Neste mosaico de virtudes capitalistas que produziu a genealogia da moral do lucro, o caldeirão especulativo ergueu seu estandarte. Há a partir do grito comandado por Gil, “independência ou arte!” por 1% do orçamento federal para a cultura da esbórnia da libertinagem capitalista que assistimos nesses anos. Na tentativa de obter apoio político da classe de captadores, Gil tremulou essa bandeira na tribuna de honra, aonde a cartolagem aplaudia entusiasticamente à mascote do time da “sagrada família”, o ornitorrinco cultural.
Não é à toa que Gil é uma espécie de padre Cícero da catedral dos resistentes às mudanças da Lei Rouanet. Mas ali naquele momento estava pintada, em cores tropicalistas, a lambança psicodélica que viria de um pensamento canastrão que, por obra da auto-proclamada revolução pop brasileira, o tempo criativo estava paralisado nos doces bárbaros.
Agora senhores, juntem tudo isso à ditadura das técnicas impostas, sobretudo, pela máfia da batuta que se escamoteia debaixo do manto de inclusão pela cultura, uma espécie de mistérios britânicos, para nos devolver ao Brasil pré-colonial, porque como bem disse Mário de Andrade, essa gente não tem grandeza nacional nenhuma, e carece de um afago da crítica européia e, consequentemente, a ausência de uma grandeza social que poderia ser nutrida com a valorização e o estímulo às novas criações, que são torpedeadas pela verdadeira febre de efusões líricas. Para eles, na prática, as suas nórdicas visões migradas para essa fase da pré-história, o Brasil é um caldeirão de exotismo vitória-régia. E nós, os ameríndios mata virgens, estamos a nos estapear para, em busca de sensações fortes, nos degladiar com jacarés e misticismos.
O ambiente devastado que hoje assistimos após os anos Rouanet de praga de gafanhoto quase nos leva ao deserto criativo, flagra muito mais toda essa contradição do que a última estatística do IBGE que mostra que o lobbie irresponsável dos cineastas dentro do MinC produziu o mais espetacular furo n’água que a história da cultura institucional brasileira produziu. Nos últimos anos, comandados pelo bacamarteiro Gilberto Gil, o Ministério da Cultura obedientemente irrigou com vultosos recursos o apetite sem fim dos tubarões do cinema, num país, segundo estatísticas oficiais, em sua quase totalidade, não tem salas de cinema. Isso porque aqueles que vivem desse escandaloso privilégio e se rebelam contra as mudanças da Lei Rouanet transformam-se em chefes de torcida contra o juízo mínimo e vociferam falácias de que o Estado concorre com o mercado. Que mercado? Apresentem-me, por favor! Os gafanhotos do capital comeram literalmente a fruta da cultura com caroço e tudo. Não houve nesses anos todos de Lei Rouanet nada que não fosse uma matéria inerte saída da concepção dos idealistas das oratórias abstratas do mercado cultural.
A idéia dominante da sagração da ganância se incumbiu de rechear um texto repleto de mentiras em nome de uma ordem social que matasse na fonte a criação dos artistas brasileiros. Eleitos pela manobra colonizadora como “crítica absoluta” o humanismo especulativo transformou-se em sebo, contrapeso e a filosofia de ilusões recebeu da gazeta literária dos bem nascidos, manchetes de revolução da inclusão pela cultura.
O que temos mesmo nessa massa de flagelo é uma quantidade de visões estrangeiras que promoveu uma blitz para estorquir a cultura brasileira. O egoísmo funesto matou nos últimos anos, o que há de mais orgânico no seio da sociedade, a missão criativa através de um rico caráter construído pelo povo brasileiro que foi demolido, assim como se implode um prédio, e a dialética das operações matemáticas instituíram a comprovada carta de naufrágio às artes brasileiras, com o título de “Mercado Criativo”. Chamar isso de mercado criativo é um insulto à aplicação de qualquer raciocínio lógico. A ousadia dessa gente está carregada de pólvora e de indiferença com qualquer interpretação que traga um mínimo de dimensão criativa. O que há mesmo na verdadeira imagem autoritária é uma fábrica de artefatos militares típicos de golpistas que não conseguem impor suas metas pela persuasão e utilizam todo o seu arsenal bélico para impor seus assentamentos.
Estamos a um ano do término desse ciclo fundado pelo músico Gilberto Gil que simplesmente dos seus ouvidos mocos para as novas criações musicais brasileiras a imagem de sua administração.
A partir de agora teremos a difícil tarefa não só de discutir o último ano desse ciclo, mas também da próxima gestão. Fica então uma pergunta, como ter profundidade num debate científico de cultura se a principal matéria-prima, a criatividade, simplesmente foi abatida nos fóruns de cultura?
O singular espírito que tomou conta da pedagogia “revolucionária” é mais arcaico textualmente do que a postura de D. João VI que, mesmo com toda a crítica colonial que se faça a ele, estimulou a criação artística brasileira. O governo, ao contrário do que o filósofo especulativo apregoa tem que governar. O Estado tem que se responsabilizar pelo fomento às manifestações da criação artística contemporânea. O abstracionismo retórico que acusa a sociedade através do seu governo de intervencionista quer a chave do cofre em suas mãos. O dogma de que a cultura depende cem por cento da tutela dos bancos privados para administrar o dinheiro público, é um declínio dos mais absurdos para qualquer conceito de soberania nacional.
Não existe forma de harmonizar a liberdade criadora com a imagem do país que não seja pelo artista. Não tem como governar se justificando, com o chefe da milícia captadora desse “oráculo luminoso dos tubarões dos recursos públicos”.
Continuo radicalmente contra a lei Rouanet, por entender que ela é uma fábula construída na calada da noite pelos maus espíritos públicos que sempre rondaram o poder. Revolucionário, pra mim, é decapitar esse lixo neoliberal chamado Lei Rouanet, e fazer o enterro em praça pública desse símbolo da cobiça dos ortodoxos da teologia do capital.
Um Estado moderno deve ter a decência de dignificar sua arte, sua criação, sua história que sustenta os elementos vitais de um sentimento de nação. O internacionalismo ficcional que a questão “neoliberal” quis nos enfiar goela abaixo é um retumbante retrocesso que promoveu o absoluto deserto na principal mola propulsora da cultura, a criação artística contemporânea.
Espero, sinceramente, que o Ministério da Cultura faça deste ano que se inicia um ano que privilegie a criação artística, o ineditismo, autor. É preciso reconhecer esse erro e estabelecer uma outra norma, longe da repressão do pensamento empresa.
A ansiedade cruel foi o castigo bárbaro que toda a sociedade pagou por não perceber a fúria fria que os encarregados do negócio da cultura impuseram à criação artística brasileira.
Minha aversão imita esses soberanos e, na mesma monta em que acreditaram que a nova criação deveria ser extirpada para dar lugar ao caráter hipócrita de evolução cultural pelo mercado, a minha fúria fria, mas garanto sublime para a arte, é a destruição absoluta da egoísta contradição chamada Lei Rouanet e suas afiliadas.
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