Foto: MorBCN
Se há um ponto positivo em todo esse processo de discussão da Lei Rouanet e proposta do Profic este ponto é o Vale Cultura. Considero acertadíssima a decisão de desatrelá-lo do projeto original (cheio de problemas, ideologismos e interesses em jogo), para correr em paralelo com a proposta do tíquete para o consumo cultural. Contra a relação de ganha-ganha que propõe teremos apenas o tempo e as futuras distorções que ele poderá gerar. E vai gerar, se continuarmos com esse défcit de mecanismos de financiamento crônico.

A matéria publicada hoje por Jotabê Medeiros no jornal O Estado de S.Paulo relata bem o projeto. Acompanhe:

Tíquete para a cultura

Jotabê Medeiros

A gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão e arte, dizia a letra da música dos Titãs. Na próxima quinta-feira, às 18 horas, no Teatro Raul Cortez, na Federação do Comércio (Bela Vista), em São Paulo, começa a se estruturar um dos tripés dessa pequena utopia. Será assinado, com a presença do presidente Lula, o projeto de lei que cria o Vale Cultura.

Será o segundo projeto de criação do Vale Cultura a ser encaminhado ao Congresso. O primeiro tramita há três anos na Câmara e já passou por todas as instâncias (foi aprovado nas comissões por unanimidade). Mas o problema do Vale Cultura dos deputados é de verba, já que ele pediria a criação de uma despesa orçamentária extra, o que é proibido pela Lei de Responsabilidade Fiscal.

O Vale Cultura do governo Lula, por seu turno, pretende abraçar a proposta do Congresso e dar-lhe efetividade. O tíquete será subsidiado pela renúncia fiscal. O mecanismo consiste na adoção de um bônus mensal de R$ 50 para que o trabalhador gaste com consumo cultural – cinema, artes cênicas, literatura, artes visuais, audiovisual, música e patrimônio cultural. É uma variação de outras modalidades de bônus, como os vales refeição e transporte.

O “tíquete plateia” poderá atingir até 14 milhões de trabalhadores no País e injetar, de forma direta, cerca de R$ 600 milhões por mês no mercado cultural – uma inoculação anual de mais de R$ 7 bilhões no mercado (sete vezes mais do que a Lei Rouanet inteira anualmente).

Funciona assim: do valor mensal unitário de R$ 50, o governo entra com 30%; o empregador pagará 50% (terá renúncia fiscal de até 1% do Imposto de Renda devido); e o trabalhador, 20% (ou R$ 10). Apenas empresas que pagam impostos com base no lucro real poderão disponibilizar o vale-cultura aos trabalhadores.

“É um instrumento de acessibilidade”, considerou recentemente o ministro da Cultura, Juca Ferreira, em entrevista a uma emissora estatal. “Porque toda empresa que paga imposto, de lucro real, vai poder disponibilizar (o vale) para os seus trabalhadores e, evidentemente, os trabalhadores vão reivindicar isso por meio dos seus sindicatos e centrais sindicais. Tende a se generalizar, como o vale-refeição.”

O Vale Cultura do Congresso foi proposto em 2006 pelo então deputado (hoje ministro) José Múcio Monteiro (PTB/PE), e enfrentou diversas etapas de aprimoramento. Atualmente, repousa na mesa do relator da Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania (CCJC), o deputado Augusto Farias (PTB-AL) esperando assinatura.

O governo pediu autorização ao ministro José Múcio para encampar sua proposta e incorporar mecanismo concreto de financiamento do projeto. “A gente não quer a autoria, quer apenas que o Vale Cultura aconteça. Vamos aproveitar o que a Câmara já fez “, disse Alfredo Manevy, secretário executivo do Ministério da Cultura. Segundo Manevy, pelo “grande consenso” em torno da ideia, a expectativa é que a lei tenha tramitação rápida e entre em ação ainda este ano.

De fato, o Vale Cultura tem reunido apoios importantes. A Federação das Indústrias do Estado de São Paulo apoia o mecanismo, assim como as centrais sindicais. Na sexta-feira, durante o XI Fórum de Governadores do Nordeste, em João Pessoa, Paraíba, todos os governadores da região divulgaram uma carta, que diz: “A atual proposta contém medidas inovadoras para a política brasileira da área, com efeitos positivos para o desenvolvimento do Nordeste. Promove a desconcentração regional e setorial do acesso aos recursos de fomento; amplia mecanismos de financiamento, indo além da renúncia fiscal; e democratiza o consumo cultural, através do Vale Cultura.”

Em São Paulo, o governo do Estado já desenvolve ações do tipo, como a distribuição de 2,5 milhões de bilhetes de cinema por ano para alunos da rede pública de ensino. João Sayad, secretário de Estado da Cultura, vê com bons olhos e apoia a chegada do novo Vale Cultura.

“A política cultural do País apoia artistas e criadores através de gastos orçamentários e renúncias fiscais em todos os níveis da federação. Entretanto, não há nenhum apoio financeiro para o público. Num país de ricos e pobres, há um grande contingente de brasileiros que não tem renda suficiente para ir ao cinema, ao teatro ou a outro tipo de evento cultural”, ele pondera. “O projeto de lei que institui o vale cultura, análogo ao vale transporte ou ao vale refeição, corrige e preenche uma lacuna importante das políticas culturais do País. Assim como o vale-transporte ou refeição, criará um mercado importante para a cultura no País”, afirmou Sayad.

Há ainda diversas dúvidas sobre o funcionamento do sistema (por exemplo: as empresas terão de ser credenciadas?). O governo promete responder a elas a partir de segunda-feira.

CINCO DÚVIDAS

1. O vale-cultura não poderá ser usado em outros fins, como por exemplo para comprar cigarro, em vez de para consumir cultura?

O governo acredita que a troca (ou escambo) do vale por produtos é um efeito “marginal” do uso, e equivale a uma perda pequena, da mesma forma que o Vale Refeição. Não vai prejudicar o uso essencial.

2. Esse valor não é irrisório, face ao déficit cultural do brasileiro?

O valor baixo, segundo o projeto, é para desestimular fraudes tributárias (pagamento de verba salarial por meio do vale).

3. O vale-cultura poderia ser usado para consumir produtos informais, como os CDs do tecnobrega paraense?

Não é recomendado. O espírito do projeto de lei é aumentar a arrecadação de tributos, além de gerar mais empregos e criar um círculo virtuoso. A produção citada não tem taxação.

4. O vale-cultura poderá ser usado por qualquer trabalhador, desde aquele que ganha salário mínimo quanto o executivo que ganha R$ 60 mil?

Não. Apenas por trabalhadores de baixa renda. A ideia é democratizar o acesso à cultura (o trabalhador que ganha bem já pode consumir cultura).
5. O trabalhador pode levar a mulher ou algum filho ao cinema com o vale-cultura?

Pode. O problema é que vai gastar seu tíquete muito rápido, mas é permitido.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

7Comentários

  • Felipe Lindoso, 17 de julho de 2009 @ 11:17 Reply

    Leo,

    Realmente é uma boa ideia desvincular a questão do vale cultura do resto da proposta de mudança da lei de incentivos.
    Vale lembrar, porém, algumas coisas:
    a) o benefício continua restrito aos empregados das grandes empresas. Tudo bem que os trabalhadores da Vale, da Petrobrás, dos bancos, etc., possam se beneficiar do vale cultura. Mas certamente não estão entre os mais necessitados. Os trabalhadores das empresas de pequeno porte continuarão fora disso, assim como os assalariados em geral que poderiam usar parte do seu imposto de renda para desfrutar o vale cultura. Lembre as contas do meu artigo sobre a concentração dos benefícios nas grandes empresas que estão enquadradas no regime do lucro real.
    b) Resta saber quais serão os mecanismos usados para efetivar o benefício. Se for mantida a burocracia dos projetos da lei de incentivos fiscais, o universo dos beneficiados continuará reduzido, pois mesmo empresas que estão no lucro real podem não se interessar por estender esse benefício aos seus empregados;
    c) A manutenção do benefício do vale cultura aos empregados das empresas que estão no regime do lucro real mostra a importância do MinC diante dos burocratas da Fazenda, em especial os da Receita Federal.
    d) O porcentual de abatimento do IR das empresas será somado aos dos incentivos da lei de incentivos fiscais ou será contabilizado a parte?

    Essas questões não foram respondidas no material publicitário “vazado” pelo MinC para alguns jornalistas. Teremos que esperar para ver o projeto formulado para poder tirar conclusões mais precisas.
    De qualquer forma, na medida em que o MinC assume a tramitação do projeto de lei do deputado Múcio (hoje ministro das Relações Institucionais), o embate se transfere para o Congresso, onde algumas distorções poderão ser corrigidas, se houver uma articulação decente para isso.

    De qualquer forma vale a nota positiva: haverá dinheiro novo para o CONSUMO de bens culturais, e não apenas para a produção dos mesmos. Isso é importantíssimo.

  • Deolinda Vilhena, 18 de julho de 2009 @ 16:29 Reply

    Vocês se lembram do que aconteceu com o ticket do leite? Vocês sabem bem como é usado o ticket refeição? Pois é o vale cultura vai ser apenas mais um instrumento da contravenção instalada no país…

  • Índio, 19 de julho de 2009 @ 8:44 Reply

    Na real tudo vem com uma boa intenção e embalado bonitinho,depois cai na mão dos corruptos e ai começa o perigo.
    Confesso que não acredito mais em nada. (Ongs, governo,políticos hipócritas etc…)

  • Mariana, 23 de julho de 2009 @ 9:26 Reply

    A idéia do vale-cultura cultura é boa, no entanto restrigem-na apenas para trabalhadores de baixa renda de grande empresas. R$ 50 ao mês é muito pouco se for colocá-lo em contraponto aos preços absurdos de cinema, que o ingresso chega a R$ 17 e peça de teatro que chega a R$ 30.

    Espero que o Governo, limite valores de ingressos.As pessoas acabam não consumindo tanto a cultura devido aos altos valores que se paga por um ingresso.

    não acredito que o vale-cultura vá ajudar ou aumentar o cosumo.

  • Daniele Boechat, 23 de julho de 2009 @ 15:04 Reply

    Acho sim a idéia da democratização e acesso à cultura a todos. Porém, minha dúvida é exatamente no que tange à forma que será incentivado o acesso à cultura. Teremos sessões de cinema, teatro, shows com preços mais baratos? O ideal seria para a utilização do vale-cultura vinculá-lo a preços mais em conta e também a divulgação de temporadas populares. Desta forma, a equação seria mais adequada assim: o valor de R$50,00 com preços mais acessíveis, e a conscientização de que a cultura é fundamental para o desenvolvimento sadio da população. Enfim, não basta colocar o evento de graça na praça, há que se educar o povo p a consciência de que o evento é importante para o mesmo. Se nosso povo soubesse da importãncia da cultura em si, quando houvesse apresentação de uma Filarmõnica, o evento lotaria de gente. E infelizmente, não é isso que ocorre. Poucos vão, pois poucos sabem e entendem a beleza de um evento como este. Acredito na comunhão das ações, na atuação tanto na causa como no efeito!

  • pedro bertholdo - Ijui, 23 de julho de 2009 @ 15:42 Reply

    Basta da Lei Rouanet, o que o Estado tem é que incentivar a cultural e as artes, financiando pequenas salas para estas finalidades locais. Seguramente no Brasil mais 4000 municipios não tem cinemas, museus, pinotecas, videotecas, etc.

    Chega de apoiar os medalhões de nossa cultura.

    Bertholdo

  • Helio Rosa, 23 de julho de 2009 @ 15:49 Reply

    Qualquer restaurações dos velhos teatros no Brasil, custa o olho da cara. Até as vezez as obras são subfaturadas, duas os tres do preço inicial. Nada de obras faraonicas, teatro simples e acessivel a população. Não acredito neste vale-cultura, sou pessimista, aliás já aconteceu com os incentivos do turismo do trabalhador através da Caixa Economica Federal, salvo melhor juízo, parece que terminou.

    Helio Rosa

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