É verdade que existe uma parcela do chamado “mercado cultural” dependente da Lei Rouanet. E óbvio que essa parcela luta e resiste, não pelo modelo, que todos compreendem ultrapassado, mas por um mínimo de segurança jurídica, por um debate produtivo e pela construção coletiva de um novo modelo de financiamento à cultura, que não seja oportunista e que vise, antes de qualquer arroubo poético em torno da diversidade, o aprimoramento de um sistema que se mostrou efetivo e contribui sobremaneira à produção cultural brasileira.
Dentre os 3 mil projetos que conseguem superar o obstáculo de uma nova burrocracia governamental, que persegue e concentra poder, dialogar e negociar com a agenda privada corporativa, que muitas vezes não compreende a complexidade da cultura e a transforma em mero produto a serviço do mercado, encontramos de tudo. Desde iniciativas estatais competindo com artistas (e que concentram e abocanham a grande fatia dos investimentos), até projetos de indiscutível viabilidade comercial, como o espetáculo de Caetano Veloso, motivo da mais recente polêmica envolvendo MinC, mais perdido que cego em tiroteio.
Todos sabemos e apontamos, há pelo menos uma década, os perigos e desvios que o mecanismo propicia, e que poderiam ser minimizados e até mesmo superados por uma gestão competente, republicana e contemporânea do mecanismo. Longe disso, a Lei Rouanet caminha para uma insustentabilidade fabricada por um misto de insensatez, incompetência e oportunismo político dos dirigentes do MinC. Torno-me repetitivo e às vezes agressivo, por minha indignação com esse descaso. Mas não é isso que desejo abordar neste artigo.
Refiro-me aos milhares de artistas, empresas e técnicos, que desenvolveram seus empreendimentos, qualificaram-se profissionalmente para atuar e desempenhar suas funções pública e privada nesse sistema, e assumiram compromissos em torno de uma lógica de financiamento que está muito longe de ser ideal, mas é real e efetivo. Não traz a dignidade necessária à sobrevivência da arte em nossa sociedade, mas é a sobrevivência para muito do se realiza em termos de indústria cultural pelo Brasil afora.
Atendo muito desses empreendedores em minha consultoria, que lutam cotidianamente contra o preconceito das corporações, que ainda enxergam cultura de maneira muito restrita e simplista. E custa-me considerá-los, mesmo os do eixo Rio-São Paulo, como privilegiados, membros de uma elite econômica, que só pensam em si e desprezam a diversidade cultural e a cultura popular.
Não consigo compreender a fúria e a indignação do Ministro da Cultura e sua equipe, que não hesitam em responsabilizar esses heróis da resistência por problemas que fogem ao raio de atuação da atividade intrinsicamente cultural e artística. Nos últimos anos, o MinC transformou a vida de artistas e gestores culturais num verdadeiro inferno, publicando portarias e decretos ilegais, estúpidos e anti-democráticos. Gerando dificuldades para “vender” facilidades.
Essas dificuldades burocráticas só fizeram fortalecer os intermediários e afastaram os artistas e os agentes menos privilegiados do acesso direto ao mecanismo. A instabilidade jurídica é tamanha, que torna-se impossível acompanhar as regras e procedimentos alterados semanalmente pelo MinC. Quase tudo para complicar a vida do pequeno produtor. O grande é o menos afetado, pois tem assessores, advogados e conseguem fazer valer o direito de acesso democrático ao mecanismo, subtraído covardemente do pequeno produtor.
Esse mercado em formação não quer a manutenção de privilégios, talvez um ou dois espertalhões, mas não a esmagadora maioria dos proponentes, que produz ações culturais de pequeno porte. Lembro que 65% dos projetos captados são de pequeno e médio porte, até R$ 200 mil.
A não existência da Lei Rouanet seria, realmente, a melhor solução para todos. Mas ela existe e é realidade pra muita gente aguerrida, consistente e compromissada com a democracia, com a diversidade e com a justiça social. E a luta dessa gente é por dignidade e não por manutenção de privilégios. Não há nada de errado em resistir a um desmanche de um instrumento público da envergadura e importância da Lei Rouanet. Os que buscam o seu esvaziamento em nome de uma dita “diversidade cultural”, ou estão sendo manipulados ou possuem uma agenda oculta ou escusa.
Segundo informações que temos difundido insistentemente aqui em Cultura e Mercado, a Lei Rouanet é o principal instrumento de financiamento à cultura do Brasil. O segundo maior instrumento existente, o Cultura Viva (agora engolido pelo Mais Cultura) não consegue dar conta de 10% dp volume de projetos do mecenato.
Seria lindo imaginar um mundo em que a atividade cultural brasileira não dependesse do setor privado. Mas é polianismo puro acreditar que a criação de cinco fundos resolveria esses problemas. Simplesmente porque esses fundos são na verdade “sacos sem fundo”. Não existe dinheiro para lastrear a vontade (verdadeira, corajosa, porém impetuosa, e até mesmo irresponsável) do MinC.
E outra, o dinheiro do mecenato não concorre com o dinheiro do fundo. Na verdade o mecenato não concorre com nada. Nunca chegou perto de atingir o limite de renúncia disponível para a cultura. Não há porque esvaziar este mecanismo sem antes termos uma garantia efetiva de orçamento.
Todos sabemos que o Ministério não tem capacidade operacional para controlar a Lei Rouanet, sequer o FNC. Falta funcionários, qualificação. A situação é realmente preocupante. A execução do Mais Cultura, do próprio FNC e mesmo do Cultura Viva, demonstram claramente isso. Ou seja, mesmo se tivesse dinheiro em caixa, não conseguiria gastar.
Não sou descrente do Fundo. Pelo contrário. Luto aqui, todos os dias, por um fundo público para as artes, que seja autônomo, gerido e controlado pela sociedade. O exemplo da Inglaterra poderia ser aprimorado e incorporado às instâncias de participação geradas nesta mesma gestão do MinC, que são, sem dúvida, verdadeiros avanços.
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