Gustavo Vidigal coordenou a implementação do Plano Nacional de Cultura e assume agora a Secretaria Executiva Adjunta do Ministério da Cultura: “O estímulo aos processos de participação deve ser contínuo e precisa ser traduzido em mecanismos de gestão, que lhes dêem um caráter mais permanente”. Acompanhe a entrevista exclusiva a Cultura e Mercado:

Leonardo BrantQual a importância do PNC para a nova proposta política proposta por Gilberto Gil?

Gustavo Vidigal – A construção do Plano representa uma conquista inédita para os artistas, produtores, gestores de políticas culturais e do patrimônio, grupos de identidade e diversidade e a sociedade, de modo geral. Pela primeira vez em um período democrático da história brasileira, teremos um instrumento legal de institucionalização de uma série de políticas necessárias para garantir o pleno exercício dos direitos de cidadania cultural, ou seja, de expressão e fruição simbólica. Ao longo dos próximos anos de implementação do Plano, seus resultados serão vários. Entre eles estão o reconhecimento do valor estratégico da cultura por parte do Estado e o estabelecimento de um sistema eficiente de gestão de políticas culturais. Além disso, o PNC deve propiciar uma continuidade de programas e ações do poder público para além dos períodos de cada governo da União, dos Estados e dos municípios, de forma que o interesse coletivo expresso por ele seja permanentemente contemplado.

Outro aspecto bastante importante dessa nova proposta política, defendido com bastante ênfase na gestão do ministro Gilberto Gil e agora na de Juca Ferreira, é a inclusão de setores sociais que até pouco tempo eram desconsiderados do campo de atuação das políticas culturais. Afro-brasileiros, indígenas, jovens, mestres de culturas populares, trabalhadores rurais, imigrantes, comunidades LGBT e outros grupos passam a receber a atenção que tradicionalmente se restringia a alguns segmentos artísticos e produtores da indústria cultural. Quando falamos em inclusão, não é no sentido de “levar a boa cultura a eles” e sim no de garantir canais para sua expressão e para que acessem as políticas do Estado.

Por fim, nossa expectativa é que o Plano caminhe em conjunto com o Sistema Nacional de Cultura. Um ajudará a pavimentar o caminho do outro, na medida em que o Sistema consiste na pactuação entre os diferentes atores envolvidos com o campo cultural e no estabelecimento de responsabilidades para cada um deles, e que o Plano, com base na mesma pactuação, consolidará uma base legal e conceitual para as políticas culturais. A seqüência de seminários estaduais do PNC, que constitui a etapa final de seu debate público, já tem sido muito interessante nesse sentido. Há um estreitamento de relações com os órgãos estaduais de gestão de cultura, aos quais cabe mobilizar os diversos segmentos culturais no estado para a participação nos debates.

LBComo se dá o equilíbrio entre a pauta proposta pelo MinC e as contribuições da sociedade civil no PNC?

GV – A pauta proposta pelo MinC já é resultado do diálogo com a sociedade e agentes do campo cultural, promovido em instâncias como a 1ª Conferência Nacional de Cultura – de cujo processo, em 2005, participaram cerca de 60 mil pessoas –, o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) e as Câmaras Setoriais, que agora são retomadas e reestruturadas, tornando-se Colegiados Setoriais, dentro do conselho. Além disso, é produto de estudos estatísticos do IBGE e do Ipea, bem como de diversos fóruns de discussão temática, como os de diversidade e de direitos autorais. Inclui ainda o saldo de discussões realizadas no âmbito da Unesco, que deram origem à Convenção da Diversidade Cultural, da qual o Brasil é um dos países signatários. Também são subsídios os debates promovidos dentro do Ministério da Cultura ou com o envolvimento de outros ministérios, do poder legislativo federal e dos órgãos estaduais e municipais de gestão das políticas culturais.

Nos seminários estaduais que estamos realizando até o fim deste ano em todo o País, temos percebido que a responsabilidade do ministério encontra reflexo na demanda da população por uma instituição que responda por uma articulação sistêmica de políticas abrangentes, tanto em termos de manifestações culturais quanto em termos regionais. As contribuições da sociedade civil são imprescindíveis. Orientam a atuação do MinC e sustentam a sua legitimidade.
 
LBQuem decide quais contribuições populares entram ou saem do PNC? Há um critério de representatividade, relevância da questão ou adesão político-ideológica das propostas?

GV – O Ministério da Cultura e o Congresso Nacional são as instituições responsáveis por sistematizar as contribuições da sociedade civil. Vale ressaltar que os seminários estaduais do Plano, que temos promovido em parceria com a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados, funcionam como audiências públicas, têm inclusive valor legal como tal. Durante todo o processo de elaboração do Plano, adotamos diversos critérios. Na Conferência Nacional de Cultura, por exemplo, tivemos uma plenária nacional que aprovou uma série de propostas que inspiram em larga medida aquilo que consta no caderno de diretrizes publicado pelo MinC para subsidiar os debates conclusivos sobre o PNC. Nos seminários que estamos realizando este semestre e no fórum virtual abrigado na página www.cultura.gov.br/pnc, a metodologia de incorporação de propostas inclui quatro critérios gerais: a correspondência com o acúmulo de discussões; a abrangência temática, setorial e territorial; a perspectiva de longo prazo de vigência do Plano; e o reforço à integração dos agentes públicos, privados e da sociedade civil que poderão contribuir para a realização do PNC.

Essas condições de aproveitamento das contribuições indicam que sua representatividade será marcada pela capacidade de estabelecer relações com a série de debates iniciada em 2003, com a ampliação do conceito de cultura e os esforços de disseminação das políticas por todo o país, com a formação de um planejamento estratégico plurianual e com os princípios de cooperação. Com esses critérios, tornados públicos desde o início da etapa de consultas dos Seminários e do fórum virtual, o MinC produzirá um texto final destinado a orientar a relatoria e votação do projeto de lei do Plano que tramita na Câmara dos Deputados desde 2006.

É importante notar que não houve, nos seminários estaduais, questionamento à base conceitual e à linha-mestra do projeto, traduzida em suas cinco estratégias gerais – Fortalecer a ação do Estado no planejamento e na execução das políticas culturais; Incentivar, proteger a valorizar a diversidade cultural brasileira; Universalizar o acesso dos brasileiros à fruição e à produção cultural; Ampliar a participação da cultura no desenvolvimento socioeconômico sustentável; e Consolidar os sistemas de participação social na gestão das políticas culturais. O caderno de diretrizes foi muito bem recebido. As propostas que têm sido aprovadas, de modo geral, dizem respeito a reorganização, maior clareza na redação. Em alguns casos, incluem segmentos e linguagens ao lado dos que estavam citados; em outros, tornam a diretriz mais genérica, para que tenha alcance mais amplo.

LBO MinC está satisfeito com a participação popular na construção do PNC?

GV – Sem dúvida. A participação tem sido bastante qualificada, sem apego a questões locais, e diversificada. Participam representantes de diversos setores de produção e difusão das artes, gestores de instituições culturais públicas e privadas, empreendedores, artesãos, técnicos, produtores, intelectuais, legisladores, militantes de movimentos sociais e representantes de comunidades tradicionais, entre outros segmentos. A mobilização resultante dos debates nos estados é, por si, um ganho para a sociedade e para o Estado, pois ativa e reforça as redes sociais e aumenta a capilaridade das informações sobre a gestão cultural. Mas sabemos que isso não basta: o estímulo aos processos de participação deve ser contínuo e precisa ser traduzido em mecanismos de gestão, que lhes dêem um caráter mais permanente. O Plano Nacional traz um capítulo (um de seus cinco eixos) voltado a essas questões.
 
LBO PNC já não abarca e discute a questão do financiamento à cultura e a política para as artes em inúmeros seminários por todo o Brasil? Por que o MinC realiza outra turnê, os “Diálogos Culturais”, para discutir esses assuntos?

GV – Por conta de sua complexidade e forma de elaboração, que envolve tanto contribuições setoriais quanto propostas gerais, o Plano tende a ser visto como o mecanismo que vai dar conta de todas as questões das políticas culturais. Em lugar disso, devemos admiti-lo como um planejamento estratégico que estabelece valores fundamentais, identifica os principais desafios para um amplo leque de áreas de atendimento e projeta diretrizes. Esse conjunto orientará o alinhamento de instrumentos complementares que tratarão das especificidades de vários temas, como as artes e o financiamento. Por esse motivo, os Diálogos Culturais, os Colegiados Setoriais, a futura consulta pública da proposta de reforma da lei de incentivo, o Fórum Nacional de Direito Autoral e outros eventos cumprem a tarefa de aprofundamento dos assuntos que compõem o Plano e não se sobrepõem às suas discussões. Enfim, a cultura engloba um espectro muito amplo, e o desafio do PNC é estabelecer orientações sistêmicas que possam trazer benefícios às condições de produção e fruição da imensa variedade de expressões incluídas nesse espectro.

LBCelso Frateschi saiu dizendo que o MinC se reúne muito e realiza pouco. Você acha que o processo do PNC contribui para essa percepção?

GV – É muito mais fácil traçar ações no próprio gabinete – estabelecer políticas por decreto, como se diz – que estimular processos de participação. O Ministério da Cultura optou pelo segundo caminho, que pode ser mais demorado, mas é muito mais rico, resulta em políticas mais certeiras, mais legítimas e com respaldo muito maior para implementação. Foi assim na gestão de Gilberto Gil e será na de Juca Ferreira. Vale lembrar que a seqüência participativa do PNC já passou muito do ponto zero em termos de concretude. As propostas reunidas ao longo de cinco anos estão compiladas no caderno de diretrizes, que é um documento público. É ao mesmo tempo a base para a atual etapa de discussão pública e um instrumento para a sociedade cobrar a conclusão do Plano. E a fase de discussão pública está em sua reta final, com término na primeira semana de dezembro. A votação está prevista para o semestre que vem. Além disso, precisamos ter em conta que não houve antes uma iniciativa equivalente no campo cultural. Os planos nacionais de educação, saúde e meio ambiente levaram muito mais tempo para se concretizar.
 
LB – Quais os próximos passos para a consolidação do PNC?

GV – Temos ainda sete seminários pela frente, completando os 26 estados e o Distrito Federal – cujo debate, aliás, começa segunda-feira (10). Haverá um trabalho de sistematização dos relatórios aprovados nos estados, para vermos como impactam o texto atual do caderno, quais propostas aparecem de forma consensual, que temas suscitaram entendimentos antagônicos, que questões exigirão novos estudos ou novas rodadas de decisão. Pretendemos encaminhar o material gerado a partir dessa análise ao Congresso Nacional no começo do ano, como subsídio para votação do projeto de lei do PNC. Como os seminários são promovidos em parceria com o Congresso (mais especificamente a Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados), a expectativa é que o texto não passe por grandes alterações para aprovação. Essa previsão se baseia também no sólido processo de consulta pública e elaboração, que dá um peso grande ao conteúdo. Para depois, está prevista a criação de um sistema de acompanhamento do Plano Nacional de Cultura. Participarão dele, além do MinC, outras pastas do governo federal, governos estaduais e prefeituras, os poderes Legislativo e Judiciário nas três esferas da federação, o CNPC e seus correspondentes nos estados e municípios, o TCU, o Ministério Público… Esse sistema está descrito no caderno de diretrizes, acessível aqui. O Plano terá desdobramentos, que também pedirão participação popular. A começar pela formulação de programas e planos segmentados e regionais, com metas e divisão de responsabilidades. O acompanhamento vai gerar revisões periódicas, que se embasarão na efetividade das ações e na evolução dos indicadores culturais do País e de suas regiões.
LBNa Secretaria-executiva, você tem atuado frente o Conselho Nacional de Política Cultural. Você considera o conselho legítimo, republicano, democrático, mesmo sendo formado por pessoas escolhidas pelo Ministro? Vocês pensam em outras maneiras de formar um conselho, com a voz ativa de todos os segmentos da sociedade? Como tem sido a experiência de incorporar a voz dos conselheiros nas atividades cotidianas do Ministério?

GV – Sem dúvida que considero o CNPC legítimo, republicano e democrático. Apenas três de seus 52 titulares (dos quais 46 têm direito a voto) são escolhidos pelo ministro. Estão representados no conselho diversos segmentos culturais: artes visuais; música popular e erudita; teatro; dança; circo; audiovisual; literatura, livro e leitura; artes digitais; culturas afro-brasileiras, de povos indígenas e populares; arquivos; museus; e patrimônio material e imaterial. Também têm assento dez ministérios e a Presidência da República, o poder público estadual e municipal, o Sistema S, associações e organizações não-governamentais, Academia Brasileira de Letras, Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Ministério Público Federal, Comissão de Educação, Cultura e Esporte do Senado e Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados. A experiência de incorporar a voz dos conselheiros nas atividades do ministério tem sido muito boa. O primeiro tema após a reativação do colegiado foi o PNC, e as sugestões dos conselheiros ajudaram a aperfeiçoar o texto do caderno de diretrizes do Plano. As mudanças deram origem à segunda edição do caderno. Os conselheiros também discutiram a proposta do Sistema S e as ações que integram cultura e segurança. Estão começando, ainda, a discutir o aperfeiçoamento da Lei Rouanet e da Lei de Direito Autoral, dois temas centrais na agenda do ministério e da cultura nacional.

LB – E as Câmaras Setoriais, por que ficaram paradas e por que retomá-las?

GV – A instalação do CNPC, que aconteceu no fim do ano passado, reconfigurou os espaços colegiados do ministério. Precisávamos adequar as Câmaras Setoriais ao funcionamento do conselho. O ministério tem consciência de que elas desempenham um papel fundamental, que é o de expressar as opiniões internas a cada segmento cultural e fazer a ponte entre esses e o ministério. As câmaras, inicialmente focadas exclusivamente na cadeia produtiva de cada setor, terão um papel ampliado, de forma a atuar mais diretamente na elaboração de políticas públicas, sem abandonar o lado mais dirigido a economia da cultura e relações entre os segmentos. Passarão a ser colegiados ligados ao CNPC. Já na revisão do Plano Nacional de Cultura elas tiveram uma atuação importante.

Sobre Gustavo Vidigal

Está no Ministério da Cultura desde fevereiro de 2007. Coordenou o Plano Nacional de Cultura daquele mês até setembro de 2008, quando assumiu o cargo de secretário executivo adjunto do ministério. Coordena o Conselho Nacional de Política Cultural (CNPC) e o Programa de Extensão Universitária e Cultura (ProExt Cultura).

É cientista social formado pela Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, e mestre em Sociologia pela mesma unidade. Como assessor técnico especial do gabinete da prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, integrou a coordenação do Programa de Desenvolvimento da Zona Leste.


Pesquisador cultural e empreendedor criativo. Criador do Cultura e Mercado e fundador do Cemec, é presidente do Instituto Pensarte. Autor dos livros O Poder da Cultura (Peirópolis, 2009) e Mercado Cultural (Escrituras, 2001), entre outros: www.brant.com.br

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *