Da última sexta-feira pra cá (e ainda vamos ter pano pra manga) houve repercussão bastante negativa a parir da fila formada por produtores culturais e empresas patrocinadoras em frente a um centro de artes da Prefeitura do Rio – o Calouste Gulmenkian.
Mas até chegarmos a este momento desastroso para a cidade do Rio de Janeiro é preciso voltarmos um tanto no tempo, para que as pessoas entendam a caminhada.
A Lei do ISS Carioca foi criada em 1992, na primeira gestão do Cesar Maia, quando Helena Severo era secretária de cultura.
Palmas. O Rio precisava.
Neste princípio de funcionamento não havia o problema da fila. Poucas empresas recolhedoras de ISS se interessavam pelo mecanismo de incentivo e os produtores ainda não estavam devidamente familiarizados, de forma que a gestão da Lei era tranqüila.
Com o tempo, tanto os produtores culturais quanto as empresas reecolhedoras do imposto municipal se voltaram com interesse para a oportunidade que a renúncia trazia.
Ora, 20% do seu imposto municipal é percentual considerável e, sendo o Rio de Janeiro, como dizem, uma cidade de serviços, era fácil prever este crescimento de interesse e o aparecimento de contribuintes incentivadores mais robustos na cena, além de projetos maiores.
No plano de vôo deveria estar a revisão da Lei e de certa forma estava.
Explicando, o texto da Lei não é complicado e basicamente explica o que já escrevi sobre os 20% e estipula que o valor anual da renúncia fiscal (total destinado para a Lei ano a ano), que fica entre 0,35% e 1% da arrecadação de ISS, colocando toda a definição dos procedimentos na regulamentação, que é por decreto do prefeito (o que já aconteceu por ano ou por biênio). Ou seja, pelos decretos, seria possível ajustar e resolver problemas ano a ano.
Problema 1: a renúncia nunca sai do piso ou pouco se afasta dele.
Problema 2: com a maior procura, os procedimentos foram modificados inúmeras vezes, mas sempre pelo ponto de vista da facilitação do trabalho dos servidores na gestão da Lei e nunca pelo ponto de vista do produtor cultural, do artista, do patrocinador, embora em muitas ocasiões – numas participei e noutras não – tenha sido tentado o diálogo.
No meio do caminho, alguns absurdos aconteceram para além dos procedimentos. Cito especialmente dois decretos Maia: um estipulava que durante dois anos somente projetos audiovisuais seriam contemplados pela Lei do ISS, excluindo todas as outras linguagens artísticas, e outro estipulava que durante dois anos somente projetos com o tema “Chegada da Família Real ao Rio” seriam aprovados, claramente dirigindo o conteúdo dos projetos.
É preciso dizer que, apesar de mobilizações ao longo do tempo, eram sempre pontuais e quase sempre impulsionadas por emergências. Os produtores culturais e os artistas do Rio nunca foram muito de mobilização permanente (pelo menos nos últimos 20 anos) e tratavam de garantir seus pirões, já que a farinha sempre foi muito pouca pelo ISS carioca.
Isso fragiliza quem se mobiliza, não ajuda num médio ou longo prazo qualquer produtor ou artista e, o pior, encoraja o poder público a agir como bem entender, pois sabe que a pressão popular não vem com força.
Muitas outras situações bizarras aconteceram. Renúncia funcionando apenas 3 meses do ano, ano em que não houve inscrições de projetos, ano em que não houve renúncia.
Uma brilhante elaboração foi um fundo vinculado aos montantes captados pelos produtores. Poderia ser bom, ora. Um fundo de cultura no Rio que beneficiasse pequenos produtores com difícil acesso aos contribuintes incentivadores não seria nada mal.
Acontece que o funcionamento era o produtor captar recursos para seu projeto e, deste montante captado, 30% ia diretamente para o fundo. Ou seja, um projeto que já não poderia captar seu valor total (entre 50% e 25%, dependendo da categoria do projeto aprovado deve ser contrapartida) ainda perderia 30% de cada patrocinador conseguido. Era o produtor cultural captando recursos para a prefeitura escolher onde investir, numa total distorção de valores e funções e onerando o produtor, o artista, pois teria que correr atrás de mais patrocinadores para complementar os 30% retirados compulsoriamente pela prefeitura.
Pra que escrevo sobre isso?
Notem que todos os absurdos escritos aqui (pelo menos eu acho absurdos) colocam os produtores culturais e artistas em rota de colisão, numa disputa por verba que vem crescendo e nos cegando aos poucos, a ponto de muitos acharem normal dormir na fila durante dias e noites.
Faço um parênteses aqui, pois houve fila em outros anos. Filas até mais duradouras que esta última – um mês, dois meses de fila e não é exagero. Só que tinha uma diferença básica. Os produtores culturais dormiam em casa e quem ficava na fila era a lista, por ordem de chegada – lista esta que era respeitada. Éramos bem mais civilizados, frente aos mesmos desrespeitos de hoje.
Maia, Conde e agora Paes nunca trataram a Cultura com responsabilidade e dando a importância que merece. A vantagem é do Paes, já que é o prefeito da vez e tem o poder na mão para começar a mudar esta situação.
Com a mobilização que aconteceu, com os acontecimentos sendo noticiados pela grande imprensa como nunca antes e circulando nas redes sociais e mídias chamadas alternativas, com a inédita participação da Câmara Municipal, via Comissão de Educação e Cultura e Frente Parlamentar Pela Democratização da Comunicação e da Cultura, é possível acreditar que a renúncia atingirá seu teto neste ano e que finalmente quem utiliza a Lei de Incentivo será de fato ouvido e terá suas sugestões colocadas em prática pela prefeitura.
De uma vez por todas, temos que desenterrar a caveira de burro que foi colocada debaixo da Lei do ISS Carioca.