Ana Paula Sousa, da Folha de S.Paulo e Jotabê Medeiros, do Estadão, fizeram uma disputa de alto nível nos jornais de hoje. As coberturas sobre o novo projeto aventureiro do Ministério da Cultura introduzem muito bem ao complexo assunto, tão importante quanto o financiamento à cultura. Estamos falando do projeto de alteração da lei de Direito Autoral, que o MinC colocará em consulta pública.
A reincidência dos processos, comparados ao Profic, são incríveis. Criação de mais um órgão estatal que se sabe a que veio, a falta de respeito e de diálogo com organizações que operam, pesquisam e lidam com a matéria a ser regulamentada, a arrogância e o ímpeto estatizante de quem tem certeza que vai continuar no poder por muito tempo. Eu não estaria assim tão certo.
Acompanhe a íntegra das matérias:
Letra morta
Folha de S. Paulo – Ana Paula Sousa
Começam a vir à tona, hoje, os principais pontos da reforma do direito autoral planejada pelo governo brasileiro. A Folha teve acesso às diretrizes do anteprojeto de lei preparado pelo Ministério da Cultura (MinC) em parceria com acadêmicos e juristas. Antes mesmo de tornar-se público, o texto já causa divergências.
A iniciativa inclui-se num movimento mundial de revisão de leis que, simplesmente, não servem mais. Baseadas na Convenção de Berna, de 1886, as leis de direito autoral regem um mundo que deixou de existir. “Elas têm origem no século 19. Uma coisa é falar de partitura, outra é falar de sampler, que é mais do que uma cópia, é a recriação de uma obra”, exemplifica o professor Marcos Wachowicz, da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), organizadora do 3º Congresso de Direito de Autor e Interesse Público, que acontece hoje e amanhã, na Fecomercio, em São Paulo.
No encontro, especialistas vão debruçar-se sobre o texto alinhavado pelo MinC a partir de um diagnóstico do setor cultural. Com isso, será dada a largada oficial para a revisão da lei em vigor, aprovada em 1998, como atualização de uma lei criada em 1973. O texto atual trata como ilegais atitudes corriqueiras, como a cópia de um CD para um pen drive. “Temos toda uma população na ilegalidade”, resume Wachowicz.
“Mudou a necessidade do consumidor e também a do autor”, diz Alfredo Manevy, secretário-executivo do MinC, para quem os criadores, não raro, são submetidos a “contratos leoninos”. “Há um desequilíbrio de forças entre autores e investidores”, diz, referindo-se a gravadoras, editoras etc. “Queremos fortalecer e garantir direitos hoje diluídos.”
Mas não é necessariamente assim que os autores pensam. “A iniciativa do MinC está divorciada das discussões mundiais”, diz José Carlos Aguiar, presidente da Associação Brasileira do Direito de Autor (ABDA). “As entidades de autores não foram consultadas e a tônica é a da fragilização do direito autoral”, aposta. Também contra o projeto posiciona-se, de antemão, a Associação Brasileira de Música e Artes (Abramus). “Parece que virá como um pacote de cima para baixo”, diz Juca Novaes, a despeito da informação do MinC de que se trata de uma primeira proposta, a ser submetida a um longo processo de discussão. “Está clara a intenção de estatização do direito autoral”, completa.
No texto há, de fato, menção ao Instituto Brasileiro de Direito Autoral, que o MinC não esclarece muito bem o que seria. José Luiz Herência, secretário de políticas culturais, diz apenas ser importante maior presença do poder público no setor. Não se sabe, porém, o quanto o instituto teria o poder de interferir no Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad), encarregado de arrecadar o pagamento de direitos autorais. O Ecad distribuiu, em 2008, cerca de R$ 270 milhões para mais de 73 mil músicos. Herência limita-se a dizer que “o Ecad precisa aprimorar seus mecanismos de transparência”.
O que está em jogo é também a relação entre interesses diversos. “O direito de autor foi criado para regular interesses privados. Com a internet, o papel do interesse público se ampliou”, diz o professor Manoel Pereira dos Santos, da FGV. “Temos mais gente produzindo, disponibilizando e tendo acesso. Isso muda o equilíbrio de poderes e, por isso, no mundo, estão mudando as leis.”
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Direito autoral vira campo de batalha
Estado de São Paulo – Jotabê Medeiros
Um novo campo de batalha toma conta da área da cultura a partir de hoje, quando será aberto o 3º Congresso de Direito de Autor e Interesse Público, em São Paulo, cujo principal tema de debate é a revisão da lei de direitos autorais. O ponto nevrálgico é a apresentação de um texto que o governo federal pretende que seja a base da nova legislação de direito autoral do País. O texto, que ainda está em debate, vazou e circula entre artistas e entidades de classe, e tem causado estupefação e revolta em alguns grupos de artistas. A reportagem do Estado teve acesso aos principais pontos do documento (leia ao lado).
“É uma vergonha. É o Estado interferindo naquilo que é um direito claramente privado. O sistema autoral está crescendo muito, e isso está incomodando certos grupos, que foram buscar abrigo no Ministério da Cultura”, acusa o advogado Roberto Mello, presidente da Associação Brasileira de Música e Arte (Abramus). A entidade que Mello preside representa 23 mil associados de todo o País, entre eles Caetano Veloso, Ivete Sangalo, Nando Reis, Ivan Lins, Vitor Martins, Almir Sater, Fábio Jr., Roberto Menescal, Tom Zé, Renato Teixeira.
A Abramus está preparada para uma “guerra” a partir de hoje, às 9 horas, na Fecomércio, Centro de São Paulo, quando o ministro Juca Ferreira estará debatendo sua proposta. O texto que vazou prevê a criação, em 120 dias, do Instituto Brasileiro do Direito Autoral (IBDA), que se posicionará como um organismo de regulação dos direitos de autor. O novo instituto terá presidente e cinco diretores, a exemplo da Agência Nacional de Cinema (Ancine), e sua criação vai englobar a Diretoria de Direitos Intelectuais do Ministério da Cultura (MinC).
O MinC trata do tema porque alega que a nova circunstância tecnológica (o advento da música MP3, cinema e televisão digitais e internet) pede o aperfeiçoamento legislativo e a regulação. O documento foi elaborado com subsídios de debates travados desde 2007 por meio do Fórum Nacional do Direito Autoral – que tem participações de centenas de entidades, como o Fórum Nacional de Música e o Instituto de Defesa do Consumidor.
Já o presidente da Abramus diz que a intenção do governo é “intervencionista” e julga desnecessária uma revisão da legislação, considerando que a atual cobre perfeitamente o espectro das artes. “A lei é novíssima, foi sancionada por Fernando Henrique Cardoso em 1998, tem pouco mais de 10 anos e contempla tudo, todos os meios digitais”, diz.
Segundo Alfredo Manevy, secretário executivo do Ministério da Cultura, o texto que causou a reação da Abramus surgiu de um diagnóstico oriundo da sociedade civil, e não é um projeto de lei. “O que foi apontado são trechos daquilo que poderá ser no futuro uma minuta de um projeto de lei, um diagnóstico formulado para corrigir os desequilíbrios, as distorções e atualizar a lei em função das demandas do meio cultural”, disse Manevy.
O secretário do MinC recomendou que as entidades que acusam o governo de “intervencionista” façam um exame de consciência. “É preciso que absorvam uma cultura democrática, da discussão pública. Que se preocupem em representar devidamente seus associados, o que significa ouvir, debater, e não se preocupar em atacar o que está sendo discutido democraticamente”, disse.
Na avaliação do cientista político Samuel Barrichello, da Coordenação-Geral de Regulação em Direitos Autorais e colaborador do MinC, a intenção do anteprojeto busca “estender os benefícios resultantes dos direitos autorais a um número maior de atores do processo”, e visa, ao mesmo tempo, a “corrigir a omissão do Estado nessa questão”.
Para o professor Manoel Pereira dos Santos, coordenador do programa de pós-graduação em Propriedade Intelectual da Escola de Direito da FGV-SP, a criação do Instituto Brasileiro de Direito Autoral, na prática, é apenas a reedição de algo que já existia no passado, o Conselho Nacional de Direitos Autorais (CNDA). “É uma entidade regulatória, como as agências. O que se pretende está dentro das políticas de Estado, não vejo intervencionismo”, considera.
Para os inimigos da reforma, o debate sobre o download ilegal de música é irrelevante, porque não se deve criminalizar individualmente as pessoas que baixam música e livros pela internet ou fazem troca de arquivos digitais por meio de computadores. “Esse é o mundo de hoje. A nossa preocupação são os grandes provedores que disponibilizam esses conteúdos e não querem pagar”, diz Mello.
“Os autores desse texto são espertos e manipuladores, dizem que a legislação atual é do tempo da ditadura, quando foi realizada dentro de um governo democrático, depois de 12 anos de debate e discussão”, ataca Roberto Mello. Segundo ele, o texto é intervencionista e denota uma “volúpia de Estado” a ser combatida. “A classe artística está só esperando o momento de se manifestar. É o Estado tomando na mão grande. Vai ser uma semana crítica.”
O professor Santos analisou dois dos trechos mais polêmicos do documento em questão, os artigos 9 e 10. O primeiro diz que compete ao IBDA “homologar o serviço de cobrança (de direitos autorais), em função do interesse público, das entidades de gestão coletiva (…)”. Ele diz que não vê ali intenção de intervir no funcionamento das entidades, até porque “é proibido pela constituição, então o governo não pode fazer isso”.
No segundo ponto polêmico, o artigo 10, em que se diz que o IBDA deve “pronunciar-se sobre a adequação das tabelas de preço, dos regulamentos de cobrança, arrecadação e distribuição de direitos autorais”, Santos diz que “pronunciar-se não é proibir”, e que todos os artigos tratam da função regulatória.
A Abramus chega a enxergar no projeto a ser divulgado a ação de lobbies de grandes provedores de conteúdos que não estariam querendo pagar pelo uso de obras. Cita “portais, grandes provedores de internet, emissoras de TV, sindicatos, teles e agregadores de conteúdos, interesses corporativos enormes” que buscam evitar pagar entre 4% a 5% do valor desses conteúdos às associações.
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