A proposta de reeditar a valiosa contribuição do Estado para a cultura brasileira vem produzindo uma série de críticas comprometidas com o mercado, sobretudo o financeiro, mais do que propriamente com o mercado da arte, porque neste contesto de Lei Rouanet, a arte não é a vitrine prioritária, é apenas um cano de descarga tributária.
Seria impossível entender uma cultura, ou mesmo um projeto de nação sem ter como principal personagem gestora uma política simultânea de cultura do Estado brasileiro.
O colapso na organização da nova e decisiva referência da arte brasileira depende de uma dedicação sistematizada que somente o Estado pode promover. A prevalência da memória cultural não pode se sujeitar à formatação do mercado que, por natureza, não tem compromisso com referências, estudos, promoção cuidadosa do indivíduo social, do homem brasileiro portador e transmissor do nosso patrimônio cultural.
O mercado quer fazer mercado e ponto, é esta a sua natureza. Não se pode integrar numa estratégia de política pública de cultura um pensamento material, aonde os elementos a serem alcançados não sejam a arte insubmissa, a criação comprometida com o melhor de nossa terra.
Uma política de cultura de Estado não é feita para dar resultados em capital, sua contribuição científica atua em outra esfera da economia, na produção orgânica da sociedade, durante muitas gerações, como é, por exemplo, a grande obra de Mário de Andrade.
Teorizar a ampliação e distribuição da cultura sob a ótica do lucro, é imprimir uma imediata e cruel censura à qualidade, a profundidade, aos traços evidentes de nossa cultura, as nossas convicções, indispensáveis na transplantação de um projeto de país.
Identidade não é um fenômeno isolado, fenômeno isolado é o que chamamos de “mercado cultural”, que pode ou não existir.
O mercado, não tem a prerrogativa de imprimir ritos na dinâmica criativa e, portanto, não pode ser objeto utilizado como contraposição ao Estado ou a sociedade, sem apresentar uma agenda de espírito público, apenas um processo de possibilidades individuais que não se integram a um grande projeto nacional. Isso é pensar a cultura dentro das linhas reduzidas do mercado diante da árvore genealógica da cultura de uma nação.Por isso, dizer, por exemplo, que a Funarte (Fundação Nacional da Arte), com toda a sua representação como um grande órgão federal, concorre com a especulação comercial de cultura, é criar uma versão pública com um título de atração encomendada pelos agentes do mercado sem o mínimo de fundamento.
A composição de uma política de cultura tem outra responsabilidade, não a de ser uma dublagem do mercado, mas a de participar e introduzir, não um ciclo hibrido e artificial como é da regras do mercado, mas uma visão contemporânea de futuro, aonde a arte e o artista sejam protegidos desta natureza de especulação que é a alma dos negócios do mercado.
O Estado tem a responsabilidade de difundir, dentro e fora do país, não a pluralidade seletiva que o mercado pinça para servir ao novo mundo do entretenimento e publicidade. O Estado é, em sua organicidade, um elemento singular e tem que refletir em suas políticas, um espelho que contemple a sociedade como um todo, e a legitime na massa de seus valores, com a mesma singularidade.
A tarefa jamais será cumprida pelas práticas calculistas do mercado, pois a comunicação subjetiva entre Estado e sociedade não interessa ao plano imediatista do mercado.
A potencialidade na temática de um Brasil global que está nascendo foi tecida pela massa de valores que funde o homem dentro de sua natureza, exercido em território brasileiro como um todo, o mesmo que forma a estrutura do Estado.
O Estado brasileiro é a nossa maior conquista democrática. Construído dentro das regras e compreensão de justiça que nossa cultura criou, por isso é simplesmente contraditório descredenciar as políticas diretas do Estado em beneficio de um pensamento miúdo de negócios como é o mercado cultural que insiste em proibir o Ministério da Cultura de positivamente estimular o mérito do desenvolvimento que as artes podem, através de suas expressões criticas, contribuir de forma decisiva com o Brasil em todos os outros processos de sua vida econômica.
A distância gigantesca entre Estado e mercado que depende da própria trajetória da história política do Brasil é que tem que ser considerada.
Por isso a exposição negativa fabricada pelos interesses financeiros contra o Ministério da Cultura, revela duas imediatas infelicidades. A primeira, a falta de compreensão dos agentes do mercado cultural com o tamanho da responsabilidade com a cultura brasileira e consequentemente com a nação. E a segunda, o quanto este revestimento geométrico que o mercado criou é ausente de inspiração intelectual e por isso não atinge um mérito de grandeza em sua opinião crítica.
A Cultura do Brasil não pode estar dentro de uma planilha como elemento de composição tradicional de mercado, “custo x benefício”, isso é pueril. Os instrumentos de valor agregado, dos quais as artes têm sido vítimas como âncora de um produto maior na relação de venda, é um papel diminutivo, free-lance para a arte, é o enfeite da vitrine da principal mercadoria que pode ser desde um sabonete até uma contemplação ao novo figurino da moda. Isso não assimila processos de desenvolvimento artístico, ao contrário, é um atestado cruel de desintegração da cultura filha da terra e acaba por não justificar o título soberano de arte, mas de um ingrediente da receita de miolo comercial.
O que é mais “cabresto dirigista” que isso? Como alcançar o ambicioso objetivo de atingir o “público alvo” do mercado sem a medida certa para dirigir suas campanhas institucionais em uma determinada geografia social e, consequentemente comercial? Este marketing cultural é um apelido mercantil, uma charlatanice e não uma proposta de direção que honra as artes brasileiras.
Qualquer que seja a critica as políticas de Estado, utilizando o mercado como contraposição, estará, sem a menor sombra de dúvida, misericordiosamente errada. Falta ao espetáculo do mercado um cenário de alternativas orgânicas, um prato fundo do manuscrito incontestável que distingue imediatamente a função da arte com linhas que transpareçam de maneira inequívoca a ara que o soco vazio do mercado não pode nos oferecer.
Não há consistência nessa ausência de responsabilidades que o mercado quer propor, onde o Estado se transforma num transferidor de recursos extraídos da sociedade e se ausenta da própria condição de Estado nas políticas públicas de cultura. Isso é raciocinar uma esculhambação pré-figurada sem qualquer contribuição na bagagem. E a duração desta mentira (Lei Rouanet) chega aos dezenove anos sem uma conclusão, a não ser para um grupo etnológico, um tipo individual de pensamento seletivo, uma síntese da classe dominante.
Resumir a importância do Estado para um projeto de nação na área da cultura sem conflito intelectual, apenas um brado-de-alerta ou picardia contida nesta artificial chocadeira de queda de braços entre Estado x mercado, é reduzir todo o pensamento de cultura no Brasil a um jubileu de massa falida que berram os degradados do antigo império da soberba neoliberal.
Que fique bem claro que o sentido contrário às nossas demandas, numa trajetória de queda na qualidade na produção artística, está diretamente ligado ao amarra-boi que o mercado de produtos financeiros criou dentro do ambiente cultural brasileiro.
Podemos observar que a diminuição da atividade cultural está em cadeia com os que utilizaram outro ciclo de desenvolvimento do mercado para recuperar perdas ou ampliar lucros em seus segmentos, pois se valeram de diferentes interpretações para justificar o veio oscilante que a brusca redução de qualidade flagra, criando uma nova economia de reciclagem do lixo cultural.
Vamos em busca de outro diapasão, pensar coletivo, não podemos ficar nesse horrível vazio que a ambição ofereceu à cultura brasileira.
As correspondências que devem chegar à mesa do Ministro da Cultura do Brasil têm que ter a personalidade e a integridade de nossa produção artística e não o aleijado sistema de lançamentos apenas inaugurais, como foi comum nestes últimos dezoito anos de Lei Rouanet.
Captação não é um oficio, é um oportunismo entalhado dentro das relações de poder. Se numa ou noutra operação de “mecenato” circula o sangue de um produtor sério e comprometido com a cultura brasileira, na gama inteira que opera essa teia, esse verniz é apenas um ponto isolado, um perfeito prato-de-frios que a indústria de projetos nos deu, sem azeite, sal ou vinagre.
Tem que ter fim as tensões e angústias que a arte sofreu nestes anos, sem uma sólida incorporação na vida cultural brasileira, sem a fraternal natureza de nossas manifestações de extrema identificação com o povo brasileiro.
As contradições criadas pelo mercado em episódios ligados a grandes grupos econômicos devem ser freadas e substituídas pelos pensamentos e colocações políticas ideológicas para o desenvolvimento de uma concreta e forte política pública do Estado brasileiro para a cultura.
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