Notinhas de pé das primeiras páginas dos principais jornais do Brasil anunciaram a dança das cadeiras do Ministério da Cultura. A saída de Gilberto Gil passou desapercebida e deve dar o tom da pasta nesta segunda metade do segundo mandato de Lula. Acompanhe duas entrevistas concedidas aos jornais O Estado de São Paulo e Folha de São Paulo.

O ESTADO DE SÃO PAULO

”Está chegando a hora de mudar a Lei Rouanet”

Sucessor diz que Gil foi o melhor ministro da Cultura da história e que transição já vinha sendo feita, ‘de baiano para baiano’

Roberta Pennafort

Sucessor de Gilberto Gil no Ministério da Cultura, Juca Ferreira está acostumado a ser chamado de ministro. Já representou Gil muitas vezes, no Brasil e no exterior. Desde a posse do amigo, em 2003, Juca sempre foi considerado o “xerife” da pasta, na condição de seu secretário-executivo. Prestes a ser confirmado no cargo, o que deve ocorrer, segundo ele próprio, quando o presidente Luiz Inácio Lula da Silva voltar de Pequim (para onde viaja, na semana que vem, por conta da abertura das Olimpíadas), Juca disse ontem ao Estado que Gil foi o melhor ministro da Cultura da história, e que a transição já vinha sendo feita lentamente, “de baiano para baiano”.

Quais serão as prioridades de sua gestão?

Primeiro, manter o movimento em direção à estruturação e à execução de políticas públicas de cultura em todas as áreas, no espectro que o ministro abriu. Segundo, a área das artes. A Funarte (Fundação Nacional de Artes) foi a que mais sofreu com a intervenção que o (ex-presidente Fernando) Collor de Mello fez na área cultural. Foi um escândalo. Demoramos muito a compreender a profundidade (do problema). Outra área é a decantada reforma da Lei Rouanet. Está chegando a hora. E a modernização das leis de direitos autorais no Brasil. Na área do patrimônio, estamos às vésperas de criar o Instituto Brasileiro de Museus.

E o Plano Nacional de Cultura?

Estamos discutindo publicamente o plano, que é importantíssimo e vai dar institucionalidade ao ministério. Toda política pública respeitável no Brasil tem um plano nacional. Estamos fazendo audiências públicas em todo o Brasil. Lá para meados do primeiro semestre (de 2009) vamos ter um Plano Nacional de Cultura, como primeira pactuação da estratégia geral de cultura.

Em sua opinião, quais foram os maiores acertos e erros da gestão de Gil?

O ministério, em todos os aspectos que você considerar, é muito melhor do que o que a gente encontrou. Em alguns aspectos a gente avançou mais e em outros, menos. A compreensão de que cultura é uma necessidade tão básica quanto comida, saúde e educação e, portanto, precisa de política pública, foi uma grandeza, uma lucidez. Na área de patrimônio e memória, a gente avançou, na área de museus, de cinema – conseguimos fazer em torno de 400 filmes de longa-metragem nesse período. Agora, erros se cometem; cometemos alguns.

Que avaliação faz sobre a Lei Rouanet como está?

A gente não pode ter a renúncia fiscal como critério principal para financiar a cultura brasileira. É um mecanismo que serve para algumas ações. Tem de ter o Orçamento, os mecanismos de mercado. Queremos introduzir o vale-cultura, semelhante ao vale-refeição, e reestruturar os mecanismos de uso da renúncia. O ministério está preparado para botar na rua a discussão.

Como reage aos críticos da lei?

Não dá para desestruturar um mecanismo que, com todas as distorções que a gente possa considerar, disponibilizou, no ano passado, R$ 1 bilhão. Eu não sou maluco. A substituição seria por mais Orçamento, então dependemos da sensibilidade do governo para mudar o modelo. As Nações Unidas recomendam no mínimo 1% do Orçamento. O que a gente precisa para aplicar o planejamento da política cultural já estabelecida é de R$ 3,7 bilhões, o que dá perto de 3%. A visibilidade que o Gil deu ao ministério ajuda muito. Em todas as áreas você percebe a presença do ministério de forma positiva.

O tempo todo o senhor enfatiza o papel de Gil e o coloca como o melhor ministro da Cultura que já existiu. Por quê?

Não só eu, mas todo mundo. O (Sérgio Paulo) Rouanet, que foi um dos ministros da Cultura, disse, na comemoração do aniversário do ministério, que Gil tinha fundado o ministério. Ele reconhecia que tinha sido dado um salto monstruoso nesta gestão. É inquestionável. Gil foi um gigante.

Como o senhor analisa as críticas que o ministério e o ex-ministro sofreram nestes anos (dirigismo na área cultural, viagens como artista, lentidão na liberação de pareceres para obtenção de patrocínios)?

A questão do dirigismo foi uma bobagem. Acho que a gente deve usar as palavras com precisão. O que nós queríamos era regular a economia da cultura, e não as opiniões. A questão das viagens de Gil… O ministério é ultrabem-sucedido. Ele montou um sistema de gestão moderno, um colegiado de dirigentes. Eu fui designado para representá-lo em sua ausência. Os celulares existem para isso. Funcionamos muito bem, melhor do que os ficaram o tempo inteiro sentados na cadeira. Quanto aos pareceres, o ministério cresceu muito e o número de pareceres passou de 3 mil para quase 30 mil. É difícil manter a eficiência com a mesma estrutura que existia antes.
FOLHA DE SÃO PAULO

“Não se muda uma lei baseado só na vontade”

Novo ministro da Cultura diz que falta de unidade nas propostas retardou envio ao Congresso do projeto de mudanças na Lei Rouanet, o que fará assim que tomar posse; ele cobra mais verbas do governo: “Política pública tem que ter orçamento”

MINISTRO INTERINO da Cultura, no entanto seguro de ser efetivado no cargo pelo presidente Lula neste mês, Juca Ferreira planeja sua primeira ação após a posse: o envio ao Congresso Nacional de projeto de lei que reformula o sistema de financiamento à cultura. O projeto significa a concretização da reforma da Lei Rouanet -prometida desde a campanha de Lula às eleições de 2002-, além de prever o aumento de verbas federais para o Ministério da Cultura (a 2% do orçamento da União) e a instituição de um fundo de recursos sem amarras, que o MinC possa aplicar no fomento à produção artística no país.
Em entrevista ontem, Ferreira falou sobre a dificuldade em efetivar o projeto e apontou a TV como “o fato cultural mais importante do Brasil”.

Silvana Arantes

FOLHA – Qual será a marca de sua gestão?

JUCA FERREIRA – O alargamento do diálogo, a tentativa de pactuar com a área artística e cultural, em torno do projeto do ministério. Assim que eu assumir definitivamente, vou abrir o diálogo. E tratar com muito carinho as artes nas quais a gente menos avançou; fortalecer a Funarte, dar-lhe recursos para que não precise ficar dependendo da sensibilidade das empresas para financiarem as ações. Política pública tem que ter orçamento.

FOLHA – A estratégia de “alargar o diálogo” a que o sr. se refere não traz ao MinC imobilismo, como no caso da prometida e irrealizada mudança na Lei Rouanet?

FERREIRA – Não é verdade. Você não muda uma lei apenas baseado na vontade. Defendemos que imposto devido é dinheiro público. É da norma, da doutrina da nossa Constituição que dinheiro público tem que ter justificativa para ser usado. O que nos dificultou é que não havia uma unidade a respeito das mudanças. Então, se fizéssemos uma mudança de maneira unilateral, não seríamos bem-sucedidos. Se estamos dizendo o tempo inteiro que política pública precisa de orçamento para se realizar, precisamos do compromisso da área econômica do governo para nos dar orçamento capaz de dar atendimento à gama do universo da cultura. Estamos fazendo essa construção há cinco anos. Não é muito tempo. Mas compartilho dessa ansiedade. Gostaria de apressar os processos. Isso faz parte da minha personalidade, mas só podemos apressar até o ponto em que isso não gere mais desconstrução do que resultado positivo.

FOLHA – O último prazo que o sr. divulgou para o envio do projeto ao Congresso é a próxima segunda-feira. Ele será cumprido?

FERREIRA – Com esse tumulto [da sucessão], prefiro começar esse debate público um dia depois de eu assumir o ministério na plenitude.

FOLHA – Quer dizer que o sr. envia o projeto ao Congresso no dia seguinte à posse?

FERREIRA – Sim. Quem sabe se não fará parte do meu discurso de posse? Mas como o discurso de posse não pode ser muito prolongado, eu diria um dia depois.

FOLHA – O projeto prevê que o ministério tenha orçamento maior e mais autonomia para aplicá-lo em políticas públicas. Não é uma brecha para novas acusações de “dirigismo cultural”, já enfrentadas pelo Ministério da Cultura no passado?

FERREIRA – Cada dia se fala menos nisso [dirigismo cultural]. Não seria falta de modéstia eu dizer que fomos exemplares na compreensão de que não cabe ao Estado dirigir a criatividade nem a produção cultural nem fazer censura. Não há um deslize sequer do ministério, por uma simples razão: porque não somos estatistas, não somos dirigistas. O que estamos construindo é uma política de Estado, ou seja, disponibilizar meios e condições para o desenvolvimento da atividade criativa e da fruição cultural para todos os brasileiros.

FOLHA – O projeto da Ancinav (Agência Nacional do Cinema e do Audiovisual), acusado de tentar regular o conteúdo das TVs, não foi um deslize?

FERREIRA – Não foi. A Ancinav é um fantasma que ronda nosso ministério. Em algum momento, vou ter que exorcizá-lo, nem que seja chamando uma mãe-de-santo da Bahia. O que queríamos era regular a atividade econômica. Tenho certeza de que, hoje, muitos dos que foram contra [a Ancinav] concordam que, se nós não regularmos a atividade audiovisual no Brasil, de forma que permita a pluralidade, a concorrência, a associação da cadeia criativa com a cadeia produtiva, que garanta o direito autoral com o direito empresarial, a proteção do mercado brasileiro diante da ação predatória do capital internacional que tenta o monopólio, o que vai acontecer é que as empresas brasileiras vão sucumbir diante da pressão, porque o desenvolvimento tecnológico permite que uma pessoa numa saleta em Nova York projete em todo o Brasil conteúdos audiovisuais.

FOLHA – O episódio da Ancinav demonstrou que é grande o poder de mobilização do setor audiovisual. De que interlocutor o sr. espera mais resistência?

FERREIRA – Quero ouvir todos, dialogar com todos. Sou dos que acham que a TV é o fato cultural mais importante no Brasil e no mundo. É o que tem mais acesso, o que forma mais opinião, interfere mais na sensibilidade, na construção da subjetividade. Agora, a TV está deixando de ser TV. Dentro de poucos anos, com a convergência tecnológica, TV, telefone e computador vão ser a mesma coisa. Vamos lidar com um fenômeno novo, que é a disponibilização de conteúdos, quando quem faz a programação é o espectador em casa. A tendência é a ampliação [da TV] ao nível de onipresença, porque inclusive em deslocamento você terá acesso a esses conteúdos. Então, acho que esse é o diálogo principal. Desde que cheguei aqui, tentei sensibilizar o ministério para o fato de que o cinema é estratégico, mas o cinema tem que se associar à televisão. Ela hoje é o suporte, sob o ponto de vista cultural, mais importante. Esse diálogo TV-telefone-internet já está na rua, independentemente da vontade minha ou de quem quer que seja. Acredito na força dos fatos. Eles nos levarão a buscar um projeto grandioso para o audiovisual brasileiro, inclusive para uma legislação satisfatória, que possibilite ao Brasil ser um grande produtor [de audiovisual].

FOLHA – O sr. disse que era o executor e o ministro Gil, o líder do Ministério da Cultura. Agora terá de trocar de papel?

FERREIRA – Claro. Eu já venho fazendo os dois [papéis]. O que facilita a minha vida é que a transição foi muito suave. A insistência do presidente e dos artistas para que Gil continuasse permitiu que esse processo, que alguns viram como negativo, talvez tenha sido a transição mais natural e orgânica que já tivemos. Eu diria que foi uma transição baiana, uma transição Dorival Caymmi. Eu já faço isso [os dois papéis]. Faço a representação do ministério junto aos ministros do Mercosul e da América Latina. Representando o Brasil, já estive na África, na China.

FOLHA – Qual é a sua proporção nos méritos e nos erros das duas gestões de Gil no Ministério da Cultura

ERREIRA – O ministro Gilberto Gil teve grandeza enorme, primeiro em disponibilizar seu capital político para a construção dessa dimensão para o Brasil que é o desenvolvimento cultural. Ele foi de uma dedicação monstruosa. Houve um fato anedótico aqui, quando um dos deputados que investigam o Executivo mandou pedir a agenda de Gil. Ele achou que havia um erro, porque Gil estava freqüentemente em três Estados por dia. Ele se dedicou intensamente a fazer o que chamou de do-in antropológico, a construir uma rede de interlocução, e assumiu todas as dificuldades nos debates que precisaram ser feitos para que avançássemos. Internamente, ele nos tratava como companheiro de trabalho. Dissolvemos o deslumbramento com a presença de um artista da grandeza dele. A qualquer um que você perguntar [isso, aqui], se sentirá responsável pelos sucessos e pelos fracassos do MinC. Não há setores feudalizados aqui dentro. Construímos uma nova filosofia administrativa e gerencial. Foi Gil que liderou isso.


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