Enquanto assuntos como leis de incentivo, patrimônio, educação musical seguem ganhando simpatizantes, do outro, tratar do ECAD é uma tarefa difícil. Se existe um fenômeno que deva ser estudado é a clara divergência de opiniões sobre este assunto. Em sua defesa apenas parte da industria cultural que lucra com este esquema, mas do outro lado um numero expressivo de descontentes, cada qual com seus próprios interesses, entre artistas, população e usuários.
Não é a toa, que existam tantos processo na justiça e tantas leis em trânsito no Congresso a esse respeito. Todos os posicionamentos governamentais do executivo, legislativo e judiciário apontam no horizonte para transformações na legislação da música brasileira em todos os aspectos. Esta é a verdadeira motivação para que as diversas representações da música brasileira andem se manifestando de forma exaustiva nos últimos anos. Desde então ocorre uma espécie de bolsa de apostas ideológicas, provocando uma crise sistemática nas comunicações entre as entidades representantes da indústria e representações gerais da música, como nunca anteriormente, desencadeando uma enxurrada de cartas, eventos e manifestos, cada qual em defesa própria. O volume de artigos recentemente publicados é instigante para a análise do processo de construção da política publica, que nada tem haver com os debates em andamento. Afinal tratar de política publica é antes de tudo construção de uma visão de Estado.
Que Estado pretendem construir os defensores dos direitos autorais? Essa é uma boa pergunta para começar essa reflexão. Este mesmo Estado, construído, tendo outra visão em tempos do Collor e Fernando Henrique deixou a questão dos direitos autorais abandonada a grandes interesses econômicos com a extinção do CNDA (Conselho Nacional de Direitos Autorais) com o argumento de conflito das atribuições com os incisos XVIII, XXVII e XXVIII do art. 5° da Constituição Federal de 1988.
Agora que a maioria percebe os estragos causados por esta política mínima, manifestando-se em favor de mudanças, outros, na contramão da história censuram o Ministério da Cultura por pretender interferir no processo. O Ministro Juca Ferreira e seu antecessor Gilberto Gil estão sendo acusados por supostamente mascararem relações de interesses comuns com o lobby do audiovisual, sendo para alguns os responsáveis pelo inicio dos atuais debates sobre os direitos autorais. Relações que até podem ser verdadeiras, mas, na boca dos delatores parece apenas uma subversão do foco para iludir a opinião pública, transformando a verdade que reside na questão que é “fiscalizar o ECAD”, em apenas uma acusação difamatória, de que “existe um acordo entre lobby do audiovisual e Ministério da Cultura”. Esta mudança do sentido, com a corrupção do verdadeiro ocorrido é uma inversão na construção de um discurso, não é ilusória, nem irresponsável, é clara e intencional. E se existe algum motivo para tais acusações ao Ministro da Cultura é porque o governo assinalou a intenção da criação de um novo órgão fiscalizador do ECAD. Isso é com certeza o motivo para tantos conflitos e deve estar tirando o sono de muita gente!
Acusam o atual movimento de almejar um mercado regulado e transparente, interferindo em um ambiente que na visão da indústria é supostamente democrático e auto-regulado. Porém os que acusam o Ministério jamais admitiriam suas relações com os governos anteriores, responsáveis anteriormente pela atuação pífia e não interventora que permitiu que a música brasileira tivesse se transformado em uma banca de apostas. Apostas em números, que não tem significados alem de si próprios, assim como as apostas feitas em musicas que tão pouco significam algo. A não ser seus efeitos, estes existem, pois se as representações e signos culturais destas obras musicais são efêmeros, não são inocentes, pois construídas em processos industrias, desprovidas de sentido quando de suas execuções maciças, são geradoras da destruição do patrimônio cultural, diversidade, identidades das comunidades e ao mesmo tempo dos empregos do setor musical em níveis regionais.
Estes conflitos entre a música do eixo e a música independente ficam evidentes quando são feitas defesas setoriais dos cartéis envolvidos, como neste caso citado. A formação de cartéis fica ainda mais evidente quando observadas através das relações entre os discursos institucionais e em que posições são ditas. Diretores de entidades e empresas, emitindo suas versões dos fatos em veículos de comunicação respeitáveis invariavelmente recebem credibilidade, pois a maior parte da população acredita equivocadamente na palavra dita nestes veículos. Em uma mídia difusa em que todos os lados recebem voz, saber a verdade é algo cada vez mais difícil para os periféricos, residindo minimamente verdade ao centro, mas essa é a verdade central, não mais que isso, não é total diante de muitas verdades. Por isso desconfiem de todos, este é um jogo onde ninguém manifestou defender os interesses nacionais, e caso defendeu, deve ter feito com segundas intenções! Tanto governo, como indústria cultural e suas ramificações provocadas pelos múltiplos interesses postos a mesa, não deixam claro a intenção de suas políticas, de que lado estão, como diria nossa dama do teatro brasileiro Fernanda Montenegro, “a política publica, está em um dilema, ela precisa de definições, afinal é uma cultura feita pelo social ou para o capital?”. Falta uma definição!
Já as polêmicas levantadas, estas sim são reveladoras, isso pelo menos dentro do simulacro da indústria musical, revelam os sentidos e posições de cada um com muita clareza. Temos aqui um fio que se puxado, pode desenrolar! Pois ao que me consta, a defesa de um órgão fiscalizador do ECAD, foi uma proposta feita por músicos de todo o Brasil que aumentaram o coro, nas Conferências Municipais de Cultura, Conferências Estaduais de Cultura e na 1° Conferência Nacional de Cultura em 2005, sendo um dos cinco temas mais votados dentre centenas de proposições feitas pelos 55 mil participantes deste processo de construção do Plano Nacional de Cultura. Mesmo que algumas figuras tragam pra si o debate, como se fossem detentores do monopólio da representação da música, contrariando eles, verdade seja dita. Temos aqui um fio expondo os fatos, tornando o caminho percorrido menos surreal, já que da questão que esta sendo dita, pouco resta de verdade, que foram os próprios músicos e não lobby do audiovisual aqueles que iniciaram a defesa da recriação de um novo órgão estatal regulador dos direitos autorais.
Mesmo sendo louvável a motivação de alguns para a criação de um órgão fiscalizador do ECAD, é de se admitir que possa ser verdadeira a acusação de que esta causa possa ter sido abarcada pelo lobby do audiovisual, mas acabam por ai as relações entre defesa e causa (no sentido de ideologia). O apoio do lobby das emissoras de rádios, TVs, cinemas, casas de espetáculo, hotéis é um reforço e tanto para a causa dos músicos, mesmo sabendo que os interesses entre os mesmos são antagônicos. Os artistas querem apenas justa distribuição e transparência na arrecadação, já o lobby do audiovisual quer flexibilização dos direitos autorais a fim de não precisar pagar o ECAD e por conseqüência os autores.
Até por isso, acusar o Ministro da tentativa de fiscalizar o ECAD, ser unanimidade apenas entre ele e o cartel do audiovisual, e apenas deles! É um equivoco! Pois o Ministro, pelas contas, além do lobby do audiovisual tem a maioria da música ao seu lado, digo não do lobby da economia da música, digo da música e dos músicos brasileiros. Mas para essa afirmação ter peso, temos que acrescentar alguns números e observações. No total dos músicos 92% não tem a menor relação com a super estrutura segundo o IPEA, representando um desequilíbrio sem precedentes comparado a outras profissões. Estes trabalhadores não têm contratos, edição, distribuição ou qualquer outro vinculo com o mercado visível. Por isso são chamados independentes. Logo se os músicos representam 1% da população economicamente ativa do país segundo o IBGE, concluímos que os independentes são a maioria e não são poucos. Como saber se estão ao lado do Juca? Pergunte a um músico independente se este já recebeu dinheiro de direitos autorais? Pergunte a um músico se este confia no ECAD? Pergunte ao mesmo se acha que a indústria musical deveria ser fiscalizada? A resposta é uma outra pergunta feita por Bourdieu e que ilustra bem a questão. “Quem fiscaliza o fiscal?”
A necessidade da regulação e fiscalização em um país corrupto é uma das maiores unanimidades nacionais de que se tem noticia! Ao contrário e para surpresa de todos, este ponto de vista não esta em oposição as afirmações feitas pela indústria, em que “nenhuma associação de autores manifestou esse desejo masoquista, de defender a criação de tal entidade”. Paradoxalmente é uma das maiores verdades ditas nos últimos anos. Pois a final, quem gostaria de ter suas chagas reveladas? Quem quer ver seu parceiro de cartel ser fiscalizado? O que custaria em imagem para as associações de autores, a revelação publica de que os autores não têm voz ativa em suas associações? Outras perguntas, relacionadas ao poder institucional destas entidades pode contribuir para a ilustração do caso. O quanto às diretorias dessas associações de autores se auto-representam em detrimento dos artistas? E quantas delas, atuam mais em defesa de acordos com as gravadoras, do que em favor dos verdadeiros detentores dos direitos que são os músicos? Portanto, ao contrário do que tem sido dito, a polêmica a respeito do tema, não surgiu do nada, e muito menos essa é uma obra de ficção do Juca Ferreira, não surgiram em seminários, nem mesmo dentro do governo, mas muito antes do ECAD existir no seio da sociedade civil. Estes debates revelam conflitos estruturais dos setores da música, que a meu ver, são saudáveis e devem continuar.
7Comentários