O debate sobre a legislação de direito autoral não é quente só no Brasil. Reportagem do jornal Valor Econômico informa que nos EUA, na Europa e em outros países, legisladores sofrem pressões restritivas e liberalizantes. De um lado, corporações da indústria cultural, como a MPAA (Associação Cinematográfica da América) nos EUA, e a Sacem (Sociedade dos Autores, Compositores e Editores de Música) na França, exigem o reforço das penalidades para quem contorna medidas de bloqueio à cópia eletrônica, como a DRM (Gestão Digital de Direitos). De outro, bibliotecas, artistas digitais e universidades pedem a legalização de práticas que, embora corriqueiras, não são contempladas pela lei.

A Comissão Europeia mantém uma pesquisa pública sobre eventuais reformas legislativas para adequar seu sistema de proteção à propriedade intelectual na “sociedade da informação”. As pressões para reformar a legislação surgem da necessidade de estabelecer um ambiente legal e econômico confortável para práticas criativas que permeiam a indústria cultural.

Francis Gurry, diretor-geral da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (Ompi), reconhece que a questão atravessa campos tão diversos quanto o econômico, o jurídico, o artístico e o tecnológico. Por isso, resume-o como um impasse. “Como a sociedade pode tornar as obras disponíveis a preço acessível e também assegurar a existência econômica digna aos criadores e intérpretes?”, questionou em evento internacional.

No Chile, uma nova lei, implantada em 2010, trouxe dispositivos para flexibilizar o uso de obras protegidas. A nova lei chilena “não só oferece um quadro flexível para usuários, mas também para criadores”, diz o advogado Alberto Cerda, da Universidad de Chile. “A lei define exceções que dão agilidade ao processo criativo. Primeiro, nas citações, fundamentais para a academia e o mercado editorial. Segundo, para a colagem e o mash-up, relevantes nas artes visuais. Enfim, na engenharia reversa, essencial para desenvolvedores de software.”

No Brasil, o debate está centrado no anteprojeto de reforma da Lei de Direitos Autorais (9610/98), preparado na gestão de Juca Ferreira no MinC, durante o governo Lula, e enviado no fim de 2010 para a Casa Civil. A nova ministra, Ana de Hollanda, trouxe o anteprojeto de volta para o MinC para nova análise.

O início da polêmica aconteceu com a retirada selo da licença Creative Commons do site do MinC. A ministra argumentou que o licenciamento já é previsto pela lei brasileira e não necessita de uma iniciativa em particular. O secretário-executivo do MinC, Vitor Ortiz, lembrou que a ONG Creative Commons é uma iniciativa privada e afirmou que o selo não poderia estar no site de um órgão do governo sem um debate público prévio.

Especialistas em propriedade intelectual não concordam que seja redundante fazer uso de um sistema específico, como é o caso do Creative Commons, para organizar a circulação de criações. O advogado Pedro Paranaguá, da Universidade Duke, nos EUA, ressalta que, embora o licenciamento esteja previsto na lei, “para que ocorra, é preciso dizê-lo expressamente. Sem licença ou contrato, todos os direitos ficam reservados”.

Novos caminhos – Artistas jovens enxergam no uso de licenças abertas uma oportunidade de difusão de seu trabalho. Os caminhos oferecidos pelo mercado tradicional lhes parecem lentos e difíceis, mas a divulgação livre, ou parcialmente livre, de obras na internet se revela um meio mais eficaz e simples de atingir o público. No entanto, o formato aberto da distribuição não significa que os músicos abdiquem da receita dos direitos autorais, particularmente nas execuções de rádio.

“Às vezes entramos no sistema do Ecad [Escritório Central de Arrecadação] e, se tem algum dinheiro, é uma surpresa boa”, diz o baterista da banda pernambucana Mombojó, Vicente Machado. Ele conta que deixar a música na internet foi fundamental para a banda ficar conhecida. “Nosso primeiro disco teve 2 mil cópias. Elas não chegaram muito longe, mas, pela internet, a música se espalhou pelo Brasil todo. Quando íamos tocar em algum lugar, as pessoas conheciam as músicas porque copiaram da internet.”

Para o advogado Peter Jaszi, da Universidade de Washington, o desafio da indústria cultural é reformular modelos de negócios estabelecidos sobre a criatividade. Se os suportes – livros, discos, fitas etc. – aproximavam os bens imateriais do regime material, o mesmo não vale para arquivos como os que circulam em computadores e outros aparelhos. “Os livros eletrônicos têm funcionado como modelo. Os editores foram agressivos ao fazer a transição, porque receberam ajuda da Amazon [livraria virtual que lançou o leitor Kindle]. No caso do programa iTunes [de transferência de arquivos musicais], o resultado segue em aberto. As gravadoras têm conduzido muito mal seus negócios. Para os usuários, elas perderam o contato com o que as pessoas querem escutar”, explica Jaszi.

Além da internet – Além da tecnologia digital, práticas artísticas também põem sob pressão a forma tradicional de lidar com a autoria. Uma exposição do fotógrafo e advogado Eduardo Muylaert em São Paulo explora uma área de fronteira autoral. Em cartaz na galeria Fauna, “As Mulheres dos Outros” exibe reproduções de fotografias compradas na feira de antiguidades do Museu de Arte de São Paulo (Masp). O artista conta que encontrou as imagens dos anos 1950 em péssimo estado. Fotógrafos e modelos eram anônimos. A exposição consiste em ampliações que realçam os efeitos do tempo e da má conservação.

Segundo uma leitura possível da lei atual, a exposição seria considerada ofensiva aos direitos autorais dos fotógrafos de 60 anos atrás, que não foram consultados quanto ao uso de seu trabalho nem serão pagos. No entanto, a iniciativa do fotógrafo é corrente entre criadores que, na linha de Andy Warhol e Jean-Luc Godard, em vez de criar imagens, retrabalham a infinidade de imagens já disponíveis.

Como advogado, Muylaert estava ciente do possível impasse jurídico. Apoiou-se sobre o oitavo parágrafo do artigo 46 da lei atual, que permite a reprodução de “pequenos trechos” de obras preexistentes quando não houver “prejuízo injustificado aos legítimos interesses dos autores”. “Sinto que meu trabalho é legítimo com base nesses artigos”, afirma o artista, que também se muniu de um arsenal teórico para sustentar seu argumento. São textos de Roland Barthes, Gérard Genette, Douglas Crimp, Richard Misrach e outros.

Juristas que se debruçam sobre o assunto não consideram os artigos citados por Muylaert tão seguros. Para Guilherme Varella, do Idec (Instituto de Defesa do Consumidor), a lei autoral brasileira está entre as mais restritivas do mundo e o trecho em questão deixa em aberto o sentido de “pequeno trecho”, “exploração normal” e “prejuízo injustificado”.

Um dos objetivos da nova lei autoral seria resolver impasses como esse. As fotografias garimpadas por Muylaert seriam “obras órfãs”, isto é, cujo autor é desconhecido ou não pode ser encontrado. Para casos assim, seriam concedidas “licenças não voluntárias”. Os direitos econômicos seriam recolhidos em juízo, mas os morais seriam dispensados temporariamente. O mesmo procedimento se aplicaria a marchinhas de carnaval da década de 1930 de que não se conhece o autor.

No plano internacional, encerrou-se em janeiro um caso judicial emblemático das tensões sobre o direito autoral. A agência Associated Press (AP) e o artista plástico americano Shepard Fairey anunciaram um acordo extrajudicial que pôs fim a uma disputa iniciada em 2008. O objeto do desentendimento foi um dos ícones mais conhecidos do século 21: o pôster de Barack Obama com a palavra “Hope” (esperança).

A imagem original foi realizada em 2006 pelo fotógrafo Manny Garcia, contratado pela AP. Fairey copiou a imagem, pintou-a novamente e a imprimiu em grande escala. Mais tarde, quando a imagem já tinha se tornado um dos símbolos do processo eleitoral americano, passou a aparecer reproduzida em camisetas e souvenires. Ou seja, entrou pela porta dos fundos no mundo comercial.

Na declaração oficial emitida por Fairey e pela AP, as duas partes afirmaram que não abriam mão de suas perspectivas. A agência sustentava que o artista tinha infringido as leis americanas de copyright. Fairey manteve sua avaliação de que seu caso entrava na categoria de fair use, um regime indeterminado de exceções às restrições de cópia. O artista e a agência decidiram explorar juntos as possibilidades econômicas da obra, isto é, o merchandising que vinha sendo feito clandestinamente por fabricantes de camisetas e suvenires em todo o mundo.

*Com informações do jornal Valor Econômico


Jornalista, foi diretora de conteúdo e editora do Cultura e Mercado de 2011 a 2016.

1Comentário

  • Cesar Augusto Vitelli, 21 de março de 2011 @ 11:04 Reply

    Olá,

    Deixo aqui uma sugestão:

    Seria possível um contrato personalizado, onde cada artista determinasse o quanto quer ganhar por sua obra e de que forma, elegendo a seu critério e responsabilidade a maneira de arrecadação, já que o “produto” é dele? Aplicando-se este procedimento não se acabariam todas as polêmicas e críticas às instituições? O mercado não ficaria naturalmente mais flexível?

    Um grande abraço.

    Vitelli

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