Entrevista com Sérgio Sá Leitão, assessor da presidência do BNDES, aponta rumos, lógicas e o futuro das linhas de investimento do banco à cultura.
Jornalista, na formação e nos períodos em que trabalhou na Folha de São Paulo, no Jornal do Brasil e no Jornal dos Sports, Sérgio Sá Leitão enveredou pelos caminhos da gestão em cultura, com pós-graduação em Políticas Públicas (USP) e Marketing (Ibmec). Desde então foi, entre 2003 e 2006, Chefe de Gabinete do Ministro da Cultura e Secretário de Políticas Culturais do Ministério da Cultura, onde coordenou programas como o Música do Brasil, CulturaPrev e os programas de Economia da Cultura.
Hoje, aos 40 anos, é Assessor da Presidência do BNDES, cargo que ocupa desde maio de 2006, onde foi um dos responsáveis pela criação do Departamento de Economia da Cultura e do Programa de Apoio à Cadeia Produtiva do Audiovisual, atividades que divide com a cadeira de professor da Pós-Graduação em Gestão Cultural da Universidade Cândido Mendes e de membro do Conselho Consultivo dos Projetos Setoriais de Exportação de Artes Visuais e Produção Independente de TV, da Apex, além de produzir vídeos e de ter publicado cinco livros.
Na entrevista que nos cedeu, o assessor apresenta os mecanismos de fomento e investimento do BNDES em cultura, fala sobre os programas e a estrutura do Departamento de Economia da Cultura, contextualiza as políticas públicas voltadas para a “economia da cultura” e a importância do setor no mundo e para o Brasil, dá direções de quais serão as posturas da gestão de Luciano Coutinho para a área, fala do potencial não explorado do Brasil nessa economia da criatividade e da inovação e dá pinceladas na participação do banco em programas de fomento à radiodifusão comercial e pública e à TV Digital.
CulturaeMercado – Na conjuntura atual, o que podemos considerar “economia da cultura”?
Sérgio Sá Leitão – Do ponto de vista da economia, a expressão “economia da cultura” identifica o conjunto de atividades econômicas relacionadas à cultura, incluindo a criação e o fazer cultural. Do ponto de vista da cultura, o conjunto das atividades culturais que têm algum impacto econômico. Pode-se incluir neste conjunto qualquer prática direta ou indiretamente cultural que gere valor econômico, além do valor cultural. A economia é, portanto, uma das dimensões da cultura. E a “economia da cultura” constitui um campo da economia.
As atividades geradoras de valor econômico deste “setor cultural e criativo” são as que constituem o campo da “economia da cultura” e influenciam outros setores, como os de ciência e tecnologia e de eletro-eletrônicos.
CeM – Quais são as principais características deste “setor cultural e criativo”?
SSL – Pesquisas recentes indicam que a “economia da cultura” é, atualmente, o setor que mais cresce, gera renda, exporta e emprega, e o que melhor remunera. É ainda o que mais impacta outros setores igualmente vitais. E produz maior valor adicionado. Está baseado no uso de recursos inesgotáveis (como a criatividade) e consome cada vez menos recursos naturais esgotáveis. Apresenta um uso intenso de inovações e impacta o desenvolvimento de novas tecnologias. Finalmente, seus produtos geram bem-estar, estimulam a formação do capital humano e reforçam os vínculos sociais e a identidade.
CeM – Este campo inclui apenas as indústrias culturais?
SSL – As indústrias culturais e seus serviços derivados são a vitrine deste campo. Refiro-me à indústria editorial, à indústria do audiovisual e à indústria da música, entre outras. Tais setores estruturam-se como cadeias produtivas. Basicamente, dizem respeito à criação, produção, distribuição e consumo de conteúdos e experiências culturais. Mas há também as atividades econômicas relacionadas à cultura que se estruturam como arranjos ou sistemas produtivos locais. E as de caráter individual, associativo e institucional.
Além do setor industrial da cultura, que inclui os segmentos do audiovisual, da música e da publicação de livros, entre outros, o estudo inclui, no campo da “economia da cultura”, a indústria da mídia (imprensa, rádio e TV), o campo criativo (moda, arquitetura, publicidade, design gráfico, design de produtos e design de interiores), o turismo cultural e as expressões artísticas e instituições culturais (artes cênicas, artes visuais, cultura popular, patrimônio material, museus, arquivos, bibliotecas, eventos, festas e exposições).
CeM – Qual é o tamanho da “economia da cultura” no mundo?
SSL – Segundo o “Global Entertainment & Media Outlook 2006-2010”, da Price Waterhouse Coopers, o setor passará de US$ 1,3 tri em 2005 a US$ 1,8 tri em 2010, crescendo 6,6% ao ano, bem acima da média da economia mundial (5%). Na América Latina, espera-se um crescimento anual médio de 8,5%, com o mercado passando de US$ 40 bi em 2005 para US$ 60 bi em 2010.
CeM – Qual é a importância da “economia da cultura” para a geração de renda no país atualmente?
SSL – O Brasil tem o maior potencial de crescimento no continente, por dois fatores: mercado interno expressivo e a riqueza e a diversidade da nossa cultura. Deve-se tratar de “economia da cultura” no Brasil pensando não apenas na situação existente, mas, sobretudo, no potencial não-realizado, assim como nas oportunidades que se colocam. De acordo com o “Sistema de Informações e Indicadores Culturais” (IBGE/MinC, 2006), o “setor cultural e criativo” respondia em 2003 por 5,7% dos empregos formais, 6,2% do número de empresas, 6% do valor adicionado geral e 4,4% das despesas médias das famílias. Estima-se que a participação no PIB seja de 5%.
CeM – Por que a “economia da cultura” é um setor estratégico para o país?
SSL – A “economia da cultura” é um novo front de desenvolvimento, por sua grande capacidade de geração de renda e emprego, por seu impacto na formação do capital humano e no desenvolvimento de novas tecnologias, e por seus efeitos sociais positivos. O crescimento do setor no Brasil tem sido muito expressivo, mesmo que os valores absolutos ainda sejam modestos, se comparados aos que se verificam nos países desenvolvidos. Segundo a Price Waterhouse Coopers, a “economia da cultura” no Brasil passou de US$ 11,548 bi em 2001 para US$ 14,648 bi em 2005. O estudo projeta que o setor atingirá a marca de US$ 21,917 bi em 2010, com uma taxa de crescimento anual estimada em 8,4%, ou quase o dobro da estimativa de crescimento do PIB brasileiro.
CeM – E como estimular o desenvolvimento da “economia da cultura” no Brasil?
SSL – O poder público já acordou para a “economia da cultura” e o que ela pode representar em termos de desenvolvimento. Em 2005, coordenei no MinC a formulação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Economia da Cultura (Prodec), que a partir de 2006 passou a integrar o Plano Plurianual e ganhou recursos próprios. Entre as ações desenvolvidas destaca-se o apoio aos Programas de Exportação de Música, Cinema e Produção Independente de TV, realizados em parceria com a Apex, o Sebrae e entidades setoriais. O ministro Gilberto Gil tem sido um apóstolo desta causa, e há cada vez mais adeptos.
CeM – E o que o BNDES pode fazer nesta área?
SSL – O BNDES criou em junho de 2006 o Departamento de Economia da Cultura, a partir de uma proposta que apresentei quando fui convidado a trabalhar na Assessoria da Presidência. Cerca de cinco meses depois, lançamos o Programa de Apoio à Cadeia Produtiva do Audiovisual (Procult/Audiovisual), orçado em R$ 175 milhões. Antes, em 2004, o BNDES havia criado duas linhas de crédito, uma para salas de cinema e outra para edição de livros, a partir de um processo de diálogo com o MinC do qual tive a felicidade de participar, ao lado de Leopoldo Nunes, Mário Diamante e Galeno Amorim. Tais linhas foram fundamentais para produzir massa crítica interna e abrir caminho para o Decult.
CeM – Quase um ano depois, pode-se dizer que o Departamento de Economia da Cultura esteja maduro para atender aos objetivos do BNDES e às demandas do setor?
SSL – Penso que o Decult apresenta um desempenho significativo, graças ao empenho e à qualidade de sua pequena equipe, e ao respaldo da Diretoria e da Presidência. O BNDES aprovou em fevereiro um financiamento de R$ 7 milhões para a construção, em São Paulo, de um complexo de estúdios e serviços voltado à produção de filmes, séries de TV e outros conteúdos audiovisuais. Foi a primeira operação do Decult. Na semana passada, aprovamos a segunda, no valor de R$ 2 milhões, para a construção de seis salas de cinema em Bangu, Zona Oeste do Rio de Janeiro, onde há claramente uma reduzida oferta de lazer.
Além do financiamento aos projetos da Quanta e da CineSystem, há mais 20 operações em análise. A performance inicial indica que o BNDES acertou ao apostar no potencial de expansão do setor e tomar medidas relativamente ousadas, como a criação de um departamento exclusivo e a adaptação de suas regras gerais às peculiaridades deste mercado. A tarefa não é simples, pois trata-se de uma iniciativa nova; e o setor, embora emergente, ainda demonstra elevada dependência de incentivos e baixa capacitação.
CeM – Que mecanismos de financiamento foram criados a partir do Decult, e qual sua importância política para as cadeias produtivas da cultura?
SSL – Há dois programas em andamento: o Procult/Audiovisual e o Protvd/Conteúdo. O primeiro reúne linhas de crédito para empresas de produção, comercialização, exibição e infra-estrutura de audiovisual. O patamar para operações diretas é R$ 1 milhão; os juros variam de 1,8% a 3,8% ao ano + TJLP (hoje em 6,5% ao ano). O objetivo central do BNDES é fazer com que pequenas, médias e grandes empresas da cultura usem seus mecanismos de estímulo ao crescimento, já disponíveis para outros setores da economia.
CeM – O Decult pode usar outros mecanismos?
SSL – O BNDES lida basicamente com quatro mecanismos: crédito de longo prazo a juros baixos, participação no capital de empresas, investimento de risco através de fundos, como os Funcines, e crédito de curto e médio prazos para aquisição de bens de produção (Cartão BNDES). Este é o “arsenal” do Decult.
Para usar este arsenal, o primeiro desafio do departamento era compreender as singularidades da “economia da cultura” e adaptar as regras da nossa política operacional para que os programas voltados ao “setor cultural e criativo” tivessem efetividade. O segundo era ter uma postura ativa, ir ao mercado divulgar as linhas e prospectar operações. Foi o que fizemos nos últimos meses, e os resultados estão aparecendo aos poucos.
CeM – O Decult vai ficar apenas no segmento do audiovisual?
SSL – O Decult está atualmente analisando várias operações de crédito no âmbito do Procult, investirá em novos fundos devotados à indústria do audiovisual, como o Funcine RB 1, da Rio Bravo, e tem procurado estimular o uso do Cartão BNDES. Sua próxima tarefa será a formulação de um programa para a cadeia da música, com meta análoga à do audiovisual: apoiar a expansão das empresas do setor, elevando sua capacidade de gerar renda, emprego e inclusão ao consumo. O Procult/Audiovisual, por sua vez, será aperfeiçoado, em especial no que diz respeito à produção. É preciso flexibilizar ainda mais as garantias, incluindo a precificação de obras, e encarar o risco, desde que haja confiança no projeto e na empresa. A opção pelo audiovisual foi uma questão de estratégia. Vamos avançar.
CeM – E o Protvd?
SSL – O Decult também é o responsável por analisar operações de conteúdo no âmbito do Programa de Apoio à Implementação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (Protvd), criado para apoiar, via financiamento ou participação acionária, a implantação do Sistema Brasileiro de TV Digital Terrestre (SBTVD-T). O Protvd contempla fornecedores de infra-estrutura e radiodifusores, que podem financiar hardware/software e produção de conteúdo e está orçado em R$ 1 bilhão. É importante frisar que o spread é menor caso a empresa de radiodifusão compre produção independente.
CeM – Além do projeto do SBT, há outros empréstimos para radiodifusoras comerciais sendo avaliados?
SSL – O SBT foi a primeira empresa de radiodifusão a submeter um projeto no âmbito do Protvd. Mas este projeto, até agora, diz respeito à migração de infra-estrutura. Está, portanto, sob análise do Departamento de Telecomunicações. O Decult já recebeu uma consulta preliminar sobre o Protvd/Conteúdo. Espero que prospere. Penso, porém, que a TV digital vai além da radiodifusão. Vista sob um prisma mais amplo, ela abre um vasto horizonte para a produção e o consumo de conteúdos audiovisuais. Pode-se falar em TV na Internet e no celular. O Procult foi pensado para lidar com este novo cenário.
CeM – Como é a estrutura do Decult?
SSL – O Decult tem duas gerências. Uma, que já existia previamente, ligada ao Departamento de Comunicação, lida com patrocínio a projetos culturais, através das leis de incentivo ou de recursos próprios. Esta gerência cuida do Programa de Apoio à Revitalização do Patrimônio Histórico e Arqueológico, do Programa de Apoio a Projetos de Preservação de Acervos, do Projeto Quintas no BNDES e do Programa de Apoio à Produção de Filmes de Longa-Metragem. A outra gerência, criada há pouco, é a de investimentos, que cuida do Procult, do Protvd/Conteúdo e dos Funcines, entre outros instrumentos. O Decult também apóia eventos setoriais focados em negócios, reflexão e capacitação.
CeM – O Decult tem, como se vê, uma peculiaridade: a dupla função de patrocinador, ligado ao marketing, e de banco de fomento, através de diversas ferramentas como empréstimos a juros baixos. Por que tratar essas duas vertentes do financiamento à atividade cultural juntas?
SSL – Penso que as funções de patrocinador e financiador podem e devem ser complementares. Tanto que o Decult está estudando agora a possibilidade de combinar recursos reembolsáveis (próprios) e não-reembolsáveis (através das leis de incentivo), de modo a viabilizar operações que não comportem o uso exclusivo de financiamento. O principal papel que o BNDES pode desempenhar é o de apoiar o desenvolvimento da “economia da cultura”. E setor algum se desenvolve apenas com incentivo fiscal. De qualquer modo, é preciso dizer que a dimensão do marketing jamais foi prioritária para o BNDES.
CeM – O patrocínio pode ser um fator de desenvolvimento?
SSL – A atuação do poder público na área da cultura baseou-se, historicamente, num sistema de financiamento que destina apenas recursos não-reembolsáveis, oriundos de orçamento ou de renúncia fiscal, a projetos culturais. Este sistema mostrou-se adequado para viabilizar uma parte da nossa produção cultural, mas insuficiente para estimular de modo sustentável o desenvolvimento das indústrias culturais brasileiras (e também a necessária expansão do consumo). Penso que o BNDES está ajudando a suprir uma lacuna.
CeM – Como medir o retorno de um investimento em cultura? É possível pensar além dos ganhos intangíveis, como diversidade cultural, ou de ganhos em marketing?
SSL – O impacto de um empreendimento cultural pode ser medido de vários modos. Para o BNDES, a questão central é a do desenvolvimento, tanto do setor quanto do país. Além de aspectos próprios de um financiamento, como capacidade de pagamento e histórico de desempenho, o BNDES analisa o que o projeto significa em termos de geração de emprego, renda e inclusão ao consumo. Queremos saber ainda como o projeto contribui para a estruturação de sua cadeia produtiva e se estimula a produtividade e a inovação.
CeM – Neste sentido, como vocês consideram a questão da inovação nas cadeias produtivas da cultura? Há alguma mudança com o início da gestão do Luciano Coutinho?
SSL – O novo presidente sinalizou claramente em seu discurso de posse a necessidade de o BNDES abordar o conjunto das cadeias produtivas da economia e seus vários elos. Também destacou que é preciso incentivar a internacionalização das empresas brasileiras e a elevação da produtividade, do grau de inovação, do uso de novas tecnologias e do valor adicionado. O crescimento do país ainda se apóia em atividades de baixa produtividade e baixo valor adicionado. É preciso mudar este quadro. A “economia da cultura” é um setor que se caracteriza pelo grande potencial de internacionalização, pela alta produtividade e influência na inovação, e pelo uso intenso de novas tecnologias.
CeM – Como ficam as TVs públicas na atual situação? Elas também podem captar recursos nas novas linhas? Em seu discurso no encerramento do Fórum Nacional de TVs Públicas, o presidente Lula colocou a necessidade de participação do BNDES na formação da rede pública, através de um PAC da cultura. Como isso está sendo recebido pelo banco?
SSL – O caso da TV pública é diferente do caso da radiodifusão privada. Não creio que uma linha de crédito tradicional faça sentido. É preciso pensar outras formas. Representei o BNDES no Grupo de Financiamento do Fórum de TVs Públicas (leia mais sobre o fórum) e pude estudar o assunto em profundidade. A TV pública deve aproveitar o contexto da migração para rever sua estrutura e seu modelo de gestão, financiamento e programação. Deve abrir-se à produção independente e expandir-se para Internet e celular. A existência de uma TV pública eficiente e contemporânea é chave para a saúde da democracia brasileira. O BNDES está atento e participará do processo. Mas devemos buscar também outras fontes, como os fundos de telecomunicações. Penso que o Procult e o Protvd são um PAC da cultura.
CeM – O BNDES tem aumentado sua participação em Funcines. Como funcionam estes mecanismos, e para que tipo de investidores pode ser rentável investir em cultura?
SSL – Acho que o momento não poderia ser mais adequado para o capital de risco descobrir a “economia da cultura” no Brasil. As chances de crescimento são claras. Os Funcines tendem a ser o melhor instrumento, no que diz respeito ao audiovisual. Para os investidores, a presença do incentivo fiscal mitiga o risco e potencializa o retorno. Para o setor, a busca do retorno e a gestão profissional são fatores estruturantes. O BNDES está feliz com o Funcine em que investiu e espera apoiar outros. O RB Cinema 1 (veja matéria de Carlos Minuano sobre o fundo) já investiu em oito filmes e na criação de uma distribuidora internacional de filmes brasileiros. Nosso objetivo é consolidar o instrumento e atrair investidores privados e gestores.
Guilherme Jeronymo
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