Nesta entrevista concedida por e-mail a Georgia Nicolau para o Cultura e Mercado, o secretário Américo Córdula, da Identidade e Diversidade Cultural, aborda as políticas para as culturas populares e a garantia dos direitos culturais da população brasileira.

Conheço o Américo de sua ativa participação no Fórum de Culturas Populares, uma das iniciativas mais interessantes e marcantes da sociedade civil em relação à valorização da diversidade cultural no Brasil. Depois de um longo caminho de aproximação, tensão, compreensão mútua e formulação de programas e ações efetivas, houve uma transformação significativa tanto dos movimentos sociais quanto do papel do Estado em relação aos fazeres e saberes populares. Américo é um dos protagonistas mais importantes desse processo, tanto do lado da sociedade civil quanto do governo.

Do lado de lá do balcão, ele concede a seguinte entrevista a Cultura e Mercado:

Georgia NicolauDe 2003 para cá, com a chegada de Lula à presidência, quais foram as principais medidas, por parte do governo, que efetivamente ajudaram as culturas populares?

Américo Córdula – Vários programas sociais atendem, hoje, aos mestres, grupos e comunidades praticantes das expressões culturais populares, desde os de infra-estrutura, direitos à saúde, promoção da igualdade racial, até a  projetos específicos como o da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, coordenada pelo Ministérios do Meio Ambiente e do Desenvolvimento Social. Faz parte do Plano Plurianual (PPA) de 2003/2007 e agora, de 2008/2011, o Programa da Diversidade Cultural (Brasil Plural), do Ministério da Cultura. Ele contempla as culturas populares através de ações como seminários de formulação de políticas públicas, editais públicos, capacitação para criação de projetos e atendimento a demandas espontâneas através do Fundo Nacional de Cultura (FNC). Além deste programa, outras secretarias e instituições coligadas do Sistema MinC, possuem programas que contemplam as Culturas Populares, como o Mais Cultura (SAI), Cultura Viva (SPPC), Revelando os Brasis (SAV), Patrimônio Imaterial (DPI – IPHAN), dentre outros, que permitem o desenvolvimento de iniciativas e projetos.

GN – Qual o legado da gestão de Sergio Mamberti e o que pretende fazer daqui para frente? Quais as maiores dificuldades?

AC – Sérgio Mamberti foi o grande responsável pela inclusão da temática da diversidade cultural no Ministério da Cultura. Foi o grande articulador dos segmentos que, até então, não tinham uma atenção específica das políticas públicas no Brasil, e constituiu espaços de diálogos com representações destes segmentos, seja através de seminários ou de grupos de trabalho.

Além disso, criou os primeiros editais públicos para a diversidade cultural. Isso permitiu a participação da sociedade civil na construção de políticas públicas que estão refletidas nos programas e ações do ministério e no Plano Nacional de Cultura.

Colaborou também, ativamente, como delegado do MinC, no debate sobre o conteúdo da Convenção da Proteção e da Promoção da Diversidade das Expressões Culturais da UNESCO – o Brasil hoje representa a America Latina e o Caribe no Comitê Intergovernamental). O ministério tem hoje na Convenção um norte para as suas políticas.

Os desafios continuam sendo os mesmos de sempre: o baixo orçamento e a falta de garantia de que esta política de governo se torne uma política de Estado, com perenidade nas ações que hoje contemplam os segmentos da diversidade e que não se percam as conquistas nas futuras gestões.

GN – O que a SID entende por Cultura Popular?

AC – Bem genericamente, a cultura praticada por detentores de saberes, tradicionais ou não, inseridos em contextos sociais e econômicos adversos. Nossa preocupação, no entanto, foi manter um distanciamento sobre os problemas que envolvem este conceito, que é muito disputado dentro da academia e entendido de formas bem distintas dependendo dos interlocutores com os quais nos relacionamos. Procuramos respeitar como populares aqueles que assim se reconhecem. Do mesmo modo com os indígenas, quilombolas, LGBT e etc.

GN – Quais ações da SID estão sendo realizadas especificamente para as Culturas Populares?

AC – Realizamos dois grandes Seminários Nacionais de Políticas Públicas para as Culturas Populares em 2005 e 2006 que contaram com a realização de oficinas estaduais e que tiveram delegados eleitos para o Encontro Nacional. Eles elaboraram e priorizaram diretrizes e ações que formam a base para a construção das políticas públicas para as Culturas Populares no Ministério da Cultura. Junto com o segundo seminário realizamos o primeiro Encontro Sul Americano das Culturas Populares, com a participação de 8 países convidados, que debateram suas políticas e trouxeram seus grupos tradicionais. Em 2008 aconteceu o segundo Encontro Sul Americano em Caracas, já como parte de uma agenda do MERCOSUL Cultural, que é o fórum dos ministros da cultura da América do Sul. Estes encontros fazem parte de uma política de integração e reflexão sobre as culturas tradicionais na América do Sul.

O Ministério da Cultura apóia também outros encontros de culturas populares, como o Mestres do Mundo (Juazeiro, Crato e Barbalha – CE), Encontro de Cultura Popular (Brasília-DF), Vozes de Mestres (Belo Horizonte-MG), Encontro das Culturas Tradicionais da Chapada dos Veadeiros (São Jorge-GO) e o Encontro de Mestres da UFRJ(Rio de Janeiro-RJ). Em todos estes encontros promovemos discussão e debates com os mestres das culturas populares.

Entre as principais ações destacamos os editais, que tiveram, até o momento, três edições, uma por meio de convênio e duas através de premiação. Foram contempladas 542 iniciativas de mestres, grupos, iniciativas públicas e da sociedade civil organizada de todos os estados. Outra ação importante é a capacitação de pessoas participantes destas comunidades12 para a criação de projetos que utilizem recursos do FNC.
 
GNAntes de se tornar secretário, você era um representante da sociedade civil que sempre se envolveu na questão das políticas públicas para as culturas populares. O que você reivindicava naquela época, continua sendo o que você busca hoje?

AC – De certa maneira, sim. O que mudou é que hoje tenho a possibilidade de ver a dimensão desse Brasil real – como diria Darcy Ribeiro. Antes de ocupar um cargo na SID, tinha uma idéia mais romântica e lutava pela construção de uma política pública para as culturas populares. Até então existiam ações importantes para o folclore, que tem, desde Mario de Andrade, uma jornada que deve ser respeitada. Mas não havia espaço de participação e consulta aos protagonistas. Como hoje temos um governo popular que ouve através de processos democráticos de consulta (foram mais de 60 conferências nacionais de toda ordem nesses seis anos), as Culturas Populares conquistaram finalmente este espaço.

Os programas e ações que realizamos hoje são assimilados pelos estados. Temos pelo menos, 14 estados que tem editais semelhantes aos nossos, e até estruturas como as da SID, por exemplo: a Coordenação de Identidade e Diversidade Cultural da Secretaria de Cultura do Estado do Rio de Janeiro, coordenada pelo Marcos André e que teve origem na compreensão da Secretária Adriana Ratz de que o Rio também deveria atender estes segmentos. A Secretaria de Cultura do Estado de São Paulo também tem hoje uma coordenação que publica editais para as culturas populares, indígenas, hip hop, etc.

GN – Na sua opinião, o Brasil avançou na discussão das  políticas publicas para as Culturas Populares? Em quais aspectos?

AC – Muito, Como já disse acima, hoje temos uma vaga para as Culturas Populares no Conselho Nacional de Políticas Culturais. Além disso, muitos conselhos estaduais e municipais também começam a ter esta vaga. O grande desafio é que o protagonismo desses conselheiros seja atendido. É muito difícil ter alguém representando nacionalmente toda a diversidade das Culturas Populares. Para isso, estamos criando um Colegiado Setorial para as Culturas Populares que irá o conselheiro neste espaço.

O Plano Nacional de Cultura vai garantir, pelo menos nos próximos dez anos, que as diretrizes e ações que contemplam as Culturas Populares sejam atendidas pelos programas.

Outro grande avanço é a apropriação pela federação de políticas para as Culturas Populares. A grande dificuldade é mapear este campo: quantos mestres ou grupos de manifestações temos no país? Falta um inventário e, nesse sentido, o Plano Nacional de Povos e Comunidades Tradicionais no qual o MinC tem a participação no conselho, deliberou sobre a realização de uma pesquisa nacional de comunidades tradicionais. Para se ter uma idéia, está previsto o mapeamento de 104.000 comunidades tradicionais. Queremos saber não só das culturas populares, mas dos espaços culturais, dentre outros dados, para que possamos aprimorar nossas políticas.

GN – Você foi um dos fundadores do Fórum Permanente das Culturas Populares de São Paulo. O que o fórum representa hoje?

AC – Para mim é um movimento social importante que reflete, critica e propõe ações ao governo. O primeiro Seminário de Políticas Públicas surgiu de uma proposta feita pelo Fórum Permanente das Culturas Populares de São Paulo junto com o Fórum de Culturas Populares do Rio de Janeiro, que, na mesma época, propunha um programa de políticas públicas para o segmento. Nos encontramos no Seminário Cultura para Todos e a SID, recém-criada, montou um grupo de trabalho, que durante um ano e meio, desenhou o primeiro seminário. A partir deste movimento, novos fóruns surgiram e, depois do segundo encontro, foi estabelecida a Rede das Culturas Populares com fóruns de todos os estados e que hoje trabalha em parceria com o MinC na construção do processo do Colegiado Setorial das Culturas Populares. Portanto, os fóruns são parte fundamental de nosso processo de criação de políticas.
 

GN – Como você enxerga a participação da sociedade civil, e , principalmente, os mestres das tradições populares, na reivindicação de políticas publicas? Ela é grande? Poderia ser maior?

AC – Em todos nossos seminários tivemos uma grande participação de mestres tradicionais que foram escutados nas oficinas estaduais e participaram da priorização de diretrizes. Foram processos novos para eles e para nós. Sempre tivemos uma preocupação na comunicação, em ser menos burocráticos, facilitar os mecanismos de acesso, criando editais simples. Ao mesmo tempo trazer informações de pesquisa. No caso dos editais dos povos indígenas, implementamos a inscrição oral, que foi justamente para atender a dinâmica deles. Planejamos adotar este mecanismo nas próximas edições dos editais de Culturas Populares.

Sabemos das dificuldades de acesso às nomenclaturas, formulários, criação de projetos e internet, mas temos que capacitar pessoas para que estes grupos possam participar. Por isso investimos nos jovens, filhos ou netos dos mestres, que, hoje, têm uma facilidade maior com os meios de comunicação. Temos que investir para que estes grupos possam submeter suas demandas sem intermediários. Cito o saudoso Mestre Salú, que na mesa de abertura do segundo seminário explicou como resolveu tudo em família. Seus filhos hoje tocam todos os projetos da Casa da Rabeca, Associação de Maracatus Rurais, o grupo de Cavalo Marinho, e, também, são um Ponto de Cultura.

GN – Você considera que a SID consegue representar a todos que pretende (ciganos, índios, quilombolas, mestres da tradição…)?

AC – Não pretendemos representar ninguém. Esse não é o papel de uma secretaria. Nosso trabalho é dialogar com quem representa esses segmentos e construir políticas públicas pactuadas. O que fazemos é criar um espaço de participação, respeitando a dinâmica de cada segmento que atendemos. É importante salientar que não decidimos os segmentos sozinhos. É uma relação de mão dupla. Alguns processos surgiram da procura de organizações da sociedade civil. Hoje temos grupos de trabalho de indígenas, ciganos, LGBT, Culturas Populares e, mais recentemente, Cultura da Infância, que, por sinal, levou mais de ano para se organizar e começarmos um diálogo. Outros segmentos como Saúde e Cultura, que envolve transtornos psíquicos, deficientes e saúde do trabalhador surgiram através de nossa iniciativa em procurar o Ministério da Saúde e começar uma parceria. Muitos criticam e questionam se os participantes que integram os grupos de trabalho destes segmentos são representativos. Convido a estes que participem dos momentos de discussão e leiam como estão refletidos estes momentos nas nossas políticas, editais, plano nacional, conselho, etc. E, se não se sentirem contemplados, por favor, venham participar conosco desta construção.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

8Comentários

  • Carlos Henrique Machado, 15 de março de 2009 @ 0:37 Reply

    Parabéns ao Américo pelo seu trabalho e dedicação, nítida em sua fala. Alegro-me com a sua preocupação com a barreira burocrática. Torço pra que isso se inverta e para que o MinC trabalhe mais no sentido de se fazer presente nas comunidades e, objetivamente, torná-las mais inseridas nos planos de desenvolvimento de seus programas.

    Gostaria de aproveitar este gancho e dizer que o estado do Rio de Janeiro sofre os dois grandes males deste problema.
    O primeiro, a intermediação perigosa de agentes que fazem disso explicitamente degraus para investimentos particulares e públicos, ou seja, um só agente acaba construindo uma relação de dependência e marginaliza quem está fora do seu âmbito pessoal de atuação. Isso fica bastante evidente quando percebemos que Volta Redonda, uma das maiores cidades do estado do Rio, que tem uma média de vinte folias de reis, Valença, uma número ainda maior e também Barra Mansa. Nenhuma das três cidades, que este ano tive a oportunidade de acompanhar, não só a manifestação das folias com seus antigos problemas, nem o ministério da cultura, nem a secretaria de cultura do estado se fizeram presentes como é tradição. E aí volto a repetir, em muitas cidades em que vi a participação do ministério e do estado, as demandas tinham forte componentes politicos, porque dependiam de agentes que fazem escolhas discricionárias de acordo com as suas lógicas, pior, voltadas para festejos, a encontros promovidos sob suas orientações, o que é um perigo para essas manifestações que têm seus próprios códigos.

    Um outro ponto que gostaria de chamar atenção, é a observação, a meu ver, equivocada de Américo sobre a obra de Mário de Andrade, obra que não tem paralelo, ela foi justamente fazer o que o MinC ainda não conseguiu. Se compararmos os recursos com que Mário de Andrade trabalhou com as condições que ele teve para fazer aquele extenso mapeamento, se comparado às condições de hoje, chega a ser gritante a diferença, mais do que isso, Mário foi compreender todo um processo lá estudando profundamente todos os códigos daquelas comunidades, uma a uma. E, em outras as expedições lhe chegaram às mãos como so documentos de Villa Lobos, ele teve auxiliares de peso como Pixinguinha, por exemplo. Mas o mais importante da obra de Mário a esse respeito, foi conseguir trazer à luz os links que naturalmente aconteceram entre a cultura formal, incluindo a produção erudita e este universo de fantástica capacidade criativa. Com isso, ele nos revela que o Brasil precisava preservar essas fontes por serem elas as sustentadoras e orientadoras de toda a produção formal da música brasileira em todas as formas, fases e faces. Não é àtoa que, desde que Mário de Andrade trouxe esse profundo estudo e, talvez inédito no mundo, com alguma semelhança a Bella Bartock, mas sem dúvida, até pelas questões da riqueza musical do Brasil, a obra de Mário é mais profunda, sem falar que, a cada dia que passa, ele se torna mais e mais atual.

    Seria bom que Américo compreendesse bem o texto de Mário de Andrade, porque hoje o que é classificado como cultura popular, está sim, sendo vista mais pela leitura que se faz e há uma certa indução a isso, estamos levantando mais muros do que construindo pontes na leitura desses universos fundidos pelo próprio povo no Brasil, num vício tão típico dos nossos estudiosos que acabam fragmentando uma linguagem interligada para buscar certificação emblemática a essas manifestações, sem perceber com isso, que elas acabam sendo jogadas a um conceito de gueto. Esse vício é tão grande no Brasil que criamos vários outros módulos e produzimos cerceamento, o que impede o fluxo das próprias linguagens que naturalmente se interagem mais por uma leitura equivocada ou datada, vamos construindo muros, um a um, choro, valsa, samba, frevo, lundu, bossa nova, popular, erudito, e, com isso, desfazendo a fusão que o povo já fez há muito. Esse é o grande vício dos especialistas.

  • Carlos Henrique Machado Freitas, 15 de março de 2009 @ 9:20 Reply

    Parabéns ao Américo pelo seu trabalho e dedicação nítida em sua fala. Alegro-me com a sua preocupação com essa barreira burocrática. Torço pra que isso se inverta e que o MinC trabalhe mais no sentido de se fazer presente nas comunidades e, objetivamente, torná-las mais inseridas nos planos de desenvolvimento de seus programas.
    Gostaria de aproveitar este gancho e dizer que o estado do Rio de Janeiro sofre os dois grandes males deste problema.
    O primeiro, a intermediação perigosa de agentes que fazem disso explicitamente degraus para investimentos particulares e públicos, ou seja, um só agente acaba construindo uma relação de dependência e marginaliza quem está fora do seu âmbito pessoal de atuação. Isso fica bastante evidente quando percebemos que Volta Redonda, uma das maiores cidades do estado do Rio, que tem uma média de vinte folias de reis, Valença, uma número ainda maior e também Barra Mansa. Nenhuma das três cidades, que este ano tive a oportunidade de acompanhar, não só a manifestação das folias com seus antigos problemas, nem o ministério da cultura, nem a secretaria de cultura do estado se fizeram presentes como é tradição. E aí volto a repetir, em muitas cidades em que vi a participação do ministério e do estado, as demandas tinham forte componentes eleitorais, porque dependiam de agentes que fazem escolhas discricionárias de acordo com as suas lógicas, pior, voltadas para festejos, a encontros promovidos sob suas orientações, o que é um perigo para essas manifestações que têm seus próprios códigos.
    Um outro ponto que gostaria de chamar atenção, é a observação, a meu ver, equivocada de Américo sobre a obra de Mário de Andrade, obra que não tem paralelo, ela foi justamente fazer o que o MinC ainda não conseguiu. Se compararmos os recursos com que Mário de Andrade trabalhou com as condições que ele teve para fazer aquele extenso mapeamento, se comparado às condições de hoje, chega a ser gritante a diferença, mais do que isso, Mário foi compreender todo um processo lá estudando profundamente todos os códigos daquelas comunidades, uma a uma. E, em outras as expedições lhe chegaram às mãos como so documentos de Villa Lobos, ele teve auxiliares de peso como Pixinguinha, por exemplo. Mas o mais importante da obra de Mário a esse respeito, foi conseguir trazer à luz os links que naturalmente aconteceram entre a cultura formal, incluindo a produção erudita e este universo de fantástica capacidade criativa. Com isso, ele nos revela que o Brasil precisava preservar essas fontes por serem elas as sustentadoras e orientadoras de toda a produção formal da música brasileira em todas as formas, fases e faces. Não é àtoa que, desde que Mário de Andrade trouxe esse profundo estudo e, talvez inédito no mundo, com alguma semelhança a Bella Bartock, mas sem dúvida, até pelas questões da riqueza musical do Brasil, a obra de Mário não tem paralelo com outras em todo o mundo, sem falar que, a cada dia que passa, ele se torna mais e mais atual.
    Seria bom que Américo compreendesse bem o texto de Mário de Andrade, porque hoje o que é classificado como cultura popular, está sim, sendo vista mais pela leitura que se faz e há uma certa indução a isso, estamos levantando mais muros do que construindo pontes na leitura desses universos fundidos pelo próprio povo no Brasil, num vício tão típico dos nossos estudiosos que acabam fragmentando uma linguagem interligada para buscar certificação emblemática a essas manifestações, sem perceber com isso, que elas acabam sendo jogadas a um conceito de gueto. Esse vício é tão grande no Brasil que criamos vários outros módulos e produzimos cerceamento, o que impede o fluxo das linguagens que, naturalmente, se interagem e, mais por uma leitura equivocada ou datada, vamos construindo muros, um a um, choro, valsa, samba, frevo, lundu, bossa nova, popular, erudito, e, com isso, desfazendo a fusão que o povo já fez há muito. Esse é o grande vício dos especialistas.

  • Leonardo Brant, 16 de março de 2009 @ 8:30 Reply

    Estamos tentando há muito fazer esta entrevista com o Americo, tanto eu quanto Georgia Nicolau, jornalista e colaboradora do CeM. A que veio acima são perguntas formuladas por ela e enviadas a mim que, pela similaridade com as minhas questões e pelo tempo que levou para ser respondido, acabei me apropriando como se fossem minhas. Isso interfere a leitura e invade a autoria da Georgia, por isso resolvi deixar este comentário, com meus pedidos de desculpas pela falta da atenção. Abs, LB

  • Georgia Nicolau, 16 de março de 2009 @ 11:40 Reply

    Caros,
    Essa entrevista foi perseguida por mim para que a gente possa trazer as culturas populares de volta a ordem do dia. Pretendo fazer uma matéria, costurando a entrevista que eu fiz com o Américo e o depoimento de outros atores envolvidos e comprometidos com as manifestações tradicionais.
    É uma pena que a confusão tenha acontecido, e a entrevista tenha sido publicada “antes da hora”. De qualquer maneira, aguuardem a matéria.
    Abs,
    Georgia Nicolau

  • Marco Antonio Moretti, 17 de março de 2009 @ 13:16 Reply

    Desculpem o detalhismo, mas se está escrito que a entrevista foi concedida a Georgia Nicolau, por que está escrito Leonardo Branto na frente de cada pergunta?

  • Carlos Henrique Machado Freitas, 17 de março de 2009 @ 15:56 Reply

    Georgia
    As culturas populares brasileiras nunca estiveram fora da ordem do dia, nem fora do prumo. Nós medianos é que fomos contaminados pelo civilismo e o moderninho e, consequentemente, queremos avaliar o país na medida de nossas réguas, sem questionarmos o grau de contaminação que temos de um longo processo civilizatório a que fomos submetidos.

    Acho que há um erro de avaliação do Ministério da Cultura, quando crê que, levando alguns mestres da cultura brasileira para dentro do ministério, fazer uma apresentação em que Manevy dança lundu de uma maneira meio esquisitóide, que mais parece gringo em Santa Teresa RJ e no Pelourinho BA, não muda em nada as questões culturais da vida dessas comunidades, e que bom que seja assim! A relação que essas comunidades têm com as suas culturas nada tem a ver com a nossa forma de compreender a cultura, geralmente pela visão do espetáculo, da economia, do mercado.

    Repito sempre aqui nas discussões que o favelamento poderia sim ser revolvido com investimentos em infraestrutura, mas isso acontece com a parte mínima, o que na verdade ainda é um bandaid numa ferida aberta. O favelamento está na não inserção do cidadão, do jovem, da criança, no universo produtivo da sociedade, ou seja, este indivíduo está fora da zona de conhecimento técnico para este necessário ambiente, porque o Estado não chega até ele com educação de qualidade à altura dos outros cidadãos. É uma ilusão pensarmos que a cultura dessas acomunidades é capaz de cumprir esse papel. Cultura não é um ato discricionário, ela é uma fotografia da sociedade. No nosso caso, que recebemos informações atabalhoadas, principalmente de mídias, de doutrinas acadêmicas, desse pensamento tresloucado de elevação sei lá do quê pela cultura, é que estamos absolutamente perdidos.

    Esses mestres estão no nosso dia-a-dia, fazem parte da nossa dinâmica social e, consequentemente cultural, com mais ou menos acentuação nas obras brasileiras classificadas como formais. Há um grande engano quando se imagina que Villa Lobos foi a lugares buscar elementos para a sua arte, não! Por isso ele dizia, “eu sou o folclore!”, pois sabia que a alma daquela estrutura caminha com todo o universo da sociedade brasileira. Tento insistentemente dizer do perigo das fragmentações.

    Quando fiz o meu trabalho musical e de pesquisa, “Vale dos Tambores”, as músicas eu já havia composto, fui à campo tentar compreender porque eu compunha daquela forma, porque muitas explicações de historiadores sobre o tema, não me cabiam. Então, ouvi e li várias verdades absolutas que beiram ao absurdo, ao insano. Numa tese, o choro nascia do contraponto, em outra, ele nascia dos salões imperiais e numa outra, o choro era uma música urbana, imagine, se em 1870 tínhamos urbanismo no Brasil! Naquele período o Brasil estava mais para um fazendão. Quando, no meu trabalho, falei da relação do choro, principalmente com a música rural, dos tambores, das violas, das sanfonas, alguns xiitas quiseram até me execrar, sem antes buscar informações, porém, aos poucos veio a compreensão.

    O documentário, “Pixinguinha e Velha Guarda”, no Ibirapuera, por exemplo, que está disponível no youtube, mostra claramente que a música de Pixinguinha não era descendente de Bach, como muitos gostam de dizer. Pixinguinha, ja cansei de dizer, era ogã de terreiro, por isso foi o principal orientador de Mário de Andrade em seu livro, “Música de Feitiçaria no Brasil”.

    Olha só, Giorgia, aqui no Rio, alguns ainda dizem, de forma enciumada e sem conhecimento desse precioso fato, que Mário de Andrade, por ser paulista, não deu a devida atenção ao carioca, Pixinguinha, imagina se desse então! Pixinguinha era um homem ligado às manifestações de terreiro. Se ele estudou leitura e mecânica em escola formal, esta, com certeza, mais avançada do que as escolas de hoje, não lhe aleijou as matrizes, deixando que elas fluissem naturalmente em suas composições e execuções, as mesmas desses mestres. Neste filme que cito acima, eles tocam choro e dançam a música de terreiro, mostrando uma relação absolutamente estreita, como o jongo e etc., ou seja, não tem nada de imperial nesta história. A estrutura formal do início da música obedecia ao ambiente social, impositivo, mas o sentimento da arte estava todo focado nas matrizes de Pixinguinha, assim como a de Joaquim Callado, de Tom, de Edu Lobo, pois estão, em alma, afinados com os grandes mestres da cultura brasileira.

    Por isso, me aflige tanto esse olhar que vimos tendo, onde se tenta construir um ideário, ora de um mercado de turismo, utilizando um olhar exótico sobre este universo, onde é explorada essa sociedade que está, socialmente e não culturalmente marginalizada e a nossa sociedade média, essa está incluida socialmente, mas marginalizada culturalmente.

    Por isso este tema precisa ser lido com toda a delicadeza, porque todos nós somos afetados por este erro de leitura.

    Um grande abraço e parabéns por essa sua iniciativa de lincar o Brasil. Essa é a necessidade mais urgente que temos hoje.

  • Leonardo Brant, 17 de março de 2009 @ 16:19 Reply

    Houve uma confusão. Eu enviei uma série de questões para o Américo. A Georgia enviou outras. Recebi essas como se fossem as minhas. Fiz uma abertura e publiquei na íntegra. Mas a entrevista é dela e ela fará uma matéria a respeito (acabo de corrigir os nomes à frente das perguntas). Uma não invalida a outra, apenas complementa, sobrepõe. O importante aqui é fazer a discussão em cima do conteúdo. Daí ele deixa de ser meu, dela, seu e passa a ser nosso. Abs, LB

  • Carlos Henrique Machado Freitas, 17 de março de 2009 @ 16:20 Reply

    Georgia,
    As culturas populares brasileiras nunca estiveram fora da ordem do dia, nem fora do prumo. Nós medianos é que fomos contaminados pelo civilismo e o moderninho e, consequentemente, queremos avaliar o país na medida de nossas réguas, sem questionarmos o grau de contaminação que temos de um longo processo civilizatório a que fomos submetidos.
    Acho que há um erro de avaliação do Ministério da Cultura, quando crê que, levando alguns mestres da cultura brasileira para dentro do ministério, fazer uma apresentação em que Manevy dança lundu de uma maneira meio esquisitóide, que mais parece gringo em Santa Teresa RJ e no Pelourinho BA, não muda em nada as questões culturais da vida dessas comunidades, e que bom que seja assim! A relação que essas comunidades têm com as suas culturas nada tem a ver com a nossa forma de compreender a cultura, geralmente pela visão do espetáculo, da economia, do mercado.
    Repito sempre aqui nas discussões que o favelamento poderia sim ser revolvido com investimentos em infraestrutura, mas isso acontece com a parte mínima, o que na verdade ainda é um bandaid numa ferida aberta. O favelamento está na não inserção do cidadão, do jovem, da criança, no universo produtivo da sociedade, ou seja, este indivíduo está fora da zona de conhecimento técnico para este necessário ambiente, porque o Estado não chega até ele com educação de qualidade à altura dos outros cidadãos. É uma ilusão pensarmos que a cultura dessas acomunidades é capaz de cumprir esse papel. Cultura não é um ato discricionário, ela é uma fotografia da sociedade. No nosso caso, que recebemos informações atabalhoadas, principalmente de mídias, de doutrinas acadêmicas, desse pensamento tresloucado de elevação sei lá do quê pela cultura, é que estamos absolutamente perdidos.
    Esses mestres estão no nosso dia-a-dia, fazem parte da nossa dinâmica social e, consequentemente cultural, com mais ou menos acentuação nas obras brasileiras classificadas como formais. Há um grande engano quando se imagina que Villa Lobos foi a lugares buscar elementos para a sua arte, não! Por isso ele dizia, “eu sou o folclore!”, pois sabia que a alma daquela estrutura caminha com todo o universo da sociedade brasileira. Tento insistentemente dizer do perigo das fragmentações.
    Quando fiz o meu trabalho musical e de pesquisa, “Vale dos Tambores”, as músicas eu já havia composto, fui à campo tentar compreender porque eu compunha daquela forma, porque muitas explicações de historiadores sobre o tema, não me cabiam. Então, ouvi e li várias verdades absolutas que beiram ao absurdo, ao insano. Numa tese, o choro nascia do contraponto, em outra, ele nascia dos salões imperiais e numa outra, o choro era uma música urbana, imagine, se em 1870 tínhamos urbanismo no Brasil! Naquele período o Brasil estava mais para um fazendão. Quando, no meu trabalho, falei da relação do choro, principalmente com a música rural, dos tambores, das violas, das sanfonas, alguns xiitas quiseram até me execrar, sem antes buscar informações, porém, aos poucos veio a compreensão.
    O documentário, “Pixinguinha e Velha Guarda”, no Ibirapuera, por exemplo, que está disponível no youtube, mostra claramente que a música de Pixinguinha não era descendente de Bach, como muitos gostam de dizer. Pixinguinha, ja cansei de dizer, era ogã de terreiro, por isso foi o principal orientador de Mário de Andrade em seu livro, “Música de Feitiçaria no Brasil”.
    Olha só, Giorgia, aqui no Rio, alguns ainda dizem, de forma enciumada e sem conhecimento desse precioso fato, que Mário de Andrade, por ser paulista, não deu a devida atenção ao carioca, Pixinguinha, imagina se desse então! Pixinguinha era um homem ligado às manifestações de terreiro. Se ele estudou leitura e mecânica em escola formal, esta, com certeza, mais avançada do que as escolas de hoje, não lhe aleijou as matrizes, deixando que elas fluissem naturalmente em suas composições e execuções, as mesmas desses mestres. Neste filme que cito acima, eles tocam choro e dançam a música de terreiro, mostrando uma relação absolutamente estreita, como o jongo e etc., ou seja, não tem nada de imperial nesta história. A estrutura formal do início da música obedecia ao ambiente social, impositivo, mas o sentimento da arte estava todo focado nas matrizes de Pixinguinha, assim como a de Joaquim Callado, de Tom, de Edu Lobo, pois estão, em alma, afinados com os grandes mestres da cultura brasileira.
    Por isso, me aflige tanto esse olhar que vimos tendo, onde se tenta construir um ideário, ora de um mercado de turismo, utilizando um olhar exótico sobre este universo, onde é explorada essa sociedade que está, socialmente e não culturalmente marginalizada e a nossa sociedade média, essa está incluida socialmente, mas marginalizada culturalmente.
    Por isso este tema precisa ser lido com toda a delicadeza, porque todos nós somos afetados por este erro de leitura.
    Um grande abraço e parabéns por essa sua iniciativa de lincar o Brasil. Essa é a necessidade mais urgente que temos hoje.

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