?Estava instaurado o ?salve-se quem puder?: todos aprendendo a nova linguagem do ?marketing cultural??
Momentos importantes da história do teatro foram marcados pela presença de grupos. No Brasil, após o período militar de 1964, assistimos ao fim da era do Arena e do Oficina e o enfraquecimento paulatino das criações coletivas e de produções cooperativadas dando lugar aos encenadores que tiveram o seu auge no Brasil na década de 1980. Essa mesma época foi caracterizada pela profissionalização e pela segmentação da criação teatral. A visão coletiva deu lugar à compartimentalização da criação, que concentrou no diretor, e somente nele, a responsabilidade pela interligação das diferentes áreas, tais como interpretação, iluminação, cenografia, figurinos, produção etc. Esse modelo, que exigia profissionais especializados e significativos aportes financeiros, acabou por concentrar a produção, ainda mais, no Rio de Janeiro e São Paulo, cidades que acolhem os grandes veículos de comunicação do país, ávidos por novidades e mitos.
Para a mídia nunca foram interessantes os aspectos coletivos de uma criação. Os patrocinadores, por sua vez, quase sempre dirigiram seus recursos para os artistas consagrados e, portanto, com acesso garantido aos meios de comunicação. Finalmente, o poder público aos poucos foi se ausentando de suas obrigações constitucionais com a cultura e com a pesquisa de linguagens artísticas. Consequentemente, aqueles que fugiram à fórmula ditada por essa nova realidade encontraram dificuldades quase intransponíveis para produzir e para conquistar o já tão minguado público. Fazer teatro em outro formato, em outras cidades e com baixos orçamentos tornou-se tarefa extremamente difícil.
Como a história não acontece em etapas distintas e burocratizadas, na mesma década de 1980, a nova geração de artistas que ainda presenciou os resquícios da poeira levantada pela ditadura, e que não se reconhecia nas regras de produção e criação do teatro existente, começou a se organizar para responder aos seus anseios artísticos, políticos e sociais. A possibilidade de trabalhar coletivamente foi uma estratégia de sobrevivência prática, uma posição política diante de um mercado individualista e, principalmente, a oportunidade de experimentar um processo de criação que respondesse aos desejos estéticos e de conteúdo dessa nova geração. E foi exatamente na primeira metade dessa década que muitos grupos teatrais se formaram e, o mais curioso, em sua maioria, fora do eixo Rio-São Paulo. Para sobreviver, esses grupos encontraram formas alternativas de organização, produção e de inserção no mercado, ao mesmo tempo em que buscavam resultados artísticos que lhes possibilitassem o domínio de todo o processo de criação e apresentação de seus espetáculos. Grande parte desses grupos mergulhou na busca de identidade com a cultura brasileira, passando muitas vezes por temas e manifestações populares, e foi em direção ao teatro de rua (com freqüentes alternâncias com palco italiano), pátios de escolas e fábricas ou qualquer outro espaço não convencional.
Esse novo direcionamento no campo artístico fez com que a cena teatral abandonasse, na medida do possível, os aparatos cenográficos, tecnológicos e de iluminação, e concentrasse sua teatralidade no ator e suas habilidades técnicas. Mesmo quando eram utilizadas estruturas cênicas para abrigar o ator, o próprio grupo e seus integrantes criavam e executavam a operação que envolvia a representação do espetáculo. Não é por acaso que nesse período influências do teatro de Jerzey Grotowski e Eugênio Barba foram determinantes para muitos grupos, uma vez que o teatro que ambos propõem está essencialmente baseado no ator.
A necessidade de dominar a criação e produção, de buscar um mercado alternativo e um novo público, além daquele habitual que vai às bilheterias, criou uma nova e ampla teia de comunicação. No aspecto artístico, os integrantes desses grupos foram obrigados a se formar e a dominar técnicas específicas, além de serem capazes de desenvolver e reproduzir tais informações. Assim, os grupos estreitaram suas relações com a comunidade, cumprindo o papel de multiplicadores de informações e encontrando, ali, trabalho e formas de sobrevivência. Nesse momento, fortaleceu-se a comunicação e a troca entre os grupos, que resultou na criação do Movimento Nacional de Teatro de Grupo. Em Minas, logo depois, foi criado o Movimento de Teatro de Grupo de Minas Gerais.
Como frutos desse período, é possível apontar o surgimento de linguagens próprias de cada grupo, a disseminação de conhecimentos na comunidade e o estabelecimento de um diálogo com segmentos importantes do teatro de outros países. Fundamentalmente, com essas ações buscou-se a abertura de um novo mercado de trabalho, um outro público, a democratização de espetáculo teatral, a descentralização da produção e exibição, a formação de público, o resgate da função social do teatro e a formação de artistas.
No plano artístico, partiu-se para a busca de uma linguagem e de uma comunicação que fossem capazes de dialogar com o universo lúdico e mítico desse ?novo público?, que habitualmente não freqüentava as casas de espetáculos. Verificou-se, com isso, o crescimento da produção de teatro de rua em vários Estados. Muitos grupos foram beber nas influências das manifestações populares, no circo, na commedia dell?arte, no cordel, em personagens populares e, com o passar do tempo, começaram a abordar temas próprios, provocando o aparecimento de novos dramaturgos.
Muitas vezes os grupos foram além de suas atividades teatrais e passaram a organizar e produzir eventos, a se envolver com a organização de sua comunidade e com suas entidades representativas. Essa nova dimensão do envolvimento dos grupos teatrais com a sociedade, por sua natureza, passou a exigir, ainda mais, do poder público uma política para a cultura.
Na virada da década de 1990, teve início a era das leis de incentivo à cultura. A medida em que os governos se ausentavam e abandonavam suas obrigações constitucionais com a cultura numa atitude eticamente deplorável, as leis de mercado foram ocupando espaço, passando a selecionar somente o que interessava ao marketing das empresas. Como foram durante muito tempo (ou ainda são) o único mecanismo fomentador da cultura, as leis de incentivo promoveram avanços significativos seja envolvendo e despertando empresas privadas e estatais para as vantagens de parcerias culturais, seja no amadurecimento e profissionalização das produções culturais. No entanto, a saída de cena do poder público relegou a cultura ao abandono e esse fato foi a pior distorção provocada pelas leis de incentivo. Ações, políticas e orçamentos inexistentes fizeram dos órgãos de cultura nas esferas municipal, estadual e federal, museus de mediocridade e hipocrisia política.
Estava instaurado o ?salve-se quem puder?: todos aprendendo a nova linguagem do ?marketing cultural? e buscando a empresa com perfil adequado ao grupo, ao espetáculo a ser montado, aos seus sonhos. A marca individualista e isolacionista solapou a organização dos grupos e a comunicação entre eles. O teatro de rua, que teve um momento muito rico no início dos anos 1990, entrou em crise e hoje quase não existe uma produção significativa nessa área.
Alguns grupos se adaptaram à nova realidade e outros tiveram a sorte de ser assimilados pelos interesses das empresas. Na segunda metade da década de 1990, os grupos e diretores que se enquadraram nessa nova ordem, acabaram, aos poucos, se adaptando à formalidade dessas parcerias e patrocínios, tendo que empreender, no entanto, grandes esforços pela preservação de sua inquietação artística. Essa acomodação ou enquadramento dos grupos na nova ordem mercadológica deve-se também a outros fatores. A própria história construída por cada um, de certa forma, cria compromissos e responsabilidades que pesam na hora de planejar seus vôos. A necessidade de sobrevivência, a expectativa da mídia, do público e do patrocinador igualmente dificultam maiores riscos. Quanto maior e mais profissional a estrutura do grupo, maior a necessidade de não errar na criação e no planejamento. A margem de risco ficou menor e as fórmulas de sucesso cada vez mais presentes no consciente ou no subconsciente dos artistas. Quase todos se profissionalizaram, casaram, tiveram filhos, contraíram equipes de funcionários, barrigas e rugas. A alegria e a fome do novo empalideceram sob os óculos de leitura. A utopia quase deixou de existir, diante da implacável realidade da sobrevivência. A fórmula de mecanismos de sucesso apresentados pelos meios de comunicação ditam valores e comportamentos, sejam individuais, sejam coletivos.
Muitos lutam por preservar o risco e a busca de novos caminhos, de nova linguagem e do desconhecido, mas num jogo difícil e inevitável de convivência com a profissionalização e o reconhecimento público de seu trabalho. Aos poucos, a disponibilidade dos artistas, o modo de ver seu próprio trabalho, sua ética de convivência coletiva e, por fim, o seu próprio resultado artístico, acabaram por se contaminar por essa nova, difícil e inevitável (?) engrenagem individualista do mercado no qual estamos inseridos. É necessário reconhecer essa realidade para travarmos uma luta equilibrada e criativa, para que não nos afastemos dos princípios que originalmente nos jogaram nessa profissão. Especialmente aqueles que comungam do sonho de uma sociedade mais humana, coletiva e igualitária.
Chico Pelúcio, autor teatral, é um dos fundadores do Grupo Galpão, o principal de Minas Gerais.
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Chico Pelúcio