Dentre as principais proposições que tiveram eco de adesão entre as nações que integraram recentemente o encontro do G20, poderíamos destacar alguns prenúncios de atualização na macroeconomia mundial: dias contados para a blindagem dos paraísos fiscais, combate internacional ao protecionismo econômico, reformas das instituições financeiras e do sistema regulatório global, entre outros sinais de novos tempos. De certo modo, em caminho análogo, essas medidas de atualização se afinam com as demandas centrais que evocam mudanças prementes na Lei Rouanet (lei 8.313/91), no que se refere à deturpação de propósitos e mesmo a uma estagnação natural, e que hoje permeiam um amplo debate nacional em torno da produção cultural brasileira.
Fazendo uma analogia entre as novas diretrizes internacionais e as atualizações que urgem na lei, poderíamos associar aos pontos que culminam alterações: o paraíso fiscal das empresas patrocinadoras, o protecionismo ao audiovisual, desequilíbrios regionais nos numerários da renúncia fiscal, ineficiência regulatória em seus acessos, dentre tantas distorções que também necessitam assumir formas renovadas advindas dos novos ventos que sopram pelo mundo afora.
O que parece desproporcional é que, se existe um consenso quanto à necessidade de atualização e de adequação da lei aos novos cenários, por que a proposta da nova lei parece complicar tanto o que poderia ser mais simples, democrático e eficiente? Se o Ministério da Cultura (MinC) se dispusesse a reformular o que as evidências emanam após anos de ouvidorias, fóruns e experimentações, o que a realidade comprovou em inadequação e desproporção – sem querer reinventar a roda, mas sim aprimorar e amadurecer a experiência –, seria bem mais prudente e sensato. Os gritos ecoam de vários cantos do Brasil, tanto da parte de quem regula quanto da parte de quem aplica a lei, além daqueles que dela se beneficiam e, sobretudo, daqueles que não conseguem usufruí-la.
Sabemos que os usos, remendos e vícios, reflexos da dificuldade de monitoramento e de gestão eficaz da lei, deformaram seus mecanismos conceituais originais e geraram desequilíbrios e distorções em sua aplicabilidade, abrindo grandes contradições em seus verdadeiros propósitos. Hoje, como olho do furacão na cultura no país, esse quadro se tornou explícito e consensual, desembocando em uma confluência de reivindicações ávidas por equilibrar demandas díspares.
Em suma, a hora é essa. É hora da maturidade, de ampliar responsabilidades, compromissos e resultados. Foram quase dezoito anos que inegavelmente mudaram em boa parte o cenário da cultura brasileira, seja na qualidade, seja na diversidade ou na quantidade de produção e de manifestações, sem deixar de mencionar o aquecimento da profissionalização, da institucionalização dos setores e da ativação das diversas cadeias produtivas e dos mercados.
Até aqui há concordância: o MinC assume o compromisso tácito de protagonizar uma vontade majoritária de mudança e lança um projeto de uma nova lei de fomento à cultura. Ou melhor, parcialmente, pois surge a pergunta: nova lei para quê?
Não se faz necessário formular outra lei, até porque o novo projeto absorve em essência a Lei Rouanet, reafirmando o que Sérgio Paulo Rouanet desenhou com uma arquitetura fundamentada em sólidos alicerces, alterando apenas a disposição dos princípios.
A nova lei, em tese, muda a ordem dos fatores e pode dirigir os resultados para a mesma soma, com o agravante da possível perda de continuidade através de seu prazo de validade de cinco anos, quase o tempo de um mandato partidário de governo. Como em uma gangorra, desloca-se o atual poder desproporcional das empresas para o Estado, mantendo em desvantagem a finalidade mor: o incentivo à cultura e às artes. As empresas, por sua vez, serão reguladas em suas ações de comunicação de marca e dirigidas, em sua autonomia liberal de investimento, pelo estado, saindo de “oitenta para oito”. Ora, justamente em uma época cuja globalização da crise econômica tende a reduzir os ritmos de patrocínios corporativos por si só, vêm as novas regras contribuir para minorar radicalmente os fluxos dos investimentos empresariais via renúncia fiscal. É alarmante perceber que os desencadeamentos dessas novas propostas podem causar uma desaceleração potencializada na produção cultural brasileira.
A Lei Rouanet é reconhecida pelo meio jurídico nacional e internacional como um modelo de financiamento público bem formulado, de exímia elaboração ideária e textual, bem como de distribuição equânime de proporções de benefícios em sua estrutura conceitual, no que tange ao equilíbrio dos interesses públicos e da participação privada em sua essência programática. Na verdade, o problema não está na Lei Rouanet, que por sua vez, obviamente, necessita ser revalidada junto às necessidades contemporâneas, mas muito mais nas distorções de seu lado operacional e em uma necessidade de modernização.
Movidos pela urgência e pela importância que a matéria evoca para os futuros caminhos da arte, da cultura e da economia criativa do Brasil, inúmeros encontros e manifestações estão ocorrendo simultaneamente em diversos segmentos e cidades do país. Compartilhando da mesma preocupação, no dia 3 de abril, alguns professores das pós-graduações dos cursos de Gestão e Produção reuniram-se por meio da Associação Brasileira de Gestão Cultural (ABGC) para uma análise coletiva sobre a proposta da nova lei de fomento à cultura. O professor José Carlos Barboza, especialista em modelos de financiamento e legislação de incentivo à cultura, presidiu a reunião e os trabalhos, em que foram citados e debatidos, detalhadamente, diversos artigos e parágrafos da nova lei, ainda anônima (apenas por curiosidade, que nome teria?), mediante uma análise comparativa com a emancipada Rouanet. As considerações do encontro promovido pela ABGC, seguindo um passo a passo dos artigos da lei através de uma análise comparativa detalhada, serão condensadas em um documento a ser entregue ao ministro da Cultura, Juca Ferreira, em caráter muito mais colaborativo do que meramente crítico. O intuito da reunião foi prestar mais uma contribuição à ampliação do debate e de algum modo elucidar a reflexão com visões multidisciplinares suscitadas por professores e profissionais de diversas áreas afins, que militam no ensino e na pesquisa acadêmica, entre juristas, administradores, contabilistas, sociólogos, comunicólogos, economistas, produtores, entre outros.
Uma síntese consensual do encontro seria a percepção de que a chave detonadora da viabilidade de sucesso das mudanças seja o aprimoramento da Lei Rouanet, sem a necessidade de criação de outra lei. Em linhas gerais, reitero o questionamento da necessidade real de se criar uma nova lei, com toda a burocracia que isso evoca, as questões autorais que remete, além da insegurança que vem provocando no meio artístico-cultural por suas possíveis consequências e tamanho experimentalismo.
Essa lei é claramente inspirada na Lei Rouanet; é similar, com outra roupagem, e deveria resguardar o mérito autoral de sua fonte. A Lei Rouanet só necessita de uma nova estruturação e de uma reformulação, elaborada por coparticipação de um conselho especializado e representativo dos respectivos setores da sociedade civil, respaldada por instrumentos jurídicos formais, plausíveis e viáveis, como os vários decretos que já apararam tantas arestas anteriores.
Aprimorar significa tornar algo melhor, ir além da mera reinvenção. Atualizar para aperfeiçoar e evoluir.
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