Katerina Stenou, diretora da divisão de políticas culturais e diálogo intercultural da Unesco dispara: “a Convenção não foi feita para celebrar abordagens culturais nacionalistas, mas sim dar às culturas locais – onde quer que elas estejam – espaço para criarem um diálogo polifônico com o mundo”Katerina Stenou, diretora da divisão de políticas culturais e diálogo intercultural da Unesco dispara: “a Convenção não foi feita para celebrar abordagens culturais nacionalistas, mas sim dar às culturas locais – onde quer que elas estejam – espaço para criarem um diálogo polifônico com o mundo”
Katerina Stenou é uma das maiores autoridade do mundo em termos de políticas culturais internacionais. Coordenadora de cultura na Unesco, Stenou visitou recentemente o Brasil, por conta da Conferência anual da Rede Internacional de Políticas Culturais, que reúne ministros de cultura de todos os cantos. Num agradável café-da-manhã no Sofitel do Rio de Janeiro, ela fala com exclusividade a Cultura e Mercado e deixa sua opinião sobre a aplicabilidade da Convenção da Unesco, sobre Gilberto Gil e sobre o espinhoso processo de auditoria que o escritório brasileiro da organização está sofrendo.
Leonardo Brant – Como a Convenção da Unesco para a Diversidade Cultural afeta a vida do cidadão comum?
Katerina Stenou – Esta é uma questão muito interessante, pois não é fácil expressar em uma versão popular o significado da Convenção. O mais importante de se dizer às pessoas é que as referências culturais e idiomas vindos de toda parte do mundo são sempre bons à civilização. É bom que haja uma variedade de referências culturais e não uma restrita parcela de opções. Em outras palavras, essa Convenção serve para criar um ambiente cultural mais polifônico. Hoje, acreditamos que temos muitas opções, muitos filmes para assistir, muitas referências culturais. Mas na verdade, se olharmos bem, trata-se sempre o mesmo cenário. Porque sempre se trata do mesmo assunto, sem renovação. Portanto, acredito que a principal mensagem dessa Convenção é dizer às pessoas que há múltiplas escolhas que podem dar a elas a oportunidade de encontrarem até mesmo suas próprias vozes, suas próprias histórias, próprias questões. Mas não se trata de uma convenção nacionalista. Essa é a diferença, pois a Convenção não foi feita para celebrar abordagens culturais nacionalistas, mas sim dar às culturas locais – onde quer que elas estejam – espaço para criarem um diálogo polifônico com o mundo.
LB – Em sua opinião, esse documento permite que países em desenvolvimento como o Brasil tenham mais espaço para tomar decisões em âmbito internacional?
KS – Essa questão foi colocada para mim há pouco tempo, pelo ministro da cultura de El Salvador. Ele estava com medo de que grupos neonazistas, em nome da diversidade cultural, cobrassem espaço para atuar e promover idéias nazistas. Esse é um típico desvirtuamento da Convenção. A Convenção tem uma série de princípios, muito claros que dizem que ninguém pode evocar a declaração da diversidade cultural de forma a infringir os direitos humanos e liberdades fundamentais. Porém, qualquer documento legal pode ser subvertido. É por isso que a convenção realiza também uma atividade transparente com os relatórios periódicos para proteger e promover expressões culturais. E essa transparência compele as pessoas a serem justas com a declaração. Há espaço para subversão se elas tiverem uma mente distorcida, mas também há a possibilidade de “tocá-las” com os relatórios periódicos. As pessoas precisam estar alerta, vigiar.
LB – A expressão “Estar alerta, vigiar” não significaria que estamos impondo, mais uma vez, uma visão ocidental sobre as outras? Enfim, há contradições nisso tudo, não é mesmo?
KS – Sim, você está certo, mas nós partimos do pressuposto de que os fundamentos dos direitos humanos são compartilhados por todo mundo. A integridade física do indivíduo, a igualdade entre homens e mulheres são valores compartilhados ao redor do mundo. Mas é verdade, o Islamismo, por exemplo, pode dar espaço para certas interpretações. Mas nós somos humanos, interpretações fazem parte da nossa natureza.
LB – A Convenção pode ajudar a rediscutir questões cruciais para o desenvolvimento de países do Cone Sul, como comércio internacional e propriedade intelectual, por exemplo? Ou seja, ela pode ser um instrumento de conquistas junto à OMC (Organização Mundial do Comércio) e OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), por exemplo?
KS – Para dizer a verdade, quando você cria um instrumento tão ambicioso, quando você quer mostrar a contribuição da cultura sobre todo o processo de desenvolvimento, mas desenvolvimento entendido não só como crescimento material, mas também simbólico, e recuperando a dignidade dos povos, não cabe esse tipo de interpretação. Mas é verdade, há uma enorme classe de futuristas que pensam sobre temas como TRIPs, seus efeitos e responsabilidades. Eles não querem que a Unesco seja o principal corpo de tomada de decisões nesse ponto. Então a Unesco reconhece, ainda que indiretamente, os direitos de autor para a sustentabilidade da diversidade. E é esse o ponto: como sustentar a diversidade. E não, como encorajar as comunidades locais a prosperar por alguns momentos, mas como dar sustentabilidade a essa capacidade. Isso é o mais importante. Essa pergunta é muito importante e não deve ser revelada apenas na Unesco. Deve ser dirigida à OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), que pode agir em cooperação com a Unesco, pois essa Convenção terá muita força nesse ponto.
LB – Como que você vê o desempenho de Gilberto Gil nessa área? Como você o avalia em relação à Convenção, OMPI e OMC?
KS – Primeiramente, gostaria de expressar o quanto nós apreciamos o compromisso de Gilberto Gil e sua capacidade de ser, ao mesmo tempo, um grande artista e um ministro tão atento. É extraordinário ver alguém que ao invés de defender o copyright – estamos falando de um importante artista -, defende o chamado copyleft. É ao mesmo tempo muito estranho e extraordinário. Mas eu o entendendo, e os debates que estão se iniciando aqui são um grande laboratório de diversidade. Isto mostra que o modo de se evitar polarização é criar um outro modo através desses dois extremos. É uma alternativa, pois pode dar espaço a quem não tem voz, aos marginalizados. Essa pode ser uma possibilidade de começar os debates nos países do ocidente que são totalmente contra essa “liberação” de TRIPs e copyright.
LB – Nós percebemos uma grande diferença entre a UNESCO Paris e a regional do Brasil, que é o segundo maior escritório da organização no mundo. A UNESCO regional atua quase que exclusivamente mediando recursos internacionais com o governo. Como você vê o papel da UNESCO Brasil?
KS – Essa é uma pergunta muito dolorosa para mim. A regional da UNESCO no Brasil é grande, pois o Brasil é um grande país, um país-continente. Então, existem tantas questões e tantos desafios e talvez, o ex-diretor da UNESCO tenha se perdido. Mas o que eu sei é que há auditorias trabalhando para revelar o que se passou nessa época. Existe um processo de transparência para saber o que está havendo, mas eu não posso te dizer o que acontecerá. O que eu posso te dizer nesse momento é que a pessoa que está lá agora, meu colega Vicent Defourny tem um enorme trabalho pela frente, pois terá que interpretar o mandato e nossas missões de uma forma bem concreta, na tentativa de se aproximar das vozes locais, mas ao mesmo tempo, sem abrir mão da missão da UNESCO formulada em Paris, na Conferência Geral. Portanto, esse espaço que as regionais têm para interpretação fica freqüentemente sujeito a criticas. Há desvios e enganos, pois se trata de seres humanos, mas não quero acreditar que há outras agendas, inter-agendas, porque a UNESCO não é um banco. A UNESCO é um órgão ético que tenta enviar mensagens éticas e ver como essas mensagens podem ser incorporadas nas políticas culturais. Acreditamos que viver é viver culturalmente e não somente sobrevivência.
Leonardo Brant