Em artigo publicado dia 06 de maio no jornal Folha de S.Paulo, Fabio Cesnik, José Mauricio Fittipaldi e Fernando Quintino defendem o Estado Democrático de Direito, por meio de legislação clara e efetiva. Além disso, apontam os riscos do projeto de revogação da Lei Rouanet em relação à questão da legalidade.
Cultura da Legalidade
Muitos têm acompanhado a discussão em torno da proposta do Ministério da Cultura (MinC) para a modificação do sistema de financiamento à cultura (com a revogação da Lei Rouanet), debate amplamente estimulado pelos veículos de comunicação, em geral, e por esta “Folha”, em particular, e cuja fase de consulta pública encerra-se na data de hoje (embora o debate prometa arrastar-se por mais tempo, derradeiramente no Congresso Nacional).
A discussão pública, com ampla participação dos meios de comunicação, é, sem dúvida, importante para a consolidação das instituições democráticas do país. Contudo, para que o debate seja verdadeiramente profícuo, é preciso que leve em consideração o texto da proposta efetivamente posta em consulta pública.
E nesse sentido, é preciso chamar a atenção para o perigo que as leis excessivamente vagas ou imprecisas representam: a inexatidão ou omissão de um texto legal é uma das principais ameaças ao Estado de Direito, pois, diante delas, o Poder Executivo passa a ter poder de dar à Lei o conteúdo que entender conveniente.
E é justamente neste ponto que a minuta de projeto de lei elaborada pelo MinC carece de reparo imediato. De tão vago, é impossível a qualquer um definir o seu efetivo conteúdo. Trata-se, pois, de uma questão de legalidade, princípio sobre o qual se assentam todos os demais princípios que caracterizam um Estado como sendo de Direito, isto é, no qual prevalece a força da Lei, sob controle do Poder Legislativo.
Para comprovar tal afirmação basta analisar o projeto, em especial na parte que regulamenta a aprovação de projetos submetidos à aprovação do Ministério da Cultura. O projeto (Parágrafo Único do art. 4º) estabelece a criação de Comitês Gestores Setoriais, com participação da sociedade civil, no âmbito da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, cuja composição, funcionamento e competências simplesmente não são definidos (ficam relegados à posterior regulamentação pelo Poder Executivo).
De igual forma, o art. 24 do mesmo projeto afirma que as propostas submetidas ao Ministério da Cultura serão avaliadas a partir de critérios “transparentes”, cujo conteúdo o projeto, em seu texto, igualmente não revela.
Por fim, o projeto, descrevendo perfeita parábola, dispõe (Parágrafo Primeiro do art. 32) que a definição dos tais critérios de análise ficará a cargo da Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, com a colaboração dos Comitês Gestores – sim, os mesmos Comitês a que nos referimos acima, cuja composição permanece obscura.
Em outras palavras, o projeto apresentado pelo MinC não é omisso apenas quanto aos critérios que nortearão sua aplicação concreta, mas também quanto à composição da comissão competente para defini-los! Cabe perguntar: quem é competente para aprovar tais critérios, e qual o seu efetivo conteúdo? É evidente que o projeto apresentado viola a noção de legalidade, pois deixa de definir, na própria Lei, conceitos básicos à sua aplicação (pelo próprio MinC).
Em todos estes casos, o projeto relega as definições a um futuro Decreto (regulamento). Em sua defesa, o MinC tem alegado que “deixar para o regulamento” seria uma forma de não “engessar a lei”. O que o MinC vê como um inconveniente, contudo, é tido pelas constituições democráticas como imprescindível, e pela Constituição brasileira como uma garantia fundamental de todos os cidadãos.
A violação ao princípio da legalidade gera inevitavelmente lesão a diversos outros princípios, igualmente previstos pela nossa Constituição. Além disso, é sempre grande o perigo de que o debate passe a girar em torno não do texto em consulta pública, mas sim do discurso daqueles que o propuseram. É isso o que está ocorrendo neste momento: não se discute o projeto em si, mas apenas entrevistas e pronunciamentos de representantes do MinC a respeito dele (nos quais as autoridades dizem haver no projeto disposições que ele ainda não contém).
Em suma, a proposta apresentada é inconstitucional e precisa ser prontamente reformada, devendo o próprio MinC reconhecê-lo o quanto antes para o bem do próprio debate que está propondo. Afinal, será impossível para o Brasil discutir a “lei para a cultura” sem que, antes, se incorpore ao debate público uma “cultura de legalidade” – indispensável a qualquer discussão verdadeiramente democrática e republicana, como exigido pela nossa Constituição e pelo Estado Democrático de Direito.
* Fábio de Sá Cesnik, 34, advogado especialista em leis de incentivo fiscal, autor dos livros “Guia do Incentivo à Cultura” e “Globalização da Cultura”.
*José Maurício Fittipaldi, 29, advogado militante nas áreas de cultura e entretenimento.
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