Urbanistas, ator, diretor teatral e ex-morador de rua. Personagens do centro da cidade, debatem como se apropriar da cultura para construir espaços de convivência e desenvolvimento.
O centro de uma cidade é, ou deveria ser, o lugar da democracia por excelência, local da prática da convivência com a diferença. Ocorre que vivemos em uma era na qual, cada vez mais, os indivíduos – ou aqueles que “podem”- confinam-se em bairros, condomínios e territórios onde apenas os seus semelhantes têm lugar. Qualquer tipo de diferença, marginalidade que seja, é prontamente eliminada por meio da distância “segura” promovida por seguranças particulares, câmeras de vigilância, ou até mesmo atos violentos.
De que maneira a cultura pode ser utilizada para modificar os territórios, resignificando-os? Como utilizar práticas culturais para o desenvolvimento humano e social de uma região como o centro de São Paulo? Na sexta-feira, 30, uma fria e caótica véspera de feriado, cerca de 30 pessoas estiveram no debate “Políticas de Cultura e Desenvolvimento Humano no centro de São Paulo”, promovido pelo Instituto Pólis para pensar essa e outras questões.
Participaram da conversa o urbanista do Instituto Pólis, Kazuo Nakano; Beatriz Kara José, também urbanista e autora do livro Políticas Culturais e Negócios Urbanos – A Instrumentalização da Cultura na Revitalização do Centro de São Paulo; Rodolfo Garcia Vázquez diretor teatral do Grupo Satyros; e Sebastião Nicomedes, ator, dramaturgo e integrante do Movimento Nacional da População em Situação de Rua. O mediador foi Altair Moreira , integrante do Fórum Intermunicipal de Cultura (FIC).
A discussão na calçada
O ex-morador de rua Sebastião Nicomedes, o Tião, expôs como, através do estímulo do imaginário, ele e seus colegas conseguiram criar um canal de comunicação com outros moradores de rua, para discutir questões pessoais e coletivas.“Nós fazíamos nossos seminários [fóruns de população de rua] com mais adesão porque descobrimos os capoeiristas que têm no meio da população, músicos, gente que declama poesias. Com isso, criou-se a possibilidade de discutirmos coisas sérias de uma forma mais agradável, não tão agressiva, não tão deprimente como costumava ser.” A maneira de atrair as pessoas, diz Tião, era ir “com uma carroça equipada de som aos moradores de rua. Eu levava os bonecos e conseguíamos, com aquelas pessoas, senão discutir políticas, direitos, que a maioria nem tava mais sabendo o que era isso, mas levamos alegria, contar as histórias, lembrar quem são, de onde veio, sentir saudades, reconstruir vínculos. Com os bonecos eles conversavam, com a gente não.”
Tião denunciou ainda o crescente desaparecimento de artistas de rua do centro.“A GCM [Guarda Civil Metropolitana] conseguiu roubar o espetáculo, fazer um show melhor do que os artistas”. Tião acredita que o cerne do problema está no público das políticas culturais. “Cultura é pra quem tem, pra quem sabe, pra quem pode.” Ao priorizar espaços fechados , criam-se empecilhos para a troca e o acesso às várias dimensões das práticas culturais. “É reflexo do mundo inteiro, vale quem tem dinheiro, vale quem tem renda, vale quem gera lucro. Quem vai associar uma marca a um morador de rua?”
Status da região central
Rodolfo Garcia Vasquez falou da experiência do grupo Satyros – o qual ele dirige (leia mais). Desde o “auto-exílio” na França, na vazia década de 90, até a decisão, em 2000, de criar um teatro em uma área completamente abandonada como a praça Roosevelt, até agora, quando o grupo decidiu fazer o caminho inverso: ir do centro para a periferia. No ano passado, foi inaugurado um espaço dos Satyros no bairro Jardim Pantanal, periferia da Zona Leste – o terceiro do grupo.
Segundo Vasquez, um dos principais motivos de recomeçar em um local tão distante foi a transformação da praça Franklin Roosevelt durante 2005. “Em 2003 e 2004 vivemos a fase mais rica da praça. Eram travestis sentadas com escritores com artistas plásticos, jornalistas, traficantes. E a grande imprensa ainda não a tinha ´descoberto´.” A convivência entre os diferentes fazia toda a graça e a vida do local. “Cenas incríveis aconteciam como a de uma velhinha, sentada com um casal de lésbicas de 60 anos e uma travesti de 22 com seu namorado. Caiu nas graças da mídia, e o que era uma comunhão se transformou numa especulação imobiliária.”
A região, então, já não era mais tão maldita e novos moradores começaram a chegar. Moradores que já não achavam o teatro tão interessante, muito menos o “barulho” produzido pela sua presença. “Fomos para o Jardim Pantanal sem dinheiro, sem estrutura, só com vontade de voltar a ter contato com a vida real. Não com os valores mortos da vida tranqüila que a gente leva.”, explicou Vasquez.
A criação de uma nova atmosfera cultural como fez o Satyros, ou como faz o Tião com seu teatro de bonecos é bastante apropriada para a construção de um novo e desejado contexto social. No entanto, a urbanista Beatriz Kara José demonstrou como esse mecanismo potencializado e deturpado foi utilizado pelo Estado para revitalizar o centro a partir da década de 90. A criação e a intervenção em equipamentos culturais entrou na agenda de transformação da região central, como forma de recuperar um status que não existe há muito tempo e que não é mais a realidade . Nascem assim Centro Cultural Banco do Brasil (CCBB), Sala São Paulo, Museu da Língua Portuguesa, Projeto Monumenta – parceria com o BID (Banco Interamericano de Desenvolvimento) para a recuperação de patrimônio histórico, entre muitos outros.
Para Beatriz, “a política pública passa a trabalhar a favor de interesses muito específicos como a valorização imobiliária, para atrair um tipo de público que tem medo de vir pra essa região. Um público que pode inclusive resolver morar, atraindo a iniciativa privada, os empreendedores, que naturalmente vão gerar a transformação urbana do local, sem que o estado precise desembolsar”.
Como exemplo, o Projeto Monumenta, no qual uma das condições impostas pelo BID para a concessão do empréstimo é a comprovação da capacidade de valorização imobiliária da região. Só podem ser recuperados os imóveis que possam gerar renda, o que significa que a população que reside na região será obrigada a se mudar porque não terá mais condição de pagar pelo valor do aluguel.
Recriar sentidos
Ficou a cargo de Kazuo Nakano construir formulações a partir da fala de seus colegas. “Eu observei dimensões práticas da realidade sendo mostradas. E práticas criam sentidos e criam territórios.” Nakano questionou então seus companheiros, sobre quais maneiras a recriação de sentido pode resultar numa delimitação política de afirmação e resistência. “Quais possibilidades e dimensões de resistência a um processo de disputa por definir o sentido sócio-político do território do centro? Diante das forças que existem em disputa nesse território, é possível criar processos de resistências articulados com processos de criação?”
No dicionário, a palavra “resistir” possui vários significados. Entre eles está “não ceder, opor-se, recusar-se, sobreviver, durar, oferecer resistência”. Para Tião, recém-saído da rua, resistir é sobreviver, existir a despeito da experiência do desprezo e da perda total da condição humana. Já Rodolfo não gosta da palavra. Prefere outras, como impor, propor, atuar. Beatriz tem esperança de que a brecha aberta pelo fato de o capital privado não ter comprado a idéia de revalorização do centro possa ser aproveitada. Já Kazuo acredita que a resistência pode assumir um significado vivo, enquanto princípio de vida e criação de novas – e mais promissoras – formas de vida, através da viabilização de novas práticas sociais e existenciais.
Cultura e desenvolvimento social na cidade possuem uma relação possível e necessária. A cidade-modelo está para ser construída. As práticas culturais estão a ser concluídas. O sentido está para ser recriado. As práticas culturais no centro podem ser utilizadas como formas de resistência ao processo de desumanização e higienização.
Georgia Nicolau
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