“Se é certo que o furor expansionista dos bandeirantes conquistou-nos verdadeiros luxos de terras, é também verdade que no desadoro de expansão comprometeu-se a nossa saúde econômica, e quase que se comprometia a nossa unidade política. Felizmente aos impulsos de dispersão e aos perigos deles decorrentes de diferenciação e separatismo, opuseram-se desde o início da nossa vida colonial, forças quase que da mesma agressividade, neutralizando-os ou pelo menos amolecendo-os”. (Gilberto Freire – Casa Grande e Senzala).
Um dos maiores crimes que se cometeu contra a cultura brasileira foi jogar um sentimento extraordinariamente unificador e ecumênico contido na aura da arte brasileira nos porões separatistas dos departamentos de marketing durante estes anos de Lei Rouanet, sob uma distorcida visão de multiculturalidade ou diversidade, o que promoveu a quase destruição do sentido de unidade cultural do Brasil, uma inesgotável fonte de emoção, um país eternizado como expressão humana através de sua arte.
A dimensão técnica no ambiente de qualidade de gestão ganhou contornos dramáticos, desproporcionais aos valores simbólicos fundamentais da cultura. Desta forma, tudo passa a ser visto dentro por um parâmetro de estratégia individual de imagem institucional. Uma corrida armamentista aparelhada de rótulos técnicos de mecanismo meramente publicitário que visa somente dividendos comerciais e produz nessa espécie de globo da morte uma aventura desvairada, uma “roleta paulista”, um canibalismo urbano industrial que, praticamente centrifuga o sentido unificador e geopolítico contido naturalmente na arte do Brasil, arte essa, costurada em cinco séculos de interfecundação de brasileiros de múltiplas regiões, etnias e sotaques.
Tudo é permitido no ambiente de mutilações artístico-humanas. O primitivismo intelectual ganha dimensão assustadora, a agressividade comercial é transferida para os debates sobre a cultura brasileira. E aí, já não se sabe quem contaminou quem, só se sente que, falar sobre a arte brasileira e suas profundas questões sociais dentro desta arena de leões famintos passa a ser sinônimo de populismo e de demagogia. Uma desconexão, até então, desconhecida do mundo artístico brasileiro.
A idéia de financiamento da cultura, além de faminta, transformou a imagem predadora de garimpos em símbolo dessa caça ao tesouro nacional. As técnicas, as teorias de progresso pintadas nesse ambiente operam contra a arte brasileira e são cenários imperativos nesse conflito armado.
O destino de coincidências combinadas laboratorialmente parece ter provocado, em seus mais obedientes agentes, verdadeiras repulsas a qualquer coisa que pareça humano, que seja comandado pelo espírito de coletividade de país, de nação de sentimento unificador.
A mera fixação de dados quer impor a não brasilidade geográfica, uma trajetória para a arte pré-determinada sem emotividade, sem a aura que comanda o fio invisível do “Espírito do Tempo”, tão característica na produção artística provinda do nosso cosmos cultural.
Essa reconfiguração travestida do discurso da realidade universalista, para a arte brasileira não é outra coisa senão uma prolixidade carregada de cacoetes neo-conservadores. Nada disso tem importância estratégica para o desenvolvimento da arte nacional, muito menos o que cotidianamente é martelado como real tem fundamentos mínimos de políticas de fomento. Isso nada mais é do que uma “roda viva” típica do mercado de pregões.
Prolongar este ambiente de manipulações, de fanatismo empresarial é estimular a hostilidade a princípios básicos para o desenvolvimento saudável da arte de um país.
A indiscreta segregação do artista vinda dos departamentos de marketing, travestida de realidade consensual, é só mais uma das muitas estratégias de expansão dos negócios e, logicamente um grande negócio. Para a arte brasileira? Não! Para o artista brasileiro? Menos ainda. Esse ritmo de “lentidão trágica” imposto pelo observatório empresarial trabalha contra o humano, contra a emoção, contra as contribuições pessoais, contra a grandiosidade da obra artística, por isso eclodiu a guerra entre quem faz arte e quem a usurpa, e nada mais. Não há planície nesse campo de batalha. A aparente “infertilidade ambiental” é provocada pelo bombardeio cirúrgico contra a arte nacional sob o comando dos departamentos de motos perpétuos, destruindo, matando toda a produção contemporânea de arte neste país.
Nesse espaço em que o criador é sufocado, odeia-se o que não é pré-determinado, pré-conceituado, pré-julgado e aprovado pelo “público alvo”, pela burguesia teleguiada, pelo consumismo milionário.
Não serão os tais “pequenos ajustes” que alguns insistem em dizer estrategicamente na hora em que chaleira canta denunciando a fervura sem qualquer aprofundamento nos ínfimos parênteses dentro das regras da Lei Rouanet que mudarão, seja lá o que for, na “tenda dos milagres” da tal economia criativa.
O modelo consagrado pelos empresários tropicais de cultura deu ao novo personagem da vida cultural brasileira, o “Zé do Patrocínio”, status de chefe de Estado. O aritmético e arrogante fomentador do mercado de patacoadas, agora é celebridade. Um tesoureiro de “time de cascudos cabeças-de-bagre” que anda com o imposto do contribuinte debaixo do braço bancando o dono da bola, virou o xerife justiceiro nessa terra de perdidos. Um missionário fanfarrão, paraninfo do modelo degenerativo do messianismo bruto, portador da leviana “magia do saber” que, com o habitual cabelo nas ventas espera a consagração e paparicos de gestores e produtores “carimbados” em prêmios e festivais.
Esse personagem imperial, o “Zé do Patrocínio” está misericordiosamente livre para, com seu polegar, determinar a vida de milhares de artistas nas arenas do “vale tudo”, pois é nisso que se transformou a produção cultura brasileira via Lei Rouanet. É a autenticidade intelectual com o limite mais estreito de que se tem noticia em toda a história da cultura brasileira.
Qualquer coisa fora desta minúscula visão critica quando se fala da produção contemporânea da arte brasileira via Lei Rouanet, pode, sem medo de cometer injustiça, ser considerada como falaciosa, tendenciosa, proselitista, vulgar, charlatã, etc.etc.
Não existe glossário de clichês econômico-cultural de múltiplas e efêmeras combinações que sustentem uma lambança dessas. Não há religiosamente nenhuma manobra geopolítica escorada por planilhas percentuais capaz de explicar um guincho como este. O antifestival de políticas de fomento saído da geração de rebeldes da ética artística em nome do marketing, não deixa espaço para a coexistência, por menor que seja entre arte e mercado.
Portanto, não há “alho nem bugalho” capaz de produzir um espantalho que afaste o vampirismo empresarial. Por isso é necessário e urgente o recomeço, mas da “estaca” zero em tudo o que se refere ao fomento à cultura nacional para liquidar de vez com o assombrado ambiente de Dráculas.
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