalmente não teriam acesso a esse tipo de arte e interpretação. Levo não a meio-termo, mas com maestria, com excelência. Porque a pior coisa que você pode dar para um público é o meio-termo, o mais ou menos, que não causa impacto, nem mudança. Pode até entreter um pouquinho. Eu particularmente sou um cara que mostro uma, duas, três vezes. Não entendeu, eu prefiro não gastar minha energia tentando convencer alguém de que o que eu faço é bom. Prefiro ir fazendo, ocupando um espaço vazio, deixando as coisas claras. Assim como o governo, a área da saúde olhou o que estava acontecendo nos hospitais, e disse “isso tem que ser levado para o Brasil inteiro”. Faço votos de que, quem sabe, na cultura, a mesma coisa vá acontecer. Estarei sempre aberto a discutir, porque não há como você falar em cultura sem falar em diversidade, em complexidade, inda mais num país como o Brasil, em que cada bairro é como um estado completamente diferente, o que é lindo, rico. Em inúmeros aspectos, podemos explorar a cultura. A sensação é que parece que olhamos esse viés do espetáculo, o do produto cultural, da cultura que viaja para fora – através de um espetáculo ou de um filme, ou de um museu – e a gente se contenta com isso. É muito raso parar por aí. Tem outro aspecto: englobar diversidade, trazer essa complexidade, é algo de desafiador, que talvez muitas vezes as pessoas vejam a necessidade de se fazer assim: algo que é bom para todos. Eu não sei se a gente precisa desse desafio. Acredito que pode haver espaço para conhecermos tudo que está sendo feito, saber o que esta sendo feito. Acolher isso, acho difícil. Em relação à Lei Rouanet, tenho uma relação muito boa. Achei que eu ia ter que lutar muito para mostrar que o que eu faço é arte, cultura. Houve um tempo em que andei ameaçado de não ser considerado arte nem cultura. Mas as comissões que avaliam os projetos deram parecer positivo, todos viram o trabalho artístico e cultural que foi feito. Não é um espetáculo em que se paga ingresso, mas que é levado gratuitamente, para o público indistintamente. Quando você impacta a criança, envolvem-se os médicos, os pais, os profissionais de saúde. Trata-se de um público grande, em média 50 mil vistas por ano. Cada ano de trabalho vejo muito mais gente do que muito artista vê com casa lotada o ano inteiro, numa produção normal. Tudo aquilo que desafia os parâmetros, que inova, que causa desconforto e que mexe tanto na identidade, porque como nosso padrão cultural se baseia nesses produtos culturais, se eu não estou no teatro, então eu não estou na cultura. É dessa forma que a coisa é vista. Eu nunca fiz tanto teatro como desde a hora em que comecei a fazer doutores da alegria. Se você pegar o depoimento de qualquer doutor, você verá que eles dizem que voltam ao palco muito melhores, que o preparo. O hospital faz com que você volte para o palco muito mais tranqüilo, sendo conseqüentemente mais generoso com a platéia, com o seu colega. São tantas as vantagens. Eu prefiro ir fazendo meu trabalho e deixar que as pessoas o descubram.
LB – Os especialistas em políticas culturais sempre abordam uma questão que é a transversalidade. E a sua experiência pessoal mostra o quanto é possível fazer isso, por exemplo, diminuindo as fronteiras entre cultura e saúde para citar uma delas. Vejo no seu trabalho uma atividade de educação muito forte…
WN – Ele faz interface com todas essas áreas…
LB – Meu desafio aqui é buscar alternativas em políticas públicas pra lidar com a complexidade da cultura. Na sua realidade, como você enxergaria essa questão da transversalidade das políticas de cultura?
WN – Eu gosto muito dessa pergunta, porque eu acabei de viver essa experiência. Nessa minha ida a Buenos Aires. Como empreendedores sociais, tivemos o desafio de pensar em como podemos trabalhar juntos numa integração na América Latina de modo a introduzir ações globais mais impactantes. Foram escolhidos cinco eixos de atuação, e dentre eles, a diversidade era exatamente o transversal. Porque gênero, raça, todos os itens que fazem parte do que chamamos hoje de diversidade, tudo isso está dentro de diversidade. Todos falaram, “bom, isso é condição sinequanon de qualquer um dos eixos estratégicos”, mas o que acontece é que o conhecimento dessa diversidade é tão intelectual e cerebral que o pessoal que trabalha com a diversidade resolveu formar um sexto grupo, sexto eixo, trazendo para todos a visão da sua realidade que fez todos pararem e pensarem. Ficou claro que esse grupo sabe que nasceu com o objetivo de morrer logo, se ele fizer um bom trabalho. Quando falamos em cultura e transversalidade, o que eu faço hoje, para mim é tão fato consumado, e eu sei tanto disso, que me parece ser uma solução lógica a transversalidade. Mas a grande maioria não tem idéia do que eu estou vivendo. Tem um conhecimento completamente intelectual. Eles não têm noção da dimensão e do impacto. Nós, empreendedores sociais, vimos que não há como atuarmos em áreas, porque uma vai complementando a outra, e juntas, a gente vê a integralidade do trabalho dos empreendedores sociais. A gente via questões básicas. De que adianta você fazer um trabalho maravilhoso com uma população de jovens, numa região pobre, quando o trabalho feito detona o meio ambiente local porque há uma fábrica que vai fazer um produto, etc. Ficar parado nos nossos feudos só causa o bloqueio da nossa visão, e a limitação do campo de visão. Não se olha para o lado, a gente tenta fazer o máximo e pode estar fazendo o máximo de um lado, porém detonando de outro. É muito mais confortável ser dono de feudo. Não desfeudalizar, abrir, entregar- se para a complexidade significa não saber, não ter resposta, ter que assumir: eu não sei lidar com isso porque não sabemos, não fomos educados pra isso, fomos educados para sermos feudais, separatistas, cuidar do nosso, ao invés de trabalhar de maneira plural e unificada. Isso é muito novo. É uma mudança de cultura.
LB – Em se falando de feudos, você automaticamente está inserido, em termos de políticas públicas, dentro de um feudo, ou perpassado por vários? No campo da cultura existe o feudo das artes cênicas, existe uma visão setorial, a eterna crise das artes cênicas brasileiras… Recentemente o Paulo Autran foi fazer uma reclamação ao Ministro, exigindo cuidados quanto a esse setor, etc. Você acha que a saída do teatro é se fortalecer como área , como atividade, as políticas culturais nesse setor ainda são necessárias?
WN – Eu não gosto de feudo, de gueto, de classe. O que a profissão de palhaço mais me ensinou… eu já me apresentei em circo, em teatro, eu já fiz cinema, televisão. Eu penso que transitar é o maior bem que um artista pode ter e criar para seu desenvolvimento. E quanto às produções teatrais, é muito importante a gente ter todas as escalas, ter da Broadway ao mais experimental possível. Precisa se criar oportunidade para os autores, atores, os diretores se desenvolverem. Hoje você tem que correr riscos cênicos e artísticos com um mínimo de risco financeiro. O grande barato é você ter as várias escalas de produção. Eu tive a experiência de trabalhar com muitas companhias nos EUA que são dedicadas ao trabalho inédito, de fazer o que ainda não havia sido feito. Eu me liguei a essas companhias, que fomentam leituras de novos autores, produções em pequeníssima escala, que ficam em cartaz apenas um mês, porém havendo seis, oito produções por ano. Elas têm um público incrível, que compra ingressos com antecedência, e que faz questão de acompanhar o desenvolvimento de um artista, pra daí você ver aquele espetáculo que começou naquele teatrinho experimental chegar na ribalta do Teatro Cultura Artística para 1200 pessoas. É uma trajetória linda.
LB – O poder público em cima disso? Ajuda ou atrapalha?
WN – Penso que o poder público pode ter um papel muito importante no sentido de ver e compreender isso. Em São Paulo tem-se fomentado o teatro. Penso que tínhamos que ter mais financiamento pra o desenvolvimento, ter o fomento das artes cênicas e não só da parte artística. Também nessa área cultural, o fomento de artes ciências está sempre muito ligada ao artístico, e ninguém fala do técnico. Vai tentar fazer um curso de iluminação, veja a oferta de vagas no mercado, para cenógrafo, figurinista. Há muito trabalho a ser feito. Eu vejo o quanto o teatro se profissionaliza, essa é outra questão que me toca. Acho lindo você ter um empreendedor cultural, uma legitimação do trabalho artístico, criar um mercado que é tão forte que você produz independente do governo, que pode apoiar essas produções. Mas à medida que você vai crescendo, você precisa ter condições de fazer cultura. O que o governo poderia fazer é diminuir impostos, para viabilizar a produção cultural, para que você pudesse investir mais em produção cultural e ver retorno,e realmente criar o seu mercado. Quando um cara pudesse falar: “eu vivo de fazer produção teatral”, não a da Broadway, mas de pequenas produções. A gente, como cultura, só vai ser mercado quanto mais produção houver. Por exemplo, o Sebrae. Ele existe para o microempresário. Conheci isso por acaso, eles estão fazendo inserções na área da cultura, mas é uma iniciativa muito pequena, incipiente. Tínhamos que ser capazes de ter um mercado de produções cinematográficas culturais, poder fazer esse investimento, poder ter retorno disso e viver disso. Quando a gente cria essa economia cultural e esse mercado, o papel do governo é garantir que isso se perpetue. Existem várias formas de se investir, não é só dando dinheiro. O primeiro mandamento é nunca porás seu próprio dinheiro numa produção. Acho bonita essa idéia do aspecto da indústria do teatro que eu vivenciei, onde, por exemplo, a Broadway, pro governo, é um negócio como outro qualquer, muito rentável. Por exemplo, “O Fantasma da Ópera”. Ou um evento interativo em cartaz há dezoito anos. Quantos atores já passaram por eles, gente do mundo inteiro vêm vê-lo. Essa questão de a gente olhar como mercado, saindo dessa condição paternalista de querer jogar tudo nas costas de um órgão governamental, de querer que ele só dê dinheiro para a gente fazer as coisas. Penso que se tem de dar condições. Quando se quer desenvolver a agricultura, as taxas de empréstimo vão lá em baixo, linhas de financiamento com taxas de empréstimo muito menores são criadas, diminuindo alíquotas de importação. As mesmas coisas deveríamos ser capazes de fazer pela cultura, beneficiando a todos, igualmente. Eu faço hoje um trabalho de educar os atores para que eles gerenciem suas carreiras. É bonito ver como todos lá dentro criaram suas companhias, estão gerindo, aprendendo. Temos que aprender a fazer isso. Um ator, que é um artista que tem visão, arde se ele não materializar essa visão. Se ele o fizer sob a forma de um empreendimento, estará gerando um impacto social, empregando, disseminando, fazendo tudo aquilo que constitui o grande caldeirão da cultura.
LB – Você acha que o nosso paradigma de política pública setorial, ele atrofia de certa forma, a produção cultural? Com lei Rouanet, que cria essa dependência estranha quanto ao patrocinador, ao governo… Essa superposição de demandas artificiais não acabam afastando o artista do próprio fazer artístico e da própria relação com o público? Ou você acha que há uma saída viável a lei Rouanet?
WN – Penso que a lei Rouanet é um mecanismo. Como se tira proveito dele é que tem sido a questão. É um mecanismo imperfeito. Na minha experiência ele foi e é muito importante. Mas eu estabeleço critérios das empresas com as quais eu quero me relacionar e como que as ações são feitas, como se dá essa relação. Uma das reclamações que eu vejo é o investidor ter 100% de abatimento. Então torna-se muito mais um mecanismo fiscal. Ele não precisa necessariamente estar envolvido ou fazer um investimento do bolso dele. A lei Mendonça previa 70% apenas, mas no fim, acabamos vendo um monte de gente fazendo acordo por debaixo do ano para ter que devolver os 30%. No meu caso, quando houve um caso semelhante, eu não aceitei. A relação de patrocínio acabou não acontecendo.
LB – Há um novo agente na área da cultura, que tem uma importância fenomenal. As políticas públicas de cultura dependem desse agente, que já se fazia presente de outras maneiras. Mas hoje ele está ditando para onde que vai o investimento. São as grandes corporações, que pelo limite de imposto de renda, só vale a pena aquela as que têm grandes volumes. Elas se tornaram um agente importante, os bancos, empresas de grande porte. E essa relação, ela está sendo saudável?
WN – Acho que ela é limitada, porque toda a empresa deveria ser capaz de investir em cultura e ter uma dedução. Se nós artistas lançássemos mão de mecanismos, por exemplo, sob uma estrutura de uma OSCIP, eu poderia ter uma companhia de teatro voltada para o desenvolvimento do repertório de autores negros, e fazer toda uma programação voltada para o olhar do autor negro, da questão da raça negra, enfim, poderia fazer todo um trabalho com uma perenidade, uma continuidade. Poderia ter assinaturas e criar uma platéia, um público, e atrair uma comunidade que apoiaria esse trabalho. Se você cria um mecanismo em que só quem investe, quem tem grandes somas de dinheiro, isso cria um tipo de monopólio. E faz com que todo mundo vá bater na porta das mesmas pessoas. Uma experiência muito bonita que a gente viu ocorreu nas empresas desconhecidas, e a catequese sobre investimento na cultura. A partir do investimento feito do Doutores, desenvolvemos uma relação com essa empresa, onde a gente levava palestras, publicações, relatórios mensais das atividades. Essas pessoas puderam se interessar e investir mais. Não só em nós, mas estimulamos a investir nos seus entornos. O que aconteceu, muitas vezes, é que elas pararam de investir na gente para investir localmente. E é assim que o investimento tem que ser: ele potencializou a mim e a quem investiu, e está levando todos nós para o próximo passo. O investimento, mesmo a fundo perdido, tem que nos levar para um passo além.
LB – E dá para deixar isso nas mãos do mercado? Ou o Estado tem que regular essa relação?
WN – Falta educação. Tivemos 21 anos de uma ditadura em que os artistas eram os que tentavam romper os cercos, e também os artistas se acostumaram um pouco com o fato de que há um grupo de gente que toma conta, decide. Sair desse tipo de cultura para começar tudo da estaca zero não é fácil. Eu acredito que há maneiras hoje de começarmos a criar novos mecanismos mais independentes do governo. Se mais empreendedores culturais organizassem suas companhias, se criássemos essas companhias de repertório, de envolvimento, de fomento, englobando uma comunidade, partindo mesmo da criação de platéias, pode-se fazer um trabalho forte que mostra o modelo. A grande vantagem de estarmos onde estamos é a gente meter as caras e tentar criar modelos novos. O grande barato é que existe um espaço enorme para ocuparmos e ficamos focados muito nas mesmas coisas. Certa vez um consultor me replicou, quando eu lhe disse “eu queria que o final dos Doutores fosse uma organização voltada para a formação”. Eu quero poder ajudar a todos, dar formação para qualquer grupo ou pessoa que queira fazer esse trabalho. Ele disse, “você vai nutrir essa concorrência, vocês vão lutar pelas mesmas verbas?”. Então eu pensei comigo mesmo, o que é a minha concorrência? Não é o cara que quer fazer o mesmo que eu. Mas a falta desse cara bem treinado. Acredito que se nós artistas nos dispuséssemos a usar nossa criatividade para criar novos modelos…somos batalhadores e empreendedores. Mas às vezes investimos muita energia na reprodução dos mesmos modelos, ao invés de criar novos e buscar novas opções para preencher esses espaços que estão vazios. Penso que temos condições de criar opções e mostrar, “olha, governo, apóia isso, olha por aqui,”. A gente faz a nossa parte, o governo faz a dele. Definitivamente, o aspecto de um governo ter na sua pauta o desenvolvimento e o fomento das artes, da cultura, sob a ótica empreendedora, visando uma economia, é totalmente plausível. É algo que demanda um investimento grande em educação,no sentido de formar o artista para ver esse lado. Mas penso que pode ser um passo muito importante no sentido de criação desse mercado novo, dessas regras novas. Temos que inovar, fazer fora do palco o trabalho que fazemos no palco.
LB – Fale um pouco do governo Lula e da gestão Gil. Qual a sua percepção? O que trouxe de diferente e para onde apontam os novos caminhos?
WN – Nos oito anos de governo Fernando Henrique, na minha relação específica com a lei Rouanet, em nenhum momento houve qualquer dúvida quanto ao meu trabalho ter seu berço na cultura, causando um impacto social. A partir do governo Lula eu fui muitas vezes questionado dentro do meu projeto, se o que eu fazia era cultura ou não. Eu tive medo de soluções rápidas, autoritárias e unilaterais. Por um tempo eu buscava interlocução, e ela não vinha. Ou fazia questionamentos, explicava meu ponto de vista, e a resposta era: “agora é assim e acabou, tem que se adequar”. Por esse aspecto é uma construção. Mas eu privilegio aquelas em que você pode participar, pode manter uma relação aberta. Eu vi acontecer uma iniciativa, não sei o quão bem sucedida ela foi, mas sei o custo que foi para ela sair, a falta de verbas, e sempre aquela expressão que mantém aquela condição de mendicância cultural, que foi o evento dos Pontos de Cultura, a Economia Criativa. Juntar todos na Bienal para unir os que trabalham com cultura no Brasil. Eu acho muito bom que essas iniciativas existam, e ao mesmo temo, quando se vê as condições em que elas foram feitas, vemos que ainda temos muito para fazer. Nesse governo Lula, em termos de cultura, vi nascer um pouco de oportunidades para essa disseminação, com a criação dos Pontos de Cultura, ao mesmo tempo a inserção do conceito da diversidade nos projetos – de raça, credo, cultura. Quando o tema era diversidade e se falava do nosso trabalho, éramos confrontados com a frase: mas o trabalho de vocês é só hospital, não é show, não é espetáculo, não é exposição. Ao mesmo tempo que se inova de um lado, abrindo-se espaços, fazendo-se investimentos para que vejamos toda a extensão das nossas cores e raças, há aqueles que ainda avaliam as coisas segundo o modelo do passado. É paradoxal. ”Vocês não se enquadram”, eu ouvi muito isso, o que é altamente excludente. Eu vou gastar minha energia para mudar a cabeça de uma criatura? A sensação que tenho é que a maneira de se trabalhar com essa diversidade toda é a seguinte: existe o que conhecemos – o establishment -, e o resto. É assim que se trabalha com diversidade. Só que se fosse tudo aquilo que não é e se fosse recebido dessa forma… olhamos o establishment com esses olhos. Criar cultura é criar a possibilidade daquele trabalho que não é establishment ser posto no teatro. Essas institucionalizações, essas divisões, essas setorizações acabam fazendo com que a gente pense dessa forma. Se fosse feito de uma maneira ampla, se houvesse um olhar, para entender, buscar as integrações… Meu Deus, o grande lance é um pólo viajar para o outro. Não é lindo você pegar a rendeira do Nordeste do Ponto de Cultura e colocar ela num filme, levando-a para o teatro, fotografá-la? Quanto mais a gente setorizar, menos a gente vai se permitir ver essas possibilidades, que é um caldeirão. Essa ebulição tem que gerar um amálgama dessas coisas todas. É lindo quando um ator que está ganhando uma fortuna no cinema vem se dispor, fazer questão de correr um risco, e vir trabalhar com uma companhia minúscula, sem fazer alarde. Porque ele quer melhorar, fomentar. A gente tem que ser capaz de transitar, e parar de dizer “ ah, isso que você faz é uma coisa, é diferente do que eu faço”, e ao dizer isso, já emitir esse julgamento. Nós artistas sempre dissemos aos outros para alargarem os horizontes, abrir a mente, para ter um outro olhar. Temos que fazer isso com a gente mesmo, temos que exercitar isso um pouco. Nós todos nos trouxemos até aqui. Não é culpa de uma coisa ou de outra. Claro que vimos às vezes ações contundentes, como quando o Collor acabou com a Embrafilme. Olha o esforço que temos em se fazer filme de novo, e levar platéia brasileira para vê-lo. Isso a gente leva gerações para conquistar, é um desastre. É arregaçar as mangas. Por outro lado, em condições normais de temperatura e pressão, acho que é muito importante para os artistas e fazedores culturais fuçar, buscar integrações, fazer o novo, apresentar modelos, pensar futuro, planejar estratégia, etc.
LB – Para se fazer política pública é preciso fazer política, ou basta fazer cultura?
WN – Eu acredito que sim. O movimento “Arte contra a barbárie”, que criou um movimento de fomento, em São Paulo, é uma tremenda conquista, foi um belo trabalho.
LB – Mas o que aconteceu com o movimento depois que os grupos que o encabeçavam conseguiram o dinheiro do fomento?
WN – Sob esse aspecto eu acompanhei muito de longe.
LB – O movimento social na área da cultura não está muito instrumentalizado? Não vemos uma releitura da relação Estado-artista da ditadura. É só fazer um barulho e ganhar um cala-boca em troca?
WN – Eu te devolvo uma provocação. Será que a gente não pode dizer que da mesma forma que o uso da lei Rouanet acabou sendo deturpado, o uso do fomento também foi deturpado?
LB – O fomento é muito bem usado. A questão é o movimento?
WN – Por exemplo, se antes a lei Rouanet era 99% do meu orçamento, hoje ela é 50%. E o meu objetivo é zerar, não depender mais. Estimular quem investiu em mim, em fazê-lo em programas semelhantes bem estruturados. Hoje eu faço o diálogo com os programas semelhantes no sentido de fomentar. Eu quero fortalecer esse meio. O meu objetivo final é que o que eu faço hoje seja uma profissão de cultura, eu quero que seja uma escolha que um ator, olhando as mídias, vá buscar na nossa fonte a formação para interferir na vida real. A classe artística tem energia, precisa começar a explorar modelos novos e se dar a oportunidade de criá-los. De repente, você não consegue a grana nem do governo, nem de um patrocinador grande. Mas você consegue mobilizar uma comunidade. Temos que inventar,senão será um número cada vez maior de gente lutando pelas mesmas verbas. A luta fica sempre a mesma.
LB – Por um espaço compartilhado em detrimento de um espaço competitivo…
WN – E o artista poder transitar por todos os cantos, se aprimorar, fazer todas as mídias, todos os meios, estar hoje numa produção de 1200 pessoas em sessão e amanhã numa de 25, e sobreviver disso. Somos capazes de fazer tudo. Às vezes ficamos tão dependentes de uma estrutura que acabamos não enxergando outras maneiras de viabilizar. Não podemos também fazer tudo e o governo se desobrigar. Temos que lutar para conseguirmos cada vez mais infra-estrutura. Hoje até educação, informação, são recursos fundamentais. A formação empreendedora, por exemplo. Focalizar a energia do artista, ajudar a eles e àqueles que amam as artes e que não estão em cena a poder potencializar os artistas e seus trabalhos. Viemos discutindo toda a formação do empreendedor cultural, do produtor cultural, o gerente cultural, é isso que tem que começar a existir. Tem que ser o cara da Sala São Paulo, tanto quanto os Doutores da Alegria, quanto da companhia mínima de teatro, de gente que trabalha com a história do dedal, sabe? Nesse aspecto não sobra espaço para dogmas. Tudo vira aprendizagem, tudo vira construção. Precisamos ter uma noção de onde queremos chegar. A sensação que tenho às vezes é que queremos chegar ao próximo espetáculo, até a próxima apresentação. O momento é oportuníssimo para fazermos isso. Cada coisa nova que nasce, como fomento, Rouanet, vamos debater, aperfeiçoar. Acho difícil apontar para um só lado. Temos que ver as inconsistências e consertá-las. Temos que começar a nos dar o desafio de criar o novo e fazer o que não foi feito para mostrar exemplos bem sucedidos. Porque todo mundo que opta por trabalhar com cultura teria que ser capaz de sobreviver disso e não pedir desculpas, por ser artista. Eu fui contratar seguro para profissional autônomo, para o meu elenco, mas artista não pode, é só engenheiro. Não somos reconhecidos, porque a gente não é mercado. Temos que criar um mercado de verdade, sólido. Não tem que haver barreira, mas espaço para todo mundo. Temos que olhar a criação desse mercado com os mesmos olhos que nos é demandado de olhar o espetáculo, a cena. Nós como artistas não aprendemos a fazer isso?
Leonardo Brant