“A Lei de Incentivo ao Esporte não é um problema apenas à cultura, mas um golpe gravíssimo às teses de fortalecimento do espaço público no Brasil, um péssimo exemplo para outros setores do governo e o reforço a um modelo (também utilizado pela cultura) bastante questionável”
A Lei de Incentivo ao Esporte que foi aprovada pela Câmara Federal traz à tona o debate sobre o financiamento de políticas públicas no Brasil. Este debate não pode ser analisado apenas pela aparente e óbvia oposição de interesses entre cultura e esportes – e seus respectivos ministérios. Isso seria uma simplificação terrível e estéril, embora esta oposição também deva ser percebida.
A apresentação de tal projeto de Lei e sua conseqüente aprovação pela Câmara expõe a crise de identidade que o Estado brasileiro vive ao definir as estratégias de financiamento de suas políticas e a fragilidade dos discursos contra a privatização, feitos em campanha eleitoral, inclusive por deputados e senadores que hoje defendem a renúncia fiscal total como meio de definição das políticas públicas no país.
A Lei de Incentivo ao Esporte não é um problema apenas à cultura, mas um golpe gravíssimo às teses de fortalecimento do espaço público no Brasil, um péssimo exemplo para outros setores do governo e o reforço a um modelo (também utilizado pela cultura) bastante questionável.
É muito importante que observemos alguns aspectos antes que o projeto encerre sua tramitação no legislativo e siga para sanção presidencial.
1. É inegável que a utilização do mecanismo de renúncia fiscal como tática para atração de recursos privados para investimento em áreas de interesse público é inteligente e necessária. O Estado brasileiro há muito que não tem recursos para, sozinho, garantir os investimentos desejáveis para a cultura, o esporte, a educação, o meio ambiente e para programas sociais. A instituição de um tipo de “parcerias público-privadas” nessas áreas é, sem dúvida, algo fundamental. Grande exemplo disso vem do meio ambiente, que tem defendido a criação de Reservas Particulares do Patrimônio Natural – RPPN’s -, onde há participação direta de proprietários de terra na proteção da biodiversidade e, no caso do Paraná, compensação financeira via ICMS ecológico.
2. Mas a renúncia fiscal, por si só, não resolve problema algum, já que pode ser apenas uma simples transferência de dinheiro público para o livre arbítrio do mercado. O que deve estar na raiz desse mecanismo é o incentivo a novos investimentos, ou melhor, a atração de “dinheiro novo” que, se somado ao dinheiro público renunciado, comporá um montante tal que justificará a transferência do poder de decisão do Estado à iniciativa privada. Na proposta de instituição do “IR ecológico”, que sem dúvida carece de debates, a dedução proposta é de até 80% do valor das doações e 60% dos patrocínios dirigidos a projetos ambientais previamente aprovados pelo poder público, até o limite de 6% do imposto de renda devido por pessoas físicas. No caso de pessoas jurídicas, poderão ser deduzidos até 40% do valor das doações e 30% dos patrocínios, respeitado o limite de 4% do IR.
3. No caso da Lei do Esporte isso não acontece, já que a renúncia fiscal pode ser de 100% do valor antecipado pelas pessoas físicas e/ou jurídicas, o que não agrega “dinheiro novo”. Ou seja, pela Lei de Incentivo ao Esporte, o Estado abre mão de sua capacidade de decidir sobre um determinado valor e o transfere integralmente ao mercado, sem que este precise colocar seus próprios recursos. Resguardando as limitações previstas pelo projeto, será o mercado que dirá, com dinheiro público, o que deve ser prioridade no esporte brasileiro. Tudo isso em troca da boa e velha divulgação de sua marca.
4. Se confrontado com a cultura, os danos são ainda maiores. A Lei de Incentivo ao Esporte ferirá de morte o atual modelo de financiamento à cultura, já que fará a disputa por recursos na mesma faixa de renúncia que a cultura ocupa hoje, mas com atrativos muito maiores. Além de ambas se enquadrarem no limite de 4% do imposto devido por pessoas jurídicas o que, na melhor das hipóteses, estimularia a divisão dos “investimentos”, a lei do esporte oferece renúncia de 100%, enquanto a Lei Rouanet apresenta faixas diferenciadas de renúncia, podendo ser de “apenas” 30%. Pela lei da cultura, a possibilidade de ingresso do chamado dinheiro novo existe de fato, enquanto que na do esporte ela só passa a existir se o “investidor” realmente quiser.
5. O Ministério da Cultura, infelizmente, é absolutamente dependente dos quase R$ 700 milhões renunciados, chegando a, inclusive, se auto-financiar com dinheiro renunciado. Na ausência de um orçamento que atenda minimamente a política em andamento, o MinC tem recorrido às empresas estatais para captar recursos via leis de incentivo, concorrendo, dessa maneira, com os produtores independentes. Certamente essa prática não pode ser classificada como erro do ministério, mas como tática de sobrevivência em meio à uma concepção equivocada de financiamento de políticas públicas – que agora será reforçada no plano esportivo.
6. Como já apontado pelo programa de governo 2006 do presidente, “a redefinição das responsabilidades do setor público no desenvolvimento do país, durante o governo Lula, produz a necessidade de uma transição do paradigma de financiamento das Políticas Públicas de Cultura” (…) “ampliando, dentro dos limites da capacidade de financiamento do Estado, as fontes orçamentárias de investimento”. Desde 2002 o compromisso do presidente Lula é com o fortalecimento do Fundo Nacional de Cultura e do orçamento do MinC (que em grande parte vem acontecendo), mas, em razão da crise de identidade mencionada acima, o que tem maior empuxo é a renúncia fiscal, que cresceu muito acima do previsto.
7. A aprovação da Lei de Incentivo ao Esporte, se aprovada como está, prestará um desserviço à cultura e, também, um desserviço ao próprio esporte. Entendo que a idéia de uma Lei de Incentivo não é errada, muito menos para o esporte brasileiro que, como todos sabemos, sofre as penúrias de um país que viveu sob os ditames do Estado mínimo. O esporte, ao lado da cultura, do meio ambiente e, sobretudo, da educação, são instrumentos poderosíssimos de construção de cidadania e de valores como respeito e solidariedade. Para que cumpram esse papel, precisam de mais investimentos, públicos e privados. Certo, porém, é que não cobrirão suas necessidades mínimas se brigarem entre si pelas mesmas migalhas.
Se o cobertor do Estado é curto, dividi-lo em partes é uma forma de socializar o frio, não de repartir o calor. O cobertor do esporte, da cultura e de outras áreas que também já elaboram seus projetos de renúncia fiscal, precisa ser emendado para que mais gente possa ficar aquecida. A renúncia fiscal só fará sentido se, por um lado, servir de incentivo para o ingresso de dinheiro novo da iniciativa privada e, por outro, se não significar a fragilização da capacidade de investimento do Estado.
Passou da hora do Brasil discutir seriamente o seu modelo de financiamento das políticas públicas. Num momento em que as leis de incentivo à cultura ingressaram numa fase de transição, a chegada de uma Lei de Incentivo ao Esporte com renúncia de 100%, sem escalas, servirá de empecilho para que os orçamentos públicos sejam fortalecidos e o controle social sobre eles seja qualificado e efetivo. E, num Estado dito republicano, isso é inadmissível.
Ou seja, se o cobertor é curto, parceria é melhor que terceirização!
Glauber Piva