Em 1917, com o pseudônimo de R. Mutt, Marcel Duchamp enviou para o Salão da Associação de Artistas Independentes um urinol de louça, utilizado em sanitários masculinos, com um título sugestivo de “Fonte”. Não era o primeiro readymade (apropriação e deslocamento de objetos pré-fabricados para o meio de arte); em 1913, Duchamp já havia se utilizado de um banco de cozinha onde parafusou no assento uma roda de bicicleta. Mas foi o primeiro enviado para uma exposição.

Noventa anos depois deste gesto irreverente que determinou praticamente o destino das artes plã¡sticas até os dias de hoje, é um momento oportuno para interrogarmos que relação existe entre Duchamp e o que estamos presenciando com designação de arte contemporânea. Aclamado como influência libertadora por uns, blasfemado por outros como influência facilitadora e catastrófica. Talvez seja muito citado e pouco entendido. Certamente, Duchamp e diversas manifestações realizadas em nome da arte não se combinam.

Mas do que um provocador, Duchamp era um pensador discreto. No contexto da arte moderna, a invenÇÃo do readymade é um dos gestos mais significativos. O impressionismo foi a primeira revolução na arte ao romper com a linha que contornava a figura, o cubismo realizou o rompimento definitivo com o espaço renascentista, a decomposição da figura colocou em evidência o plano, como a verdade do espaço plástico moderno. O gesto de Duchamp foi mais além, uma ruptura com uma tradição que reconhecia na técnica e na habilidade do artista a condição da obra de arte. O artista deixou de ser o sujeito que faz uma obra e passou a ser alguém que escolhe e decide o que é arte. O readymade é um objeto produzido industrialmente e proposto por um artista como objeto de arte. O artista não constrói o objeto, escolhe-o e assina.

Não mais dependendo da mão do artista, a arte passou a ser qualquer coisa determinada pelo poder exercido por um sujeito/artista, que age no interior de uma instituição específica capaz de legitimar seus atos. Renunciou ao saber das mãos para se constituir em uma atitude crítica, num mundo dominado pelas imagens produzidas pelos modernos meios de produção e reprodução. Fazer arte passou a ser uma forma de reflexão sobre a condição da arte na sociedade moderna, um dispositivo do pensamento e não do entretenimento como ocorre em manifestações artísticas, na situação da contemporaneidade.

O readymade pode ser uma espécie de paradigma da arte contemporânea, mas ao mesmo tempo é a negação do jogo de facilidades, da pressa e da repetição que contaminaram a arte, distanciando-a do pensamento. Duchamp tinha consciência do perigo de cair na facilidade, no vício e na rotina e se limitou a fazer poucos objetos de arte. Logo percebeu o risco de repetir esta forma de expressão indiscriminadamente e construiu uma obra pequena e cuidadosa.

Estamos atravessando uma época pobre em matéria de artes visuais, apesar do fluxo descontrolado que circula nos salões, bienais e nos centros culturais, celebrado por curadores e investidores. Vem acontecendo uma supervalorização de determinadas experiências artísticas para atender interesses externos à  natureza da arte. O artista que sempre produziu contemplando as obras do passado, hoje, ele olha para o que ainda não aconteceu: o futuro e se preocupa, muitas vezes, com questões alheias a própria arte. A cada nova tecnologia, um palpite, uma previsão, mas a arte não é uma ilustração de performance tecnológica, política ou ideológica, ela é um sistema autônomo e integrado no corpo da sociedade.

O gesto de Duchamp queria dar uma resposta à crise das artes artesanais na sociedade industrial e indagar o funcionamento da instituição arte, embora ele nunca tenha abandonado de fato o trabalho artesanal, como mostra o grande vidro. Foi um ponto de vista crítico frente à  arte e suas instituições. A arte é também um jogo de poderes que as operações técnicas não explicam.

De perto, readymade e o modelo mais difundido de arte contemporânea não se misturam.

Almandrade
(artista plástico, poeta e arquiteto)


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Artista plástico, poeta e arquiteto.

2Comentários

  • Carlos Henrique Machado, 28 de junho de 2008 @ 12:37 Reply

    Mais uma vez, tenho que parabenizá-lo, Almandrade. Esta sua colocação é perfeita, aliás, dias atrás vi Ferreira Gular falar a mesma coisa, que vivemos um certo proselitismo em torno do conceitual, uma erudição falsificadora. Se acompanharmos bem esse movimento, observaremos que por essa, digamos, brecha na lei das artes conceituais tem passado uma grande boiada. O credenciamento institucional também nos revela que em todo esse misancene em torno da conceituação tem contornos amplos, mas acima de tudo, é bastante aplaudido por alguns oradores em seminários com aqueles enormes nariz de cera. Tenho um grande amigo que adora brincar com isso, ele faz uma espécie de corrente de palavras de efeito típicas do proselitismo artístico, essa caricatura é muito engraçada. É o que venho repetindo inúmeras vezes, tudo isso tem credenciamento do blefe institucional, o que é plenamente justificável. Não tendo pra quem passar a bola, damos um chutão pra cima e caimos na tourada intelectual. É lógico que isso esfria a relação da arte com o humano, mas é também lógico que isso dá emprego e status para muitos. Numa sociedade corporativista como a nossa, o orador e o artista que optam por este caminho excessivamente minimalista, levam a merenda de casa. Suas torcidas são uma espécie de fiéis que buscam um lugar ao sol através dessas brechas sociais e vamos assistindo a esses guetos vips bem decorados e bem sustentados.

    Essa discussão franca que você coloca aqui é do que estamos necessitando. A arte, principalmente no Brasil é algo discricionário sob a lógica institucional e, a cada dia, dá tônus a este colorido para mantê-la num cubículo social elitizante. A música já passou por várias dessas fases conceituais. A carta-manifesto de indignação de Camargo Guarnieri dá conta de uma certa imposição dodecafônica no Brasil já inaugurada naquela época, acabando com a carreira de muitos grandes compositores brasileiros. Essa imposição estética, Camargo Guarnieri classificou como crime de lesa-pátria.

    Na década de 80 fomos tomados por uma febre experimentalista esnobe na música instrumental, onde o guincho virou clichê e muita gente se lambuzou dessa concessão. Praticamente vimos uma década morta por conta disso. A justificativa era simples, a tal música do mundo, mas não funcionou.

    Este seu alerta tão necessário, de certa forma nos cobra um pensamento mais responsável com todo esse caldeirão que envolve a arte para que não transformemos uma concessão em prol da liberdade numa ditadura conceitual que acabe se tornando um esconderijo perfeito para os que vivem à sombra dessa concessão que, infelizmente, não são poucos.

  • Rodrigo Rosa, 1 de junho de 2023 @ 15:03 Reply

    Não há reflexão em fazer da mercadoria uma obra de arte. Há a subsunção da Arte ao meio técnico-científico. Transformar a Arte em conceito é Niilismo. Exigir do espectador uma compreensão intelectual específica para os teoremas modernos é Elitismo. Afogar a criatividade em Experimentalismos que acabam por se tornar norma é deplorável. Eis o modelo ENE do Modernismo. Estamos no século XXI. A Modernidade e seus pós, como mostra a Revolução de Rojava, estão mortos.

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