40 países serão representados no Rio na próxima semana para debater como os direitos de propriedade intelectual impedem o desenvolvimento e o acesso à cultura dos países pobres
Numa era onde a informação e o conhecimento compõem o principal ativo econômico, a Propriedade Intelectual (PI) deveria ser um instrumento para promover o desenvolvimento dos países menos “favorecidos” e diminuir a desigualdade social entre eles. Mas na realidade, a PI vem sendo utilizada pelos países mais ricos e as grandes corporações com finalidades opostas, privatizando o conhecimento coletivo e mantendo os países em desenvolvimento à margem da prosperidade e do acesso à informação. Um jogo de interesses internacional, onde impera a lei do mais forte e a cultura desempenha um papel fundamental.
Mas afinal, o que se entende como Propriedade Intelectual? Segundo a OMPI (Organização Mundial da Propriedade Intelectual), o termo se refere às criações da mente e é dividido em duas categorias: propriedade industrial e direito autoral. É este último que abarca as obras literárias e artísticas, os programas de computador, os domínios na Internet e a cultura imaterial.
Entre os dias 22 e 25 deste mês, durante o Fórum Cultural Mundial, será realizada no Rio de Janeiro a 9a reunião da Rede Internacional de Política Cultural (RIPC), pela qual ministros da Cultura de 68 países debatem questões ligadas às políticas culturais e desenvolvem estratégias informais para promover a diversidade cultural. Obviamente, os EUA não fazem parte do grupo.
A cada ano, o ministro da Cultura de um país membro assume a presidência temporária da Rede. Em 2006, é a vez de Gilberto Gil, que pôde propor o tema para a próxima reunião: “Acesso à cultura, direitos de propriedade intelectual, novas tecnologias – Desafios para a diversidade cultural”.
Como é de praxe, o país anfitrião envia um questionário aos demais a respeito do tema proposto e o Brasil preparou uma série de questões para estudar como a PI interfere na utilização de novas tecnologias, no acesso à cultura e na promoção da diversidade cultural. 27 membros responderam, a maior taxa de retorno já atingida pela Rede.
O questionário aborda diversos pontos para entender como esses países lidam com a questão: a existência de formas alternativas de licenciamento (como software livre e Creative Commons); se foram firmados tratados internacionais de livre comércio; o método de distribuição dos direitos autorais entre os seus proprietários; e a legislação referente ao dominio público. O pagamento de royalties ao exterior também é verificado, assim como a eventual utilização do fair dealing, um conceito da legislação americana pelo qual trabalhos protegidos por direitos autorais podem ser legalmente utilizados sem pagamento de taxas ou permissão do proprietário dos direitos, mas apenas em cirscunstâncias específicas, como críticas, divulgação de notícias, ensino e pesquisa.
O jogo pesado da OMC e da OMPI – O tema proposto por Gil encontrou resistência entre a maioria dos membros da RPIC, que preferia abordar questões menos espinhosas, como as indústrias culturais. Uma posição esperada, visto que a maioria dos ministros integrantes da Rede representam países desenvolvidos, justamente os menos afetados pelas legislações e acordos internacionais envolvendo a PI. Alguns defenderam que o assunto já é tratado pela Organização Mundial da Propriedade Intelectual.
A OMPI foi criada em 1967 por advogados que tinham entre seus clientes empresas interessadas em proteger os direitos de PI. Oito anos depois, passou a ser uma agência especializada da Organização das Nações Unidas (ONU), tendo como objetivo (oficialmente) desenvolver um sistema internacional de propriedade intelectual equilibrado e acessível, que defenda o interesse público e estimule o desenvolvimento econômico. Composto por 183 países membros, o órgão também cuida dos tratados multilaterais que envolvem aspectos legais e administrativos da PI.
Em 1995, foi criada a Organização Mundial do Comércio (OMC), que vinculou a propriedade intelectual ao comércio, numa jogada dos países em desenvolvimento, que são minoria dentro da OMPI. O advogado Pedro de Paranaguá Moniz, do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da Escola de Direito da Fundação Getúlio Vargas-RJ, explica que todos os países que aderem à OMC assinam também o Tratado sobre Direitos de Propriedade Intelectual Relacionados ao Comércio (Trips, na sigla em inglês), que prevê os patamares mínimos de proteçao à PI e as sanções comerciais pelo descumprimento das regras. Tratados bilaterais firmados entre os EUA e outro país também funcionam como pressão.
Embora a OMC seja o alvo preferencial dos movimentos anti-globalização, o jogo pesado empreendido pelos países desenvolvidos e as grandes corporações – normalmente agindo em bloco e com reuniões a portas fechadas – acontece em igual ou maior medida na menos visada OMPI. Relatos nos bastidores afirmam que países membros seriam comprados com ofertas como cargos no alto escalão, viagens de luxo e cooperação técnica.
Revisão na legislação brasileira de direitos autorais – A velocidade de desenvolvimento e proliferação das tecnologias vem gerando novos comportamentos nos consumidores e na maneira como eles se relacionam com os produtos culturais. O desafio para a legislação da propriedade intelectual é se adaptar a essa nova ordem. O exemplo mais acessível é o da indústria da música, cujo funcionamento nos últimos anos foi drasticamente afetado pelo surgimento do MP3 e das redes de compartilhamento desses arquivos. Estima-se que cerca de 2,5 milhões de brasileiros troquem música e vídeos pela internet.
Mas no Brasil não existe nenhuma associação de defesa dos interesses dos usuários. Pela lei atual, quem baixa músicas para ouvir no computador ou Ipod, por exemplo, é visto como praticante de pirataria, podendo ser punido como quem faz distribuição comercial ilegal dessas mesmas músicas.
Em outubro, a Federação Internacional da Indústria Fonográfica (IFPI) realizou um encontro no Rio de Janeiro. Três professores da CTS da FGV Direito Rio – representantes no Brasil da licença Creative Commons, que flexibiliza os direitos autorais – foram impedidos de participar, sob a alegação de que a sala estava lotada, informação que depois se revelou não verdadeira. A IFPI anunciou na ocasião que irá processar 20 brasileiros que possuem mais de 3 mil arquivos de música compartilhados na internet e seu presidente, John Kennedy, afirmou: “Não vejo diferença entre uma pessoa que troca arquivos gratuitamente pela internet e outra que entra numa loja e rouba um CD”.
Joaquim Falcão, diretor da Escola de Direito, aponta para um dos pontos essenciais da questão: “A ilegalidade [na prática de baixar músicas] não é individual, mas coletiva. Não depende da vontade das pessoas, mas da necessidade. O problema é que a ação judicial é individualizada”. Ele complementou: “Até que ponto estamos fazendo bom uso dos custos públicos mobilizando polícia e Justiça para proteger lucros privados? É melhor contratar 50 mil fiscais para implementar a lei atual ou mudá-la?”.
O Centro lançou uma petição online que pede a alteração do artigo 46 da Lei e que pode ser assinada no endereço s://www.petitiononline.com/netlivre/
[s://www.petitiononline.com/netlivre/]
Marcos Souza, coordenador-geral de Direito Autoral Substituto do Ministério da Cultura (MinC), explica que Gilberto Gil teve dois objetivos ao propor o tema da PI para a reunião anual da RPIC: inserir na área cultural uma discussão normalmente restrita ao campo comercial, e chamar a atenção dos países ricos para o modo como essa questão afeta negativamente o desenvolvimentos dos países mais pobres.
“Não somos contra o direito autoral e a propriedade intelectual, mas queremos que ambos sejam aplicados de modo razoável, de acordo com o nosso nível de desenvolvimento”, diz ele.
O que o MinC vem buscando é um equilíbrio entre os interesses dos criadores/artistas, dos “investidores” (como editores e produtores) e da sociedade, que deve ter garantido o acesso à cultura, conforme previsto na Declaração Universal dos Direitos Humanos.
“Não há comprovação do vínculo entre propriedade intelectual e desenvolvimento”, Marcos afirma. De fato, estudos apontam que os países mais ricos teriam no desrespeito à PI uma de suas ferramentas de desenvolvimento. “A quem interessa esse sistema? Com certeza não ao Brasil”. Para ele, as leis de direitos autorais nos países desenvolvidos são bem mais flexíveis que a nossa, que ele considera uma das mais rígidas do mundo (para o usuário).
Posição de Gil contraria interesses – O ministro Gilberto Gil tem levantado a questão da propriedade intelectual como nunca ocorreu antes no Ministério da Cultura. No primeiro dia da Assembléia Geral da OMPI, ocorrida em Genebra em setembro passado, seu discurso teve momentos incisivos: “Não há evidências empiricamente comprovadas que permitam concluir sobre a necessidade de ampliar os padrões de proteção hoje existentes. Daí decorrem nossas preocupações com os processos de negociação normativa em curso nesta Organização, como os eventuais tratados sobre organismos de radiodifusão e direito substantivo de patentes. Ignorar a complexidade do tema, desconhecer a realidade dos países, subestimar dinâmicas sociais e impor interesses corporativos privados são atalhos certos para o fracasso”.
Gil também fez reforços na área do MinC que trabalha com Direitos Autorais, que desde o ano passado conta com uma equipe de 10 pessoas. Apesar do avanço, ainda é um número modesto, até mesmo em comparação com países como El Salvador e Paraguai, que têm equipes maiores.
O posicionamento ativo do ministro na questão da Propriedade Intelectual vem desagradando o lobby das grandes corporações, a quem não interessa mudar o estado atual das coisas. A MPAA (Motion Picture Association of America), por exemplo, vem observando com atenção as movimentações do MinC nessa questão, conforme apurado por Cultura e Mercado. A associação defende os interesses do cinema americano e é um dos mais fortes instrumentos dos EUA no domínio do mercado audiovisual mundial.
Já no relatório anual do Departamento de Comércio dos EUA, publicado em abril, o Brasil aparece com alerta máximo entre os países que devem ser observados por desrespeitarem as leis de Propriedade Intelectual.
No momento em que se discute a permanência de Gil no cargo, e a movimentação sucessória começa a ser esboçada nos bastidores, o tema da PI pode ser decisório.
Como o próprio ministro afirmou em outra passagem de seu discurso na Assembléia da OMPI, “nunca esqueçamos a observação de Thomas Jefferson, para quem não existiria nada menos propício à apropriação exclusiva do que as idéias, cujo compartilhamento não gera necessariamente prejuízo a ninguém”.
André Fonseca
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