O recém-publicado Relatório da UNCTAD sobre Economia Criativa toca em assuntos polêmicos como propriedade intelectual, diversidade cultural e os discursos dissonantes do sistema ONU. Ana Carla Fonseca Reis, uma das consultoras mais ativas na elaboração do relatório, responde e rebate, de maneira franca e aberta, as inquietações vividas por mim na militância internacional, traduzidas na leitura do relatório. Acompanhe a entrevista na íntegra:
Leonardo Brant – Como foi a sua participação no relatório?
Ana Carla Fonseca Reis – Contribuí com partes de vários capítulos, relatos de casos e análise de estudos. E aqui vai uma ressalva: eu compartilho boa parte das mensagens do relatório, mas claramente tenho perspectiva discordante de outros. É o que sempre ocorre em um trabalho feito por várias pessoas.
LB – Qual a participação política do Brasil no relatório? Ou seja, ali contém elementos da política internacional do Brasil? Quais e como foram introduzidas?
ACFR – Não, o relatório foi essencialmente um esforço entre agências da ONU, liderado pela UNCTAD e pelo PNUD (cujos coordenadores de economia criativa são, coincidentemente, dois brasileiros) e contou com a colaboração de uma meia dúzia de consultores de diferentes partes do mundo, em especial Austrália, África do Sul, Ásia, Colômbia e, claro, Brasil. Não envolveu governos.
LB – Qual a sua opinião sobre as posições do Brasil nas questões internacionais, sobretudo em relação à diversidade cultural, propriedade intelectual e comércio internacional de bens e serviços de valor simbólico?
ACFR – Creio que o Brasil teve participação primordial na ratificação da Convenção da Diversidade Cultural, tem buscado caminhos para fazer ouvir suas sugestões de revisões e ajustes da atual legislação de propriedade intelectual (claramente desfavorável aos países ditos em desenvolvimento), mas ainda tem muito por fazer na promoção do comércio internacional de bens e serviços culturais, salvo por setores específicos, como o da música. Além disso, ademais de promover internacionalmente a discussão acerca dos modelos de propriedade intelectual, não vejo grandes progressos no que diz respeito à divulgação dos riscos e oportunidades que os direitos de propriedade intelectual oferecem às comunidades brasileiras, pelo menos até que o modelo mude. Gostaria de saber se há algum projeto em implementação, para registrar nossos saberes e fazeres culturais, dado que as comunidades mais distantes dos grandes centros urbanos desconhecem seus direitos de PI, não saberiam como protegê-los e, mesmo que soubessem, não teriam dinheiro para fazê-lo. Lembra-se da tentativa de registro do nome cupuaçu, dentre tantos outros? O que estamos fazendo para evitar que tenhamos cupuaçus culturais aos borbotões?
LB – Em sua opinião, quais são os avanços trazidos pelo relatório? E onde ele é frágil?
ACFR – O relatório tem o valor inegável de constituir o primeiro relatório global acerca de economia criativa, suprindo várias carências do tema: levantamentos estatísticos, pontos de vista complementares (inclusive dentro do próprio sistema da ONU, vide discussão acerca da inadequação da atual legislação de PI), análise de estudos realizados, existência de definições alternativas à utilizada no Reino Unido, que via de regra se toma como paradigma etc. Ou seja, é sem dúvida uma obra de referência e capaz de gerar reflexões, de forma essencialmente apolítica. Além disso, é um alerta para nossos gestores públicos, já que mostra de forma inequívoca o potencial das produções cultural e criativa para o desenvolvimento e os riscos de não atentar-se a esse potencial, transferindo-o por negligência a outros países.
Em termos de fragilidade, creio que ele poderia ter sido mais enfático ao apresentar uma visão mais crítica de vários temas conceituais e de políticas em vigor – se não como posição da ONU, trazendo comentários contra e favor de pessoas e instituições.
LB – O relatório será traduzido para o português e lançado no Brasil? Quando?
ACFR – Infelizmente não para as duas questões. Foi feito um sumário em espanhol e francês, mas no Brasil não ocorrerá nem lançamento, nem edição em português. Eu acho uma pena, em especial tendo em vista o trabalho motivador que esse mesmo time tem feito no país, como por exemplo apoiando e patrocinando parte dos seminários sobre economia criativa que ocorreram em São Paulo e no Rio.
LB – Vejo a economia como um fenômeno cultural capaz de subordinar todos os outros à sua lógica. As principais instituições da política internacional atuam sob esse prisma e ultimamente têm dado atenção às questões culturais. OMC (Organização Mundial do Comércio), OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), PNUD (Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento) e UNCTAD (Conferência das Nações Unidas sobre o Comércio e Desenvolvimento) são exemplos disso. Sempre vi na economia criativa, sobretudo pela abordagem que você e a Lala Deheinzelin dão ao tema, uma brecha capaz de buscar a inversão desses princípios e valores reinantes. Mas a leitura do relatório transmitiu-me uma sensação oposta. Parece que a lógica econômica prevalece e se apropria com mais facilidade dos elementos culturais, transformando tudo em dados e informações manipuláveis, voltados aos interesses do capital e das grandes corporações. Você deve discordar dessa leitura, que pode até ser um pouco preconceituosa em relação aos avanços obtidos com os estudos da economia da cultura. Gostaria que você comentasse essa minha provocação e tentasse visualizar como este relatório pode ajudar as pessoas, sobretudo as que estão alijadas dos sistemas econômicos, perante os desafios contemporâneos da humanidade e do planeta. Ou seja, quais os efeitos macroeconômicos pretendidos com o relatório?
ACFR – Creio que há dois temas aí. O primeiro diz respeito à apropriação da cultura ou da criatividade de um povo por parte das grandes corporações. A tônica que o relatório imprimiu (e em parte conseguiu, a meu ver) é de que a economia criativa pode ser uma alternativa de desenvolvimento, a partir do momento em que a) reconhece que criatividade e cultura são também – embora claramente não apenas – recursos econômicos; b) demonstra que boa parte dos países ditos desenvolvidos já vem se beneficiando dessa percepção há várias décadas, enquanto a maioria dos países em desenvolvimento ainda tende a tratar cultura como cultura de elite, belas-artes ou o que deve ser guardado em aquário; c) é capaz de gerar, de fato, inclusão socioeconômica e d) explicita que a economia criativa tem, de fato, beneficiado grandes corporações mas também pequenas empresas e instituições e que outras não têm sido beneficiadas por gargalos que escapam de sua alçada – acesso a financiamento, concentração dos canais de distribuição, falta de capacitação de mão-de-obra, inexistência de estrutura de comunicações compatível, desconhecimento dos mecanismos de acesso ao mercado internacional etc.. A meu ver é incorreto imaginar que somente as grandes corporações se beneficiam do reconhecimento econômico da criatividade, assim como seria ingenuidade acreditar que ao reconhecer o valor econômico da criatividade os países em desenvolvimento estão salvos, porque os problemas obviamente não se resolvem por combustão espontânea. Ser criativo é um potencial – concretizá-lo do ponto de vista econômico é uma outra discussão e que se repete ad eternum, em vários debates – vide fuga de cérebros. O que me leva à segunda questão.
Tanto a economia da cultura quanto a economia criativa (que são conceitos distintos, embora com sobreposições – vide artigo que já publiquei no nosso caro CeM) não são normativas. Embora a economia deite raízes na filosofia moral, ela apontou ao longo dos séculos o dilema entre eficiência alocativa (como melhor aplicar os recursos disponíveis, gerando maior eficiência de investimentos) e justiça distributiva (alocá-los não necessariamente do modo mais eficiente, mas sim daquele que melhor distribuir seus recursos entre a população). Em suma, a economia criativa e a da cultura apontam os fluxos econômicos, os gargalos nesse fluxo e os instrumentos à disposição dos gestores de política pública para resolvê-los, seu impacto na sociedade, na distribuição de renda etc.. Mudar ou não o que ela escancara depende, obviamente, de que os gestores públicos saibam o que querem e que essa vontade declarada se converta em vontade política, recebendo a devida prioridade. As estatísticas e levantamentos, em si, não valem nada se não tiverem uma aplicação, se não forem interpretadas à luz de políticas cultural, de desenvolvimento, de turismo, de educação, de meio ambiente, de ciência e tecnologia – dimensões visceralmente entrelaçadas. Mudar ou não a situação depende de termos uma política cultural de fato, não só de direito.
LB – Ao ler a tentativa de definição do termo “criatividade” e as implicações econômicas ali sugeridas, percebi um certo temor de esgotamento do modelo de exploração da propriedade intelectual, que interessa muito aos países ricos, que determinam a agenda do desenvolvimento. A indústria precisa de novas fontes de criação para alimentá-la, pois há um esgotamento do modelo. Você concorda com essa leitura? Existe realmente por trás disso a tentativa de salvar um sistema de exploração do simbólico por uma indústria cultural em franco declínio?
ACFR – Não concordo com a definição de criatividade do relatório e vejo nela uma inconsistência com o restante do relatório. Creio que o relatório demonstra que o modelo em vigor é, de fato, o centrado em propriedade intelectual e alerta para os efeitos perniciosos disso, em função do que demonstra a busca de caminhos alternativos, como software livre e Creative Commons, enfatiza o risco do abismo digital como abismo cultural etc.
LB – Por outro lado, o relatório crê no protagonismo dos criativos, mas ainda sob um modelo de exploração que acumula recursos nas mãos de quem detém os mecanismos de troca e não de quem cria. O relatório chega a usar a Microsoft como paradigma, assim como o Cirque Du Soleil e o carnaval. Mas este modelo não está em crise? A greve dos roteiristas de Hollywood não seria um bom indicador dessa crise? Você acredita na possibilidade dos criadores inverterem esse processo, ou serão sempre o lado fraco da corda? O relatório oferece alguma resposta para essa questão?
ACFR – Vou quebrar a questão novamente em duas. Primeiro, o relatório fala tanto da Microsoft como do turismo no Perú, do carnaval baiano quanto de casos africanos de microempreendedorismo. A mensagem é, novamente, que há espaço para grandes corporações e para empreendedorismo privado. Um dos problemas para esta segunda categoria – e aí sim entro na sua inquietação, que compartilho -, é que muitas vezes têm de vender seu talento para as grandes corporações, não por quererem, mas por não conseguirem usá-lo economicamente em benefício próprio. De novo, por um mix de carências (de acesso a crédito, a mecanismos de divulgação, a canais de distribuição etc.). E nesse quesito meu quase inabalável otimismo é posto em cheque. Embora eu queira acreditar que o modelo atual está em crise, não estou convencida que esteja. O que ocorre, a meu ver, é que o rei tem ficado cada vez mais nu – se a partir disso vamos conseguir de fato alterar esse modelo como regra e não em sua exceção, com impactos ainda marginais, são outros quinhentos. Não quero dizer com isso que modelos alternativos sejam pro-forma, pelo contrário e sim que ainda não alcançaram massa crítica suficiente para que possamos dizer que o modelo está em crise – tem suas feridas cada vez mais evidentes, mas não chegou a estado crítico na maioria dos setores.
LB – O modelo vigente de exploração da propriedade intelectual é vantajoso para países como o Brasil, que conta com grande capacidade criativa, mas não detém os grandes conglomerados da indústria cultural, cuja cadeia chega a abocanhar 90% do, por assim dizer, “produto criativo”? Como fechar essa equação?
ACFR – Não creio que o modelo vigente seja vantajoso para quase nenhum país, já que é inadequado aos saberes tradicionais, já que anda de mãos dadas com um contexto de enorme concentração de distribuição das criações culturais (vide a impossibilidade prática de um escritor dispensar uma editora e ter alcance nacional de distribuição, o mesmo ocorrendo em vários outros setores). As próprias estatísticas apresentadas no relatório mostram isso – países em desenvolvimento, em especial, apresentam déficit de pagamento de royalties – importam produtos culturais em quantidade monstruosamente maior do que exportam, inclusive o Brasil. O modelo vigente beneficia alguns poucos países, que abrigam as sedes das empresas distribuidoras (como Estados Unidos e Reino Unido) e, claramente, as próprias empresas, que via de regra são transnacionais.
LB – A expressão “diversidade cultural” é apropriada segundo a conveniência de cada um. A Convenção da Unesco é fruto, sobretudo, de um movimento econômico que tenta barrar o preocupante crescimento das indústrias culturais norte-americanas, sobretudo a do audiovisual. Por trás da Convenção há o argumento de que não há promoção da diversidade sem preservação das identidades. Já os Estados Unidos lideram um grupo na Organização Mundial do Comércio intitulado “amigos da diversidade cultural”, em que defende o livre comércio como a única maneira de garantir a diversidade, pois o cerceamento do fluxo de bens simbólicos significaria a redução da oferta. O relatório do PNUD, em 2004, reconhece as ameaças do monopólio norte-americano, mas recomenda o livre comércio, o que é contraditório. E o relatório da Economia Criativa, de que lado está?
ACFR – Não está. A proposta do relatório é mostrar justamente esses conflitos, que como você bem salienta, são contraditórios, mostrando que caminhos alternativos são possíveis – desde, novamente, que os governos dos vários países acreditem, de fato, que essa é uma briga que vale a pena.
LB – O que é uma cidade criativa e como ela pode garantir uma vida melhor aos seus cidadãos? No Brasil, onde você reconhece potencialidades para implementação desse modelo?
ACFR – Minha leitura pessoal é que cidades criativas são aquelas capazes de se reinventar, de transformar seu tecido socioeconômico, tendo por base sua cultura e sua criatividade. Eu cada vez mais tendo a achar que isso ocorre essencialmente diante de situações de crise, assim como várias transformações químicas só ocorrem sob enorme pressão ou alta temperatura (ou, de forma mais popular, a necessidade é a mãe da invenção). Aqui, de novo, como ela pode oferecer melhor qualidade de vida aos seus cidadãos.
LB – O relatório faz uma tentativa de mensurar e analisar os ganhos obtidos com a economia criativa. Sinto uma tentativa de reduzir a cultura ao tangível (produto ou serviço). Ou seja, a cadeia começa a partir do momento em que se transforma em meio de produção. E o valor cultural por trás desse produto, como a economia pode reconhecê-lo e valorá-lo?
ACFR – O relatório mede o que é transacionado em mercados, porque é um relatório econômico mas alerta para o fato de que a) os bens, serviços e manifestações culturais podem ter uma faceta econômica, embora não se limitem a ela – ou seja, não se restringe o todo à parte e b) apresentam impacto sobre setores econômicos tradicionais (vide o valor agregado da cultura na indústria têxtil, transformando-a e moda), sem que necessariamente ganhem o mérito por isso – e esse é, inclusive, um dos aspectos positivos do relatório, sob o meu ponto de vista. Agora, mais além do relatório, você toca em um ponto crucial, que é uma das grandes dificuldades da economia: lidar com intangíveis, como o cultural, é um dos temas mais prementes da economia mundial.
LB – Você acha que os novos fenômenos de licenciamento, distribuição e difusão cultural gerados pelas novas mídias e pela sociedade da informação, como Creative Commons, Youtube, por exemplo, estão incorporados pelo relatório? Como?
ACFR – Acho que cobrimos isso acima, mas essencialmente são mencionados como reações às pressões acachapantes do modelo atual – você pode imaginar a encrenca que é construir uma agenda comum a OMPI, UNESCO e PNUD, por exemplo. E o relatório conseguiu, em parte, alinhar todo mundo.
LB – Por que a Economia Criativa é válida como estratégia para o desenvolvimento? De qual modelo de desenvolvimento estamos falando?
ACFR – A economia criativa pode – e essa é uma enorme ressalva – ser base de uma estratégia de desenvolvimento, por tudo o que conversamos acima: reconhece que a criatividade e a cultura são enormes agregadores de valor na economia (mas nem sempre os criadores e os países onde eles sentam se beneficiam com isso, em parte por falta dessa conscientização), que justamente por isso apresentam grande potencial de diferenciação da balança comercial de países produtores de commodities e que ao recolocar o criador no centro da cadeia tem grande potencial de inclusão socioeconômica (criadores são pessoas…). Agora, tornar-se ou não uma estratégia de desenvolvimento vai além do discurso e requer, obrigatoriamente, uma revisão da legislação de direitos de propriedade intelectual, a desconcentração de meios de distribuição são fatores impeditivos desse potencial econômico, investimentos em infra-estrutura de comunicações, alinhamento das pastas públicas (deixando de considerar a cultura como setor e sim de maneira transversal às outras políticas) e, acima de tudo, em capacitação – afinal, o que é o criador, se não um ser humano?
E aí chegamos à noção de desenvolvimento que eu, particularmente, adoto – a de expansão de liberdades de escolha. Promove-se o desenvolvimento ao restituir às pessoas sua capacidade de pensar e tomar suas próprias decisões, deixando-as menos reféns ao que os outros querem que elas façam, pensem, consumam e em quem elas devem votar. Isso significa desde a possibilidade de que um artista sobreviva financeiramente de sua produção (o que hoje, como sabemos, não é necessariamente a regra), até que seja capaz de escolher ver um programa na TV por querer de fato e não por ter sido alvo de investimentos de mídia dizendo-lhe que deve consumir isso. Expandir as liberdades de escolha significa não ser massa de manobra cultural, nem tampouco em sua vida – e ser consciente, da política à postura ambiental.
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