Pedro trabalhava como músico e técnico de áudio, e sonhava com um lugar onde pudesse manter seus equipamentos, produzir seus próprios eventos e apresentar bandas que pouco tocavam no Rio de Janeiro. Miguel fazia parte de um sistema de som que promovia festas na rua em São Paulo e com o tempo sentiu a necessidade de ter um espaço próprio. Darwin entendeu que a casa que dividia com Dora e Ramon em Fortaleza já não dava mais conta de receber os amigos para jantares, festas, conversas e exposições de arte. Fernando queria ter um centro cultural na capital paulista, com foco em música independente. Em comum entre todos eles: muita vontade e criatividade, pouco dinheiro.
Existe oferta: há artistas produzindo e ansiosos para apresentar seu trabalho para o maior número de pessoas. Existe demanda: há público querendo ver esses trabalhos ao vivo, além de conhecer novos artistas. E é nos pequenos centros culturais e casas de shows que muitos desses encontros acontecem.
Que o poder público identificasse a importância desses espaços no desenvolvimento da cena cultural da cidade foi uma das solicitações de um grupo de produtores e donos de casas de São Paulo no início deste ano à Secretaria de Estado da Cultura. O resultado foi a abertura de um novo edital do ProAC – Programa de Ação Cultural do Estado, para manutenção e programação de espaços culturais independentes: Território das Artes.
Serão apoiados 35 projetos – sendo que 70% deles deverão ser de fora da capital: 20 com prêmios de R$ 50 mil; 10 com prêmios de R$ 100 mil; e cinco com prêmios de R$ 150 mil. As propostas podem contemplar ações básicas de manutenção, como pagamento de aluguel, água, luz e telefone; reformas e consertos; pagamento de funcionários; renovação de equipamentos; produção de material de comunicação e registros.
“A gente enxerga como se fosse trabalhar um time de futebol: tem que investir na estrutura de base”, explica Fernando Tubarão, do Espaço Cultural Puxadinho da Praça. “Existem bandas com muito potencial, mas que acabaram de sair da garagem e não encontram lugares decentes pra tocar.”
O problema é que, além de questões como as que poderão ser cobertas no novo edital paulista, outras parecem longe de serem resolvidas: burocracia para abrir empresa, altos impostos, dificuldade de diálogo com os órgãos fiscalizadores, ausência de transporte público 24 horas.
“O Estado tem que reconhecer os espaços, seja via leis de incentivo, seja na redução de impostos e na diminuição das burocracias. Mas também pode ajudar muito em outros aspectos, como por exemplo na estrutura de mobilidade e na mediação entre as casas e o entorno. O acesso aos bens culturais deve ser pensado como parte do desenvolvimento das cidades como um todo”, afirma Miguel Salvatore, da Serralheria.
Ele sabe da importância dos editais. Em 2012, a casa foi contemplada no Palcos Musicais Permanentes, da Funarte. Foram R$ 100 mil de prêmio, utilizados na melhoria dos equipamentos de som, no pagamento de cachês para artistas e na distribuição de cartões de entrada gratuita. Mas lembra que é preciso cuidar para não cair no círculo vicioso de quem vive na dependência dos prêmios. “Na verdade é mais fácil manter um pequeno espaço do que um grande, porque você depende menos de capital de giro. Mas tem dificuldades, que a gente vai aprendendo com o tempo, como a escolha da razão social e ter as leis de funcionamento claras na cabeça.”
Operação de caixa – A Serralheria fica em um galpão na Lapa, zona oeste da capital paulista, alugado por Miguel com mais três sócios em 2009. Cada um investiu R$ 5 mil, e decidiu que teriam que dar conta sozinhos do negócio. “A gente foi fazendo festa e desde sempre se pagou, porque o custo do espaço é baixo. Não temos empregados. Só há um ano e meio contratamos um gerente. Nosso marceneiro é nosso técnico de som, o cara que fazia nossa cerveja também. Eu e meus sócios fazemos porta e bar”, conta. No CNPJ, além de espaço cultural, é uma produtora. Os shows e festas pagam a manutenção do espaço, mas cada um dos sócios tem outras fontes de renda para viver. O lucro acaba sendo mais reinvestido em melhorias na própria casa.
Miguel confessa, no entanto, que já estão trabalhando no limite da operação, por isso buscam novas formas de atuar. Eles promovem algumas exposições de arte no local, por exemplo, e tentam negociar porcentagem de venda das obras. Com relação aos shows, com um limite de 100 pessoas na casa, há bandas que conseguem lotar com ingressos mais caros (até R$ 40), outras que fazem entrada mais barata (a partir de R$ 15), mas cujo público consome mais no bar. Não há cachê fixo, e a porcentagem da bilheteria é negociada caso a caso.
Já na Audio Rebel, no Rio de Janeiro, os shows não são suficientes para pagar as contas. Estúdio de gravação, loja e casa de shows, o espaço criado por Pedro Azevedo em Botafogo começou como uma sala de ensaio – que funciona até hoje. Dois anos depois, investindo pouco a pouco o dinheiro que conseguia fazendo eventos fora, ele e o sócio montaram a sala de gravação. Hoje, após nove anos, a casa é um reconhecido ponto de encontro de músicos independentes não só do Rio.
O espaço para as apresentações ao vivo comporta apenas 90 pessoas e conta com uma programação dedicada ao experimentalismo e aos artistas que não têm lugar no circuito comercial. “Se a gente fosse pensar em fazer shows de música pop, ou da molecada mais nova, que está disposta a pagar pra tocar, a gente conseguiria viver de shows. Mas a nossa proposta é trazer boa música. Pra mim, os shows acontecem por questão de gosto pessoal e objetivo de vida, de tentar retribuir o bem que a música me faz”, conta Pedro. Os shows ajudam nas finanças de outra forma: é o momento em que ele faz o marketing dos outros serviços que são oferecidos e que pagam as contas de fato.
“A gente se mantém graças a uma rede de pessoas que gostam da Rebel e querem que a casa continue funcionando. Topam trabalhar com um preço menor, tentam de uma maneira geral diminuir os custos pra fazer a coisa acontecer. Adoraria que abrisse um edital que me ajudasse a fazer o que eu faço podendo pagar melhor os músicos e a produção e mantendo minha autonomia, mas ainda não vi nada assim. Tudo o que o governo faz é pra nos atrapalhar. É muito difícil começar a se legalizar, pagar todos os impostos, taxas trabalhistas… é quase impossível”, Pedro reclama.
Em Fortaleza, segundo Darwin Marinho, a dificuldade é que as políticas culturais sempre foram voltadas para projetos “megalomaníacos”, grandes centros culturais e grandes shows, deixando de lado ações menores que poderiam ser mais significativas. Darwin é um dos sócios do Mambembe – Comida e Outras Artes, um espaço de arte, segundo ele, bem marcado no tempo – hoje, a produção contemporânea – e no espaço – Rua dos Tabajaras, Praia de Iracema, Fortaleza, Ceará, Brasil e América Latina. Tem algumas atuações muito bem definidas, como a de bistrô, espaço de festas, casa de shows, espaço de exposições artísticas, mas para Darwin nenhuma dá conta da ideia, muito menos da prática.
Ele abriu o espaço em abril de 2013, com capital de giro nenhum. “Até hoje a gente corre para compensar isso. A burocracia para abrir uma empresa é muito maçante”, reforça a crítica. Hoje o bistrô funciona como porto fixo na programação, tendo horário para abrir de quarta a domingo, independente do que vá abrigar para além disso. De resto, tudo é volante. “Algumas programações são pontuais, tendo em um dia e nunca mais voltando a se repetir. Outras são semanais, como o Música para Salvar a Semana nas quartas e o Batida Fina nas quintas, algumas mensais e outras sazonais.”
Há cobrança de ingresso nas festas e nos shows, tentando sempre fazer o mais barato possível para que mais pessoas possam ter acesso à programação. O foco são artistas locais, mas já houve vários shows de artistas de outras cidades. “Essas atividades conseguem manter o espaço minimamente. Demorou quase um ano meio para que conseguíssemos nos organizar para pagar as contas direitinho. Ainda é tudo muito apertado e sempre pensamos em novas formas de usar o espaço fora dos horários normais de funcionamento”, conta. Já chegaram a testar um delivery de almoço, já alugaram o espaço para eventos fechados e agora estão pensando em promover cursos.
Fora da mídia – Darwin diz que já viu alguns projetos do governo local para pequenas casas que nunca chegaram a sair do papel. De qualquer forma, acha que edital de manutenção é um assunto delicado. “O Mambembe tem um projeto ético, estético e político muito claro, e não abrimos mão. A gente acredita em um projeto de cidade, tem visão de mercado e trabalhamos bem para a fidelização e renovação do nosso público, mas não fazemos concessões”, encerra.
Essa também é uma das ideologias de Fernando Tubarão. Para ele, apoio de empresa, por exemplo, seria interessante se fosse de alguma marca de equipamento musical, ou alguma que o ajudasse a cuidar melhor da questão da sustentabilidade ambiental do espaço. O Puxadinho da Praça nasceu com essa ideia, em 2011, ainda quando era um brechó. A reforma inicial do sobrado alugado em uma famosa esquina na Vila Madalena foi toda baseada em conceitos ecológicos. Mas a falta de recursos impediu que mais melhorias acontecessem.
Recebendo bandas para apresentações ao vivo desde julho de 2012, o Puxadinho deve encerrar este ano com cerca de 700 shows no currículo. Só em 2014 terão sido 311. E o projeto é ainda mais ambicioso: “Nossa ideia é ser produtora, selo, distribuidora… abrir 24 horas por dia, sete dias por semana. Ter café da manhã, ensaios durante o dia, happy hour, show… um ambiente que promove cultura, com foco na música independente”, explica Fernando, que indica um outro problema dos espaços que se dispõem a trabalhar apenas com música nova e autoral: a falta de divulgação.
“Se eu trabalhasse com um ritmo específico, uma casa de samba, por exemplo, o público viria sem saber o que está tocando na casa. Mas trabalho autoral é diferente, muitas vezes a banda não tem uma definição de estilo, é difícil explicar para quem chega na porta e pergunta que tipo de som vai rolar hoje”, conta. Por isso, ele acredita que o maior inimigo das pequenas casas é a falta de espaço na mídia. “As pessoas vão atrás do que está na mídia, do que elas ouvem na rádio. Nosso poder de alcance é muito pequeno.”
Outra consequência disso, acredita Fernando, é que as empresas que apoiam projetos via Lei Roaunet, por exemplo, nunca chegarão aos espaços e artistas pequenos. “Na hora de escolher um projeto, a empresa vai patrocinar o Puxadinho ou o Luan Santana, que vai dar mais retorno de marketing pra ela?”
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