Secretário-executivo Juca Ferreira defende necessidade de auto-sustentabilidade do setor audiovisualPor Israel do Vale
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23/12/2003
O pronunciamento de fim de ano do secretário-executivo do Ministério da Cultura, Juca Ferreira, na última quinta-feira, em São Paulo, projetou para o início de 2004 dois aguardados movimentos em direção às mudanças que o MinC pretende adotar em pontos importantes como as leis federais de incentivo e o novos rumos que serão dados à política audiovisual, a partir da efetivação da mudança da Ancine para Ancinav.
As informações integram o discurso do “vice-ministro” da cultura, feito durante a cerimônia oficial de balanço do ano conduzida com a presença de todo o alto clero do MinC na Cinemateca Brasileira, sede da representação paulista do ministério.
Segundo Ferreira, as alterações estudadas nas leis federais de incentivo devem ser tornadas públicas ainda em janeiro e incorporariam parte das 6 mil contribuições recolhidas pelo seminário “Cultura para Todos”, que o MinC realizou em 20 capitais do país.
Os novos critérios pretendem estimular a descentralização dos investimentos, em direção a uma maior regionalização –o que, segundo apurou Cultura e Mercado, deve se traduzir na criação de patamares diferenciados de contrapartida por região do país. A previsão é de que as alterações sejam anunciadas ainda na primeira quinzena do mês.
Outro ponto que tem gerado grande expectativa no setor é a ampliação do raio de ação da Agência Nacional de Cinema para o audiovisual. Para Ferreira, o novo contexto foi construído para permitir a auto-sustentabilidade do setor, de modo que ele seja “independente cada vez mais dos recursos públicos que são feitos a fundo perdido”.
Leia abaixo a íntegra do discurso de Juca Ferreira.
Balanço de 2003 feito pelo secretário-executivo do MinC, Juca Ferreira.
Queria começar dizendo que em nosso ponto de partida a compreensão inicial que nós tivemos é de que teríamos que produzir um deslocamento de importância da política pública de cultura e do conjunto das políticas públicas do Governo Federal.
Ou seja, do nosso ponto de vista é inadmissível um ministério sem importância como nós encontramos e uma política sem visibilidade, um ministério que tinha o menor orçamento da república, apenas 0,2% do total, e sentimos a necessidade de começar exatamente propondo uma outra escala ao ministério, que desse condições ao estado de intervir numa das políticas mais importantes para a concretização da missão do atual governo.
Para nós, o governo Lula não pode representar apenas a retomada do crescimento econômico e a distribuição da renda produzida. Evidente que isso é a base do projeto, mas é necessário também construir um outro projeto de nação e dentro desse projeto de nação a política de cultura é um elemento central, capaz de dar significado ao conjunto de todas as políticas.
É nesse sentido que a gente fala: é preciso fazer o deslocamento de importância do ministério e do que a gente representa enquanto política pública de cultura. Dentro desse sentido, o primeiro trabalho nosso foi ampliar o conceito de cultura em que o ministério trabalhava.
Para nós, é muito mais apropriado um conceito próximo da antropologia, que considera o conjunto da produção simbólica do nosso povo como parte importante do conjunto dessa produção cultural e não apenas as linguagens artísticas.
Outro aspecto importante também é que a gente considera que a cultura, além de construção de identidade, da própria identidade nacional, de identidades regionais e de identidades grupais dentro da nossa sociedade, a cultura é um direito de cidadania. É um direito de todos, tanto do acesso quanto da sua possibilidade de expressão.
E a cultura também deve ser tratada pelo Estado como economia, como possibilidade de construção de emprego e renda e como ampliação das oportunidades de crescimento do país.
Um país que tem a música que tem, que tem a possibilidade de desenvolvimento da produção audiovisual como nós temos, não pode ignorar o potencial econômico que essa produção cultural tem. Então esses três aspectos pra nós foram vitais para repensar toda política de cultura para o Governo Federal, exatamente qual seria o significado central das modificações que nós teríamos que fazer.
Nós trabalhamos no inicio do ano com três metas que nós precisávamos atingir: primeiro, iniciar o projeto de formulação de um novo projeto de intervenção cultural do Estado. Ou seja, precisamos construir uma política pública de cultura que dê conta da diversidade e da importância da produção cultural do país.
A gente não pretende construir essa política pública apenas nos gabinetes do ministério. Nós queremos fazer uma grande mobilização, com produtores culturais, sociedade organizada, a nossa academia, no sentido de produzir uma política pública que dê conta dessa complexidade, dessa riqueza, dessa diversidade.
O segundo aspecto importante é que a gente queria que o ministério já no primeiro ano começasse a adquirir uma capacidade de intervenção que nós não tínhamos. Sentimos a necessidade de eliminar as duplicidades, ou seja, dois ou mais órgãos do ministério fazendo a mesma coisa, isso é gasto de energia, de recursos desnecessários.
Precisávamos criar um setor de planejamento. Só pra vocês terem uma idéia, o Ministério da Cultura foi o único ministério que na época do censo não fez um convênio com o IBGE para saber informações da sua área de atuação.
Isso é muito emblemático da dificuldade que nós encontramos no sentido de tentarmos informações do mundo cultural que nos possibilitassem imediatamente formular as políticas e as metas que nós queremos atingir. Então, garantir a eficácia e eficiência no ministério é fundamental para que a gente possa implementar as definições que nós vivenciaremos e que já vivenciamos de alguma maneira nesse primeiro ano.
O terceiro aspecto são os recursos. Foi por aí inclusive que nós começamos. Nós realizamos o seminário “Cultura para Todos” em praticamente todo o país, em todas as regiões do país, com produtores culturais, com especialistas, discutindo os mecanismos de financiamento da cultura brasileira.
E nós tivemos um retorno desse esforço, desse diálogo, para mais de 6 mil propostas no sentido de ampliar o financiamento da cultura brasileira, principalmente no sentido de modificação das leis de financiamento da cultura, através da renúncia fiscal e através de outros mecanismos já existentes. Mais de seis mil propostas que nós estamos processando.
Nós tínhamos prometido que no final desse ano nós iríamos apresentar, mas como nós estamos processando dentro de uma visão da necessidade de aproveitar essa contribuição que foi fruto dessa mobilização que nós realizamos, certamente em torno do início, para o ano, nós estaremos apresentando qual a proposta do ministério para a reforma da Lei Rouanet e da Lei do Audiovisual. Mas o material está muito bom e nós vamos modificar o sentido. Certamente o ministro tratará um pouco disso e vou evitar aprofundar quais são as características dessas mudanças.
Mas de qualquer jeito, num sentido mais geral, é no sentido de possibilitar que todas as regiões do Brasil tenham acesso a esses recursos incentivados no sentido de diversificar, possibilitando a todas as áreas da cultura –como por exemplo cultura popular–que tenha acesso a esses recursos, possibilitando que não só os artistas consagrados, mas os artistas que investem em linguagem, os artistas ainda não conhecidos, os grupos culturais que trabalham com segmentos da cultura sem muita repercussão de mídia, também possam ter acesso a esses recursos e possam se beneficiar do fomento do Estado pra que a gente possa de fato ter um movimento cultural democrático.
Na nossa compreensão, o financiamento à cultura tem que ser visto através de um conjunto de possibilidades. O primeiro e mais importante é orçamentário. Não é mais importante porque deva ser maior que os outros, mas é mais importante no sentido de que se o Estado vai convocar outros segmentos da sociedade no sentido de dizer que a cultura é importante e merece financiamento, não há melhor maneira de afirmar isso a não ser através do exemplo, destinando recursos orçamentários para que a política cultural do Estado seja implementada.
Por exemplo, o patrimônio cultural brasileiro precisa de um investimento grande. Nossos museus, as cidades históricas como Ouro Preto, como Olinda. Esse patrimônio está se perdendo, boa parte dele está ameaçada.Nós precisamos trabalhar no sentido exatamente de construir uma ação e uma escala que dê satisfatoriamente a possibilidade de nós contribuirmos para essa preservação.
O segundo aspecto dessa oferta é sobre exatamente os mecanismos de incentivo. Nós mantivemos e lutamos para que a reforma tributária não atrapalhasse essa compreensão. Nós mantivemos o conceito de que o mecanismo da renúncia é positivo. Por quê? Porque ela agrega, ala atrai, ela possibilita que o empresariado brasileiro contribua para o desenvolvimento cultural do país.
Então essa agregação do empresariado não pode ser vista apenas como uma contribuição econômica, apenas sob esse aspecto monetário, mas como atitude, como a responsabilidade cultural por parte das nossas elites. E o mecanismo da renúncia, no momento em que o estado se associa a empresas para financiar projetos e processos culturais, ele é exemplar no sentido de construção dessa responsabilidade cultural.
Então nós lutamos para que a reforma tributária não afetasse as leis que existem em 16 estados do Brasil e possibilitam essa coordenação e nós estamos trabalhando no sentido de que, utilizando a experiência que nós recebemos da Lei Rouanet, aprimorar todos esses mecanismos que possibilitem que a gente avance no sentido de democratizar, de nacionalizar esse acesso e de disponibilizar esses recursos dentro de uma visão de politica pública de cultura.
Ou seja, a mais disponível possível, a mais acessível possível, a partir de critérios transparentes, visíveis e públicos. E de preferência discutido com a sociedade, como nós já fizemos através desse grande seminário que foi organizado em 20 capitais do país, em todas as regiões e em algumas cidades do interior.
Essa perspectiva do diálogo é uma característica do governo Lula, é uma metodologia que está sendo adotada. Hoje mesmo, na apresentação da prestação de contas do presidente, ele afirmou, como uma das grandes qualidades do momento que nós estamos vivendo, uma nova postura do Estado diante da sociedade. Construir as políticas públicas através do diálogo com a sociedade, construindo acordos, construindo possibilidades de consenso pra que a gente possa ir avançando no sentido de afirmar um país para todos.
E no plano da cultura nós temos realizado isso e pretendemos desenvolver nesse ano que virá várias possibilidades, não só para construir a nova política cultural, mas toda vez que a gente estiver diante de um problema que seja estratégico para o mundo cultural brasileiro, nós vamos criar mecanismos de consulta. Além do mais, vamos revigorar os conselhos e todos os mecanismos que possibilitam a participação dos produtores culturais e da sociedade na execução dessas políticas. Queria chamar atenção também para o fato de que essa consulta e esse diálogo nós temos exercitado de uma agenda intensa que o ministro tem desenvolvido através de todo o Brasil, discutindo com a comunidade, discutindo com o segmento, com os produtores culturais, e afirmando nesse diálogo um novo método de gestão pública, uma nova maneira de se relacionar com a sociedade.
Nós tivemos nos últimos dias duas experiências extremamente… Tivemos várias, mas duas muito significativas. Uma foi na Baixada Fluminense: pela primeira vez um ministro da Cultura foi à Baixada Fluminense. E foi um momento emocionante, porque todos que falaram disseram e repetiram, quase que um refrão dizendo “olha, nunca nos sentimos tão respeitados pelo poder como com o fato de um ministro ter aceitado participar de uma convocação da comunidade para vir discutir as políticas da sua área, do seu ministério”.
Então essa experiência nós exercitamos na Chapada Diamantina e estamos fazendo e pretendemos intensificar para o próximo ano, porque essa é uma maneira de valorizar os produtores culturais locais, valorizar os gestores locais, o poder local e criar possibilidades de sinergias muito mais do que se nós ficarmos em Brasília esperando que as demandas cheguem e analisando essas demandas.
Queria dizer também que faz parte dos nossos objetivos –e nós conseguimos de certa maneira, ainda de uma forma muito tímida, porque os recursos a que tivemos acesso esse ano, como eu disse, foram de 0,2% do total do orçamento Governo Federal, tivemos um contingenciamento oficial em torno de 51% e as dificuldades econômicas desse ano. Foi um ano muito especial, um ano que se nós quisermos assim, de uma forma sintética, caracterizar, lembra um pouco aquela canção dos Titãs “Tudo ao Mesmo Tempo Aqui e Agora” [N.R.: o nome original não inclui o termo “aqui”].
Ou seja, a necessidade de fazer superávit, a necessidade de investir no social, a necessidade de modernizar o Estado, ou seja, as demandas são e foram muito maiores do que as possibilidades. E nós somos absolutamente solidários com a restrição de gasto público para construir credibilidade para o Brasil, para controlar a inflação.
Porque se nós discutimos a possibilidade de aumento é exatamente porque exatamente nós acreditamos que o Brasil já está vivendo num momento de crescimento, da possibilidade doe crescimento econômico, e nós não podemos restringir o crescimento e esse novo ciclo de desenvolvimento do Brasil apenas à retomada do crescimento e da distribuição de renda. A política pública de cultura é estratégica para caracterizar este momento e nós pretendemos ser, dentro do governo, um agente de construção dessa política.
Para finalizar eu queria dizer também e ressaltar a ação internacional do ministério, principalmente utilizando a figura e o prestígio do ministro Gil, não só naquele momento que praticamente todos os brasileiros assistiram, em que o ministro participou de um ato público nas Nações Unidas, no momento em que as Nações Unidas estavam enfraquecidas, aceitando o convite do secretário-geral da organização.
Ali não só foi um momento de afirmação cultural do Brasil, mas um momento de solidariedade do Brasil, com a possibilidade de construção de relações internacionais pacíficas, solidárias, respeitosas, que não incorporam de maneira nenhuma o que é uma marca do momento, o unilateralismo e o belicismo com que nós estamos convivendo.
A construção dessas relações internacionais passou pela África. Então o ministro foi duas vezes à África, visitou países como por exemplo a África do Sul. A reunião internacional da Unesco foi muito importante, onde se afirmou o conceito da diversidade cultural como um dos conceitos prioritários internacionais neste momento, a visita aos países vizinhos…
Então nós estamos procurando construir, através do Ministério da Cultura, uma ampliação das relações do Brasil com outros povos que não fique apenas na geopolítica e nas relações comerciais, mas que os assuntos culturais contribuam para o aprofundamento dessas relações e contribuam para uma nova inserção do Brasil, de uma maneira muito mais saudável do que a que já é.
Então nesse sentido eu queria também chamar atenção para a primeira vitória, no sentido de que nós estamos às vésperas de apresentar ao país uma das políticas setoriais das mais importantes do ministério, que é a política do audiovisual.
A vinda da Ancine, transferida para o ministério, a transformação da Ancine na Ancinav, ou seja, a agência deixa de cuidar do cinema e passa a cuidar de toda a produção audiovisual brasileira, criando possibilidades de a gente superar em muito as dicotomias desnecessárias e injustificadas na relação do cinema com a televisão e criando a possibilidade de desenvolvimento de uma economia sólida do Brasil nessa área.
Nós acreditamos que um país, nas condições das relações internacionais, que não tenha capacidade de garantir a sua produção audiovisual, é um país que está ameaçado a sucumbir diante da globalização. Garantir uma autonomia do audiovisual no Brasil é estratégico para a construção do Brasil que a gente quer, privilegiando os nossos produtores, privilegiando as empresas nacionais e criando condições econômicas para o desenvolvimento, gerando uma auto-sustentabilidade na área que, segundo o nosso ponto de vista deve, tendencialmente, ser independente cada vez mais dos recursos públicos que são feitos a fundo perdido e que não dão conta de dar a sustentação necessária para a profundidade e amplitude do que essa produção quer fazer.
Então, nesse sentido, uma das metas mais importantes que nós definimos para o próximo ano é a construção de um Sistema Nacional de Cultura, ou seja, o Ministério da Cultura quer se articular com todas as secretarias estaduais de cultura, com as secretarias municipais, com os produtores das diversas regiões do Brasil, para que a gente não só possa construir uma política pública de cultura que dê conta da grandeza cultural do Brasil, mas que a gente possa gerir e implantar essa política conjuntamente associando nossas possibilidades e gerando um potencial muito maior de intervenção positiva do Estado na área.
Muito obrigado.
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