Numa crônica bem desenhada pela própria história política do Brasil, a certa altura de um debate histórico da primeira eleição direta para a Presidência da República, depois de uma longa lei de mordaça ditatorial, onde se inclui a entrada de Tancredo Neves/Sarney pela porta dos fundos, e é bom que se diga que a dissonância daquele contexto político desembocou na desastrosa operação do exército em seu último ato na cidade de Volta Redonda com a invasão da Cia. Siderúrgica Nacional, ato que resultou na morte de três operários metalúrgicos e, consequentemente, levou à vitória dois de prefeitos do PT em duas capitais brasileiras, Vitória-ES com Vitor Buaiz e São Paulo, com Erundina. Isso acontece com uma virada espetacular mostrando uma sociedade atenta e saturada dos desmandos ainda ditatoriais.

É neste contexto que os debates para a seguinte eleição presidencial se deram, com a memória bastante fresca, da arrogância x democracia. No canto da boca, uma espuma branca refletia uma fisionomia de olhos carregados de um ódio incomum, na mão direita, lógico, o dedo indicador em riste, típico de um X-9, de um dedo-duro, de um imperador romano aos berros, acompanhado de todo esse quadro plástico, Ronaldo Caiado, o legítimo representante do atraso do pensamento de Cowboy, já protagonizava, a dantesca fábula de invadir a Cinelândia, naquele período, Brizolândia, com seus tratores, cavalos, os mesmos que andaram, Brasil afora, a serviço da grilagem. Estava ali, o afortunado diante de um operário com uma história tão rica de luta, mas também de um pobre pau-de-arara, bóia-fria, sindicalista e líder político, Lula. A certa altura do debate, Caiado não se conteve e, aos berros, disse a Lula, que até então, ignorava a presença do Cowboy, “Me faça uma pergunta, quero ver se tem coragem!” e Lula dá um sorriso irônico para o Caiado espumante como as suas champagnes que serviram de companhia para comemorar as vitórias de opressão, Lula, depois de um suspiro suave, mira-o nos olhos a diz a Caiado: quando você tiver 1% nas pesquisas, eu lhe dirijo uma pergunta. O nosso Kid Bufão, Caiado esvaziou como num traque, desapareceu pra sempre do mapa político brasileiro. Sua imagem de galã do oeste derreteu no calor da força do voto que Lula já trazia em seu portifólio.

Naquele momento, todos nós nos sentimos de alma lavada, aquilo foi melhor que uma vitória de 5 a 0 numa final de copa conta a Argentina. Horas depois, o Brasil foi tomado por várias arenas, botequins, esquinas, praças, onde num monólogo, alguém reeditava aquela cena tão vitoriosa do povo brasileiro.
Duas coisas me assustam na saída de Gil e entrada de Juca Ferreira. Quando Gil sai e faz uma reclamação, relativamente conformada de não ter alcançado 1% do orçamento para a cultura, ele, de certa forma, divide a responsabilidade e, nessa hora, eu o aplaudo, pois quem recebeu um “não” bem dado, não foi o MinC, muito menos Gil, foi este pensamento anacrônico das extensas falas da ditadura social, das imposições estéticas, dos deuses da cultura.

Naquele momento, houve, da parte de Gil, certo constrangimento, certa frustração por não ter conseguido vencer todo o anacronismo e derivados de um pensamento impregnado por substâncias tóxicas, pensamento este que a sociedade brasileira há quinhentos anos tenta se livrar. Convenhamos! Um mínimo de consciência nos revela que o desastre está em nós mesmos. Este universo particular, esse “meu quarto, meu mundo”, das classes que sempre dominaram a cena oficial da cultura brasileira, esse mundinho e suas reflexões pequenas, abraçados a seus ursinhos de pelúcia e seus consumismos, vivem estourando o orçamento da mesada do papai Estado. Bem feito! Perdemos por “WO”. Assim como Lula ignorou Caiado, a sociedade, aquela privilegiada, nos ignorou e, a tão comemorada democracia no meio cultural jogou do lado certo, sem representatividade, nada feito. Então, vão caçar noutra freguesia! Não adianta vir aqui pressionar deputados e senadores com câmeras globais. A autoridade lá é autoridade com o meu voto e ela tem que me ouvir, senão, corto o seu voto. Eu, como cidadão, não enxergo essa tal cultura dos faraós. Portanto, não vou reclamar com deputado, muito menos com senador.

É interessante como se inicia um discurso de cultura no Brasil. Na apresentação, assim como Juca, sua timidez justificada é compreendida e até aplaudida, não sou de dançar. Mas não é exatamente um pé-de-valsa que a sociedade quer ver dançando na Estudantina. A cintura e o swing, o requebrado que se espera de um ministro, principalmente da cultura, são os da caneta que risca do mapa o pensamento ideologizado da abstração tat-bi-tat que sempre norteou as nossas ilustres normas corporativas de cultura. Não é uma dança vienense com lenços utilizados na contradança da nobreza em fileiras, num close, com seus sorrisos amarelados para a revista “Elite – Luxury”, vendida por 20 trocados e chamada laminada a estilo vil metal.

Há também que observar um pouco além do guincho d água do novo ministro na principal nota de tensão do seu concerto inaugural, quando diz, vamos fortalecer a música erudita! Quando sequer conseguimos ver o ministério soprando a velinha do aniversário de Pixinguinha no Dia Nacional do Choro e, mesmo sendo vizinho de um dos pontos mais referenciados no mundo da música internacional que anda a cada dia com os olhos mais voltados para o Brasil, o Clube do Choro de Brasília.

Sugeriria ao novo ministro, já que não tem compromisso com agenda artística, que não lhe causaria nenhuma saia justa, decretar publicamente o fim da segregação dos abadás para voltarmos a cantar o hino democrático, “atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu” e deixarmos de cantar em pensamento o Haiti é aqui. E nos unirmos, nós todos, os pretos ou quase pretos, ou quase brancos, numa dança, como manda a cartilha das democracias.

Imagino que o que se espera do novo ministro para alcançarmos o 1% de criatividade, seja o caminhar até silencioso de um ministério a outro e conversar com Patrus Ananias para que, de fato, as ações diretas como Cultura Viva e Pontos de Cultura, contemplem este Brasilzão que sequer sabe da existência do MinC. Essa caboclada, esse candangos, caipiras, os muquiranas, surfistas de trem ou de caminhões caçamba que, animados pela pinga, fazem um produto de extrema força cultural que tem sim, valor representativo e determinante nas questões da expansão de um mercado cultural diante do mundo.

A freguesia já disse, não vim ao Brasil para assistir à imitação barata de óperas paraguaias, vim aqui para ver e ouvir, Carlos Cachaça, Zé da Zilda, Beto sem Braço, o pedreiro Cartola. Quero estar na geral junto com este humano, ninho aquecido por corações de verdade, livres de quaisquer regras, prontos para recriar no dia-a-dia, o universo cultural.

A opção é nossa. Em vários momentos da história nacional, como na década de 60, na era dos festivais, a cultura foi o principal pilar político, a principal voz da sociedade, na resistência contra um quadro de horrores.

O homem brasileiro foi cantado em verso e prosa. Suas melodias apareceram no dobrado “A Banda” de Chico Buarque, com bombardino e tudo, nas catiras de Vandré, nos sambas de Gil, nos baiões de Edu Lobo e  Quarteto Novo e foram a voz de comando de um movimento que, naquele momento, detinha quase 100% de adesão da sociedade brasileira.

Pois bem, a cultura não obteve o 1% porque demos de ombros para o povo brasileiro. Essa nossa herança tupi-guarani, africana e europeu-brasileira, de gostarmos de conversar, não se sentiu representada e, se ninguém deu papo, então, que procuremos outros para um gostoso bate-papo e que deixem, a nós doutores da sabedoria cultura, por aí falando sozinhos, com os menos de 1% do orçamento.
E com uma senha explícita, não os reconheço, portanto…


Bandolinista, compositor e pesquisador.

2Comentários

  • Esso, 4 de agosto de 2008 @ 21:58 Reply

    puxa!, não há um comentário aqui …
    enquanto lia esse texto ia pensando no tanto que precisamos fazer para elevarmos os graus na fervura desse caldo cultural-social do nosso solo chão: refletir, agir, bulir … mexer com nossos complexos, estimar nossos temperos … oh, meu deu’ … A Poesia pode ser um copo dágua para os que tem sede. Cresçamos, cresçamos.

  • Carlos Henrique Machado, 5 de agosto de 2008 @ 12:48 Reply

    Caro Esso

    A fervura existe e não é pouca. Este chão brasileiro ferve de humano, o que mata, é essa impermeabilização promovida pela frieza do mármore. Os gestores brasileiros, de certa forma, foram finamente educados para se comportar como espantalhos. Essa tola objetividade de observar excessivamente uma lavoura na base de um trangênico, de uma incorporação a um meio que lhe arranque a base, a raiz, é a necessária defesa de um homem e seus inúmeros códigos e necessidades dentro do seu cosmos. Arte e cultura nascem necessariamente da voz, do grito das nossas aflições e desejos. Comprá-las, assim como num mercado de câmbio, é um suicídio. A poesia de milhares de brasileiros, dos palhaços às palhoças, anda em terra firme de um Brasil naturalmente universal.

    Obrigado pelo ping pong, Esso.
    Abração.

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