Foto: Antonio Carlos Castejon
Em artigo publicado dia 06 de maio no jornal Folha de S.Paulo, Fabio Cesnik, José Mauricio Fittipaldi e Fernando Quintino defendem o Estado Democrático de Direito, por meio de legislação clara e efetiva. Além disso, apontam os riscos do projeto de revogação da Lei Rouanet em relação à questão da legalidade.

Cultura da Legalidade

Muitos têm acompanhado a discussão em torno da proposta do Ministério da Cultura (MinC) para a modificação do sistema de financiamento à cultura (com a revogação da Lei Rouanet), debate amplamente estimulado pelos veículos de comunicação, em geral, e por esta “Folha”, em particular, e cuja fase de consulta pública encerra-se na data de hoje (embora o debate prometa arrastar-se por mais tempo, derradeiramente no Congresso Nacional).

A discussão pública, com ampla participação dos meios de comunicação, é, sem dúvida, importante para a consolidação das instituições democráticas do país. Contudo, para que o debate seja verdadeiramente profícuo, é preciso que leve em consideração o texto da proposta efetivamente posta em consulta pública.

E nesse sentido, é preciso chamar a atenção para o perigo que as leis excessivamente vagas ou imprecisas representam: a inexatidão ou omissão de um texto legal é uma das principais ameaças ao Estado de Direito, pois, diante delas, o Poder Executivo passa a ter poder de dar à Lei o conteúdo que entender conveniente.

E é justamente neste ponto que a minuta de projeto de lei elaborada pelo MinC carece de reparo imediato. De tão vago, é impossível a qualquer um definir o seu efetivo conteúdo. Trata-se, pois, de uma questão de legalidade, princípio sobre o qual se assentam todos os demais princípios que caracterizam um Estado como sendo de Direito, isto é, no qual prevalece a força da Lei, sob controle do Poder Legislativo.

Para comprovar tal afirmação basta analisar o projeto, em especial na parte que regulamenta a aprovação de projetos submetidos à aprovação do Ministério da Cultura. O projeto (Parágrafo Único do art. 4º) estabelece a criação de Comitês Gestores Setoriais, com participação da sociedade civil, no âmbito da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, cuja composição, funcionamento e competências simplesmente não são definidos (ficam relegados à posterior regulamentação pelo Poder Executivo).

De igual forma, o art. 24 do mesmo projeto afirma que as propostas submetidas ao Ministério da Cultura serão avaliadas a partir de critérios “transparentes”, cujo conteúdo o projeto, em seu texto, igualmente não revela.
Por fim, o projeto, descrevendo perfeita parábola, dispõe (Parágrafo Primeiro do art. 32) que a definição dos tais critérios de análise ficará a cargo da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, com a colaboração dos Comitês Gestores – sim, os mesmos Comitês a que nos referimos acima, cuja composição permanece obscura.

Em outras palavras, o projeto apresentado pelo MinC não é omisso apenas quanto aos critérios que nortearão sua aplicação concreta, mas também quanto à composição da comissão competente para defini-los! Cabe perguntar: quem é competente para aprovar tais critérios, e qual o seu efetivo conteúdo? É evidente que o projeto apresentado viola a noção de legalidade, pois deixa de definir, na própria Lei, conceitos básicos à sua aplicação (pelo próprio MinC).

Em todos estes casos, o projeto relega as definições a um futuro Decreto (regulamento). Em sua defesa, o MinC tem alegado que “deixar para o regulamento” seria uma forma de não “engessar a lei”. O que o MinC vê como um inconveniente, contudo, é tido pelas constituições democráticas como imprescindível, e pela Constituição brasileira como uma garantia fundamental de todos os cidadãos.

A violação ao princípio da legalidade gera inevitavelmente lesão a diversos outros princípios, igualmente previstos pela nossa Constituição. Além disso, é sempre grande o perigo de que o debate passe a girar em torno não do texto em consulta pública, mas sim do discurso daqueles que o propuseram. É isso o que está ocorrendo neste momento: não se discute o projeto em si, mas apenas entrevistas e pronunciamentos de representantes do MinC a respeito dele (nos quais as autoridades dizem haver no projeto disposições que ele ainda não contém).

Em suma, a proposta apresentada é inconstitucional e precisa ser prontamente reformada, devendo o próprio MinC reconhecê-lo o quanto antes para o bem do próprio debate que está propondo. Afinal, será impossível para o Brasil discutir a “lei para a cultura” sem que, antes, se incorpore ao debate público uma “cultura de legalidade” – indispensável a qualquer discussão verdadeiramente democrática e republicana, como exigido pela nossa Constituição e pelo Estado Democrático de Direito.

* Fábio de Sá Cesnik, 34, advogado especialista em leis de incentivo fiscal, autor dos livros “Guia do Incentivo à Cultura” e “Globalização da Cultura”.
*José Maurício Fittipaldi, 29, advogado militante nas áreas de cultura e entretenimento.


contributor

Advogado, sócio do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados. Presidente das comissões de Direitos Autorais, Direitos Imateriais e Entretenimento da OAB/RJ e autor do livro “Guia do Incentivo à Cultura".

6Comentários

  • Carlos Henrique Machado Freitas, 7 de maio de 2009 @ 18:18 Reply

    A Folha de São Paulo é um jornal de limites geograficos bem definidos
    É um jornal PAULISTANO e ponto!
    No caso de sua atuação politica,é, concretamente um panfleto da elite paulistana e ponto!
    Um jornal de aluguel da paulistana FIESP assim como a veja por isso uma materia tão………………………….????

  • Leonardo Brant, 7 de maio de 2009 @ 21:22 Reply

    Não entendi Carlos. Vc está desqualificando o artigo e os autores aqpenas pq a Folha S.Paulo os publicou? Desse jeito, vc está parecendo o Juca Ferreira, que desqualifica tudo o que o contraria como sinônimo de elite e de privilégio. Abs, L

  • Carlos Henrique Machado, 8 de maio de 2009 @ 17:03 Reply

    Não Leonardo, não é com essa dimensão maniqueísta e mínima eu trato as coisas. O meu pensamento crítico tenta, na medida do possível, não só buscar imparcialidade, mas também a descentralização das opiniões expostas em uma cadeia de artigos que flagram de forma transparente a parcialidade da Folha contemplando sempre os mesmos contornos de apoio substancial explícito em sua linha editorial a setores de uma sociedade que podemos chamar de elite econômica sob qualquer forma de atividade da vida brasileira.
    Poderia citar aqui o escárnio de uma única linha politiqueira e altamente fascista com a sua emblemática série sobre a ditabranda com matérias claramente pró-ditadura, pró-tortura e pró-assassinatos em nome do agrado à oligarquia concentrada no coração da elite econômica brasileira.
    No caso da Lei Rouanet, ela está longe, léguas de ser um marco, negativo ou positivo, na vida cultural brasileira. A matéria insiste em substanciar a tese de dependência da Lei Rouanet, pior, omitindo a absurda arrecadação de impostos de brasileiros compulsoriamente taxados.
    Quanto a Juca Ferreira, fico ainda mais à vontade, fosse o ministro Juca ou Gil, pois aqui mesmo no Cultura e Mercado já escrevi muitos artigos criticando-os pelo não enfrentamento a uma questão escandalosa de estupro à sociedade brasileira, tendo como mote a cultura, a mesma que não se vê representada por meia-dúzia que avançou sobre os recursos públicos via Lei Rouanet.
    Acho que, em nome da coerência, tenho a obrigação de aplaudir de pé o Ministro Juca Ferreira pelo enfrentamento a um problema que afeta a imensa maioria de brasileiros, principalmente artistas, produtores, gestores, técnicos de todo o Brasil, inclusive de São Paulo que não vêem outros que não os mesmos gestores a concentrar vultosas verbas. Por isso seria até injusto falar da cidade de São Paulo como um todo, o estado então! Que fará o Brasil!
    Só mesmo a cara dura de um secretário estadual de cultura, historicamente chegado à fanfarronices privatistas como Sayad, pode acreditar que ele seja um exemplo de política pública cidadã. A grande mídia ainda tem a petulância de dar a ele espaço para suas alegorias fogueteiras do principado FHC.
    A matéria em si, Leonardo, trata de maneira alarmista um conceito de ilegalidade que não se sustenta perante a imoralidade de uma lei que há 18 anos foi feita sob medida para ampliar privilégios da oligarquia. O flagrante de catarse na matéria fica claro quando ela é reincidente com o mesmo grupo e seus interesses, sem ter uma vírgula de espaço para contraditórios, mostrando assim o limite geográfico e político que traz tal matéria, principalmente quando o tema é democracia cultural.
    Grande abraço.

  • Leonardo Brant, 8 de maio de 2009 @ 18:01 Reply

    Deixa eu ver se eu entendi. Só porque vc não gosta da Lei, por que ela não atende aos interesses públicos e da diversidade cultural do Brasil (é verdade, estou careca de saber) todos que são a favor dela são defensores das oligarquias e fazem parte de grupos de interesse pequenos e mesquinhos? E se eu disser que estou aqui defendendo o interesse de 150 mil empresas que, de uma forma ou de outra, dependem desse mecanismo rasteiro e insuficiente; e que considero a Lei Rouanet uma conquista (torta, de origem cinzenta, mas uma conquista, um direito adquirido do setor cultural), estarei trabalhando a favor das oligarquias, em detrimento da diversidade cultural? Desculpe, mas a lei é insuficiente, mas ela chega a 3 mil proponentes por ano. Qual o programa público de cultura que atinge a quinta parte disso?

    Outra coisa. A Lei é perversa, também acho. Mais perverso ainda é quem se utiliza dela para cometer, com a batuta do Estado, um golpe arbitrário, inconstitucional. O projeto do Juca Ferreira é uma farsa, não traz garantia alguma para o setor. Vamos acabar com a Lei Rouanet, sou a favor, mas somente com algo concreto em troca. A retórica do Juca só convence àqueles que acreditam em Papai Noel. Eu acredito em democracia, cidadania e na consolidação do Estado Democrático de Direito. O MinC está rasgando a constituição e artistas como vc, de calibre, valor e consciência, o aplaudem de pé.

    Isso porque nossos artistas foram humilhados por anos a fio por um sistema que só favorece à indústria cultural e a cultura do projeto, do evento e do espetáculo. Isso é injusto, incorreto. Mas não justifica uma ruptura desse tamanho. Precisamos fortalecer o mercado, inclusive o de entretenimento. Sem prejuízo do investimento em nossa rica diversidade. Devemos lutar por mais verbas para cultura, por um fundo autônomo para as artes. Com dinheiro. Não com palanques e palavras bonitas.

    O Circo do Juca já custou mais caro que o Cirque du Soleil. Vc sabe qto ele gastou de passagens, hospagens, publicidade? O suficiente para investir no choro, no maracatu e na cultura pantaneira. Coisa que ele não fez até hoje…

  • Carlos Henrique Machado Freitas, 10 de maio de 2009 @ 18:41 Reply

    Leonardo
    Posso, em muitos pontos, partilhar da sua aflição, dos seus princípios básicos, pois carregam bastante sensatez na dimensão de seu olhar. Mas, ao mesmo tempo, ela flagra uma necessária reflexão nossa, mais ciosa da visão que podemos ter de todo o conjunto de políticas públicas de cultura em território nacional. Se observarmos com abrangência as três esferas do exexutivo, o resultados concretos das políticas de investimento direta, principlamente das prefeituras e estados com o seu habitual aparelhamento político de palanque mesmo, tenho que partilhar bastante de sua prudência. É, de fato da alçada do ministério construir um ambiente propício a um sentido de pacto federativo em torno da cultura. Mas é também límpido que isso depende da ampliação deste mesmo sentido nos municípios e estados e, se observarmos o nítido aparelhamento político e o outdoor triunfalista, tendo à frente um FHC e um secretário de cultura de estado do mesmo partido, PSDB no comando dos desígnios da cultura paulista concentrando todos os esforços para dar muscularura ao governador José Serra, candidato à presidência, podemos, mais do que prudentes, apavorados com a ampliação de um desastre deste se um mesmo secretário vier a contaminar o seu partido e o mesmo assumir o comando do país. Seria, como foi no caso de FHC como presidente um verdadeiro desastre para a cultura nacional.

    Aquela declaração de Sayad na Folha durante o debate sobre a Lei Rouanet deixa claro quando ele afirma que que o cidadão não precisa ter contato com a rosa de ouro deles, a OSESP, basta saber que ela existe. Declaração somente comparada à do ilustre Gilmar Mendes quando diz que o STF não tem que ouvir ninguém pelas esquinas. Aliás, este é um dos homens que FHC, presidente da OSESP acha brilhante.

    Isso é de uma soberba de casta, de um fundamentalismo totalitário. Dito assim num debate e usado como argumento tosco, ele grifa o mesmo conceito de convencer a sociedade. Meu dinheiro, através dos impostos que pago serve como credencial para a minha participação cidadã. Já as minhas escolhas em relação às políticas públicas que são implantadas com este meu recurso dão ao captador o direito de unilateralmente tomar decisões que, frequentemente mais me prejudicam do que me beneficiam.

    Até aqui Leonardo, estamos no mesmo barco, seja nas decisões públicas ou nas privadas como você defende. E, com certeza fará a seguinte pergunta: por que eu tenho que entregar o dinheiro da minha contribuição nas mãos de banqueiros ou de grupos hegemônicos nacionais e internacionais para que façam propaganda de suas marcas e depois posem de padroeiros das letras e das artes sem que tirem um tostão do bolso? O pior é que eu não os elegi, não votei neles e sequer assinei qualquer procuração para o Bradesco, Itaú, Fundação Roberto Marinho a fim de montarem suas comissões seletivas, discricionárias sim, dirigistas.

    Erradamente, dizem ser a Lei Rouanet a privatização ou a terceirização da cultura, quem dera fosse. Um sistema que não nasce torto, sequer nasce se não for integralmente patrocinado pela sociedade. É uma imoralidade maior do que o escândalo das passagens dos deputados.

    Tudo isso que engloba as cenas expostas nas vísceras da Lei Rouanet é a síntese do pensamento crítico, propositivo, fomentador de ideias e reflexões que se quer passar da necessidade como principal pilar da política que tem mecanismos avançados de participação da coletividade das decisões do país. Se for este o preço que devemos pagar para a captação de recursos para desenvolver um mercado cultural, é bom que se diga que são recursos exclusivos de um mercado carregado de regalias e privilégios.

    Infelizmente, Leonardo, estamos distantes até mesmo de nos compreendermos como seres humanos. A superficialidade estampada em letreiros e espaços triunfalistas é reflexo da autonegação e não nos permite mergulhar profundamente em nossos reais sentimentos, que fará nos sentimentos de um Brasil profundo!

    É engano acreditarmos que as pesadas artilharias do capital e dos lobbys pelo mundo ditarão nossos sentimentos. Se a arte e a cultura se dobrassem a isso, não valeriam dois dinheiros, nem roubados, imagine o dinheiro suado, do trabalho e da luta cotidiana da sociedade na construção de um universo mais humano a partir da percepção local.

  • Leonardo Brant, 10 de maio de 2009 @ 19:59 Reply

    O problema, Carlos, é misturar alhos com bugalhos. Não é porque existem algumas pessoas das quais não compartilho ideias defendendo a Lei Rouanet que a defesa precisa ser posta em xeque. Isso é um maniqueísmo do tamanho do maniqueísmo do Juca, que transformou a complexa questão do financiamento público à cultura, cujo o único remédio é dinheiro, rios de dinheiro (é disso que precisamos) emn um discurso fantasioso, fácil e bem atrativo para as esquerdas rebeldes e setentistas. Mas é anacrônico, irreal e esconde por debaixo do tapete as piores práticas já vistas naquele gabinete.

    No princípio da discussão estou, como sempre, de acordo. A Lei é mesmo isso tudo. Mas é. O fundo é ficção científica. Torne-o real e nem precisaremos derrubar o mecenato com dinheiro público: ele cai sozinho…

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