“Coloquei a casa em ordem”, afirma Marcos Mendonça, presidente da Fundação Padre Anchieta, mantenedora da TV Cultura

SÃO PAULO – Quem acompanha a programação da TV Cultura de São Paulo nota claramente uma mudança em sua programação nos últimos anos. Fundada em 1960 por Assis Chateubriand, dono dos “Diários Associados”, e adquirida pelo Estado em 1969 como parte do projeto de comunicação do regime militar, a emissora “abriu-se para o mercado”, como se diz correntemente.

A programação é cada vez mais entremeada por comerciais de bancos, carros, lojas etc. Em princípio, manteve-se dentro dos parâmetros que poderiam ser delineados como “culturais”. Mas as mudanças logo se fizeram sentir. Foram contratados apresentadores como Silvia Poppovic, que faz um programa nos mesmos moldes do que realizava em emissoras comerciais. A grade apresenta também o colunista social do jornal “O Estado de S. Paulo”, César Giobbi, e por pouco não abrigou uma atração com Gabriel Chalita, ex-secretário de Educação e campeão de vendas de livros de auto-ajuda.

Tendo como maior acionista o poder público estadual, a emissora apresentou sempre uma programação de alta qualidade – com direito a vários prêmios internacionais – ao mesmo tempo em que era forçada a seguir determinadas diretrizes dos governos de turno. Nos últimos tempos, isso se traduziu num caráter cada vez mais comercial.

Ao completar dois anos na presidência da Fundação Padre Anchieta (FPA), mantenedora das rádios e TV Cultura, o empresário Marcos Mendonça afirma ter implementado um modelo de gestão “modernizante”, causa e conseqüência direta da prometida estréia da nova grade. Entre os trabalhadores, porém, há críticas referentes à descaracterização das funções educativas da emissora e à falta de critérios na escolha dos comerciais.

A FPA, entidade de direito privado, recebe cerca de 60% de verba originária do governo estadual. O Conselho Curador, órgão máximo da entidade, é composto por 46 membros, divididos entre cargos eletivos, natos, reitores das universidades estaduais paulistas, e apenas um representante dos funcionários, Maurício Monteiro. “Toda a política interna da TV Cultura deveria passar pelo Conselho, mas na maioria das vezes, o Conselho é apenas informado da medida”, critica Monteiro.

A Cultura sempre viveu às avessas com as crises financeiras e, sobretudo, identitárias. A falta de projeto de programação era tão evidente que uma irônica frase ganhou notoriedade nos primeiros anos de transmissão. “A TV Cultura é a emissora mais lida de São Paulo”. Foi com o discurso de reverter estas contradições que o ex-secretário de Comunicação do Governo Alckmin, Marcos Mendonça, chegou à presidência.

LEMBRANDO MALUF – “A programação que está no ar se assemelha muito a que foi esboçado no governo Maluf de 1969 a 1971, quando se aventou até a possibilidade da contratação pela TV Cultura da Hebe Camargo e do Chacrinha”, de acordo com Laurindo Leal Filho, professor da Escola de Comunicações e Artes (ECA), da USP.

“Quando assumi, em junho de 2004, a Cultura estava em grave crise financeira e administrativa. Hoje é uma situação absolutamente equilibrada, coloquei a casa em ordem”, diz Mendonça. Em entrevista à CartaMaior, o ex-deputado estadual pelo PSDB-SP apresentou a “agenda positiva” do mandato e rebateu as críticas de que teria acelerado um processo de “privatização” da TV Cultura.

A programação da emissora paulista atende cerca de 1.900 municípios e alcança 63% de toda a população nacional. Compõe, em horários determinados, a chamada “Rede Pública de Televisão (RPTV)”, produzida também pela TVE do Rio de Janeiro, Rede Minas, TV Cultura do Pará, TV Cultura do Amazonas, TV Educativa do Rio Grande do Sul e TV Universitária do Recife. A Cultura participa com 25 horas e meia de transmissão entre as 32 horas semanais exibidas pela RPTV.

De acordo com Mendonça, a programação da Cultura somava apenas três horas diária de produção própria. Quase 70% da grade era preenchida com reprises. A situação beirava o descompasso completo. Com um “planejamento mais adequado dos gastos e controle das compras”, foi atingida a marca de 14 horas diária de produção própria. Deste total, 3 horas são reservadas ao jornalismo, a principal fonte de polêmicas dentro da emissora. “Nosso jornalismo não é chapa branca”, diz Mendonça.

JORNALISMO PÚBLICO – Osvaldo Martins, ombudsman da Cultura, é contratado exclusivamente para analisar o jornalismo produzido pela emissora. Primeiro e único ombudsman da televisão brasileira, detêm mandato de 2 anos e não pode ser demitido. Martins esclarece que “a única realização de Marcos Mendonça no jornalismo foi a reformulação do cenário do Roda-Viva, em dezembro de 2004”. E prossegue: “A minha crítica principal é que realmente não acontecia nada. Houve novas estréias, mas no jornalismo nada”. Após diversos adiamentos, a direção finalmente apresentou a última novidade.

São três telejornais: “Cultura Meio-Dia”, “resumo do noticiário do dia”, “Jornal da Cultura”, de caráter “didático” e “Cultura Noite”, “reflexivo”. Houve alteração de 50 minutos para três horas diárias dedicadas ao jornalismo. A emissora ainda terá colaboradores em Paris, Londres e Buenos Aires. Segundo o diretor de Jornalismo, Albino Castro, que assumiu o cargo há menos de três meses, o objetivo é “investir, cada vez mais, num jornalismo com qualidade e credibilidade, marcas já consagradas pela TV Cultura”.

A faixa das 21 horas, porém, ganhou atenção especial. Os programas são voltados exclusivamente para o entretenimento, com Cartão Verde, Cultura Mundo, Vitrine, Silvia Poppovic e Planeta Cidade, de Cesar Giobbi, que convidou Hebe Camargo para ser a estrela do primeiro programa, em novembro de 2005. “Eles fazem parte de um projeto de enfoque generalista. Posso fazer um programa com a Silvia Poppovic discutindo comportamento e também assistir um documentário sobre meio ambiente da BBC. Por que não?”, indaga Mendonça.

A insatisfação dos telespectadores tradicionais da Cultura já provocou a queda de pelo menos um projeto de “enfoque generalista”. Mendonça nega a hipótese de que o programa de entrevistas idealizado por ele e que teria no comando o ex-secretário da Educação de São Paulo, Gabriel Chalita, tivesse conotação política. “Além de secretário de Estado, ele é um comunicador e a idéia era fazer um programa sobre educação. Como surgiram as críticas, resolvemos cancelar”.

MAIS DO MESMO – A estréia dos novos telejornais não contribuiu para arrefecer as críticas à cobertura da emissora. Para Nilton de Martins, do Sindicato dos Radialistas do Estado de São Paulo, devido à orientação política da direção-executiva e do atual governo do Estado, não é possível acreditar numa mudança de rumos no telejornalismo.

“A Cultura é, em tese, independente do Estado, mas necessita dele financeiramente. Apesar de ser uma fundação de direito privado, nasceu com uma concepção de ser mantida pelos cofres públicos, não voltada aos interesses do mercado, que são contrários aos interesses públicos” diz.

Nilton exemplifica a contradição originária das sucessivas crises surgidas, que segundo ele, impede transformações dentro do modelo vigente. “O discurso do governo é que a TV Cultura tem que andar com as próprias pernas. O que é isso se não jogar para o mercado?”

Para o ombudsman, o jornalismo da Cultura “melhorou”, mas ainda “falta ousadia”. “Não há ingerência nenhuma do PSDB, é um mito”, diz. Osvaldo Martins, ex-secretário de Comunicação do Governo do Estado de São Paulo entre 1999 e 2001, também relativiza a noção de “jornalismo público”, cunhado pelo ex-presidente Cunha Lima. O “jornalismo público” teoriza sobre um suposto jornalismo independente do “poder” e do “mercado”. “Todo jornalismo é público. Nunca entendi esse rótulo, é quase uma redundância. Os comerciais podem ajudar a TV pública a ser mais independente. O que acontece no brake não preocupa o jornalismo.”

PUBLICIDADE INFANTIL PARA ALAVANCAR A AUDIÊNCIA – A programação infantil é, historicamente, a área de maior destaque da TV Cultura. Só no período de 89 a 91, foram onze prêmios nacionais e internacionais. O sucesso de crítica acompanhou o reconhecimento do público. Durante os anos “áureos”, índices de audiência até então nunca observados na emissora levaram o canal a ocupar o terceiro lugar no Ibope da Grande São Paulo, atrás de Globo e SBT. Os carros-chefes da guinada foram os programas “Rá-Tim-Bum” e o “Mundo da Lua”.

“Descobrimos que a Cultura tem uma marca muito forte com as crianças. Ativamos isso violentamente na nossa gestão”, orgulha-se Mendonça. Foi criado o canal a cabo TV Rá-Tim-Bum, braço da TV Cultura na televisão por assinatura, por meio da TVA. Entre os anunciantes, destaque para as Casas Bahia, Perdigão, Brinquedos Estrelas e Adams, que também pagam para divulgar seus produtos nas redes comerciais. Na Cultura, gera polêmica o repertório encabeçado por propaganda de lingerie, liquidação de eletrodomésticos e exportadores de soja.

“A TV Cultura está aberta à publicidade. Não fazemos propaganda de bebida alcoólica, de apelo erótico, violenta e nossos personagens não podem ser utilizados. Todos os produtos antes de irem ao ar são avaliados pelo Comitê de Propaganda e Marketing, que finca as diretrizes”, explica Mendonça.

Nilton de Martins contesta a afirmação de Mendonça. “A TV Cultura faz propaganda do Danoninho, e diz que o produto pode substituir um prato de arroz e feijão. Isso é totalmente condenado por qualquer pediatra. Como pode ser isento assim?”, indaga Nilton. Um funcionário da Cultura, que prefere não ser identificado, confessa sofrer pressões do Comitê de Propaganda e Marketing para elevar a audiência. “Se o programa der ‘traço’, o pessoal do marketing pressiona e pergunta o que está acontecendo”.

Mendonça encontrou resistências onde menos esperava. O Ibope da Cultura segue inalterado. Apesar dos inúmeros esforços da direção, a média geral de audiência gira em torno de um ponto. “A audiência ainda não teve o prazo suficiente para ser aferida. Mesmo assim, temos tido respostas, recebemos cartas e e-mails positivos”, desconversa.

PARCERIAS E PATROCÍNIOS – As mudanças promovidas por Marcos Mendonça e sua equipe fazem parte de um amplo projeto de reorientação das atividades da TV Cultura, que modifica a relação com os parceiros tradicionais e incrementa a captação de recursos externos para melhorar a audiência. Um dos acordos já está no ar. ‘Cultura Mundo’, uma série de documentários que utiliza a dramaturgia como reconstituição dos fatos, ‘Planeta Azul’ , ‘Testemunha Silenciosa’ e ‘Dupla Identidade’ fazem parte da parceria assinada entre o presidente da Cultura e o diretor da BBC nas Américas, José Sánchez. O contrato prevê ainda um seminário internacional de TV pública, a ser realizado em setembro, em São Paulo.

Outra empresa beneficiada com uma parceria é a editora Abril. O projeto, ainda em debate, estipula que as revistas Capricho, Mundo Estranho, Superinteressante, Bizz e Flashback estarão diariamente na TV Cultura. Editadas pela Abril, o conteúdo das publicações de segmento jovem seria adaptado para a televisão. Além das parcerias, a Cultura investe na prestação de serviços, através da TV Justiça, TV Assembléia e TV Câmara. Também foi criada a Cultura Marcas, para o licenciamento de produtos próprios.

“Não recebemos nenhum tostão do Governo Federal em anúncios. Em outros países, há realmente verbas substanciais, porque acreditam no papel da televisão pública como formadora do cidadão. Nos sentimos discriminados”, protesta Mendonça. A TV Cultura teve, em 2005, verba publicitária de R$ 80 milhões vinda do governo de São Paulo e R$ 40 milhões provenientes de receita própria. Mendonça espera aumentar em 20% a receita própria de publicidade em 2006.

SEM IDENTIDADE – Para Sérgio Mamberti, secretário da Identidade e da Diversidade Cultural do Minc, o problema não se restringe aos novos comercias ou às pressões exercidas pela audiência. Há falta de qualidade, “a marca registrada da Cultura”. “A diversidade cultural é tratada insuficientemente em toda a programação da Cultura”, analisa. “Ainda tem alguns elementos da cultura regional, como a música sertaneja, mas falta a cultura indígena e GLBT”.

Ele também critica as conseqüências da reestruturação imposta. “O Cunha Lima já tinha começado a fazer inserções comerciais, mas não era tão ostensivo como o Marcos Mendonça. Hoje, assistindo a Cultura, você pensa que está numa emissora comercial qualquer. Ele foi longe demais”, afirma.

Mamberti observa um erro estratégico na Cultura, pois embora ela não seja uma “emissora pública”, “desempenhou o papel de uma”. “A Cultura transmite o Castelo Rá-Tim-Bum até hoje, mas nunca mais investiu. É uma pena que se corte um programa deste nível. Tivemos 10% de audiência no Ibope. Tanto a burguesia, assim como a aldeia indígena que conheci, elogiavam o programa”.

Mamberti participou do início das atividades da emissora, com o teleteatro “Amores e Licores”, de 1969, sob a direção de Antonio Abujamra. “Como cidadão, tenho uma afetividade muito grande com a Cultura. Ainda sou conhecido como o Doutor Vítor do Castelo Rá-Tim-Bum”. O Ministério da Cultura tem uma parceria de produção com a Cultura, através do DOC.TV.

NA CONTRAMÃO – O exemplo do programa “Entrelinhas”, que mistura literatura com televisão, vai à contramão do contexto geral vivido pela emissora. A idéia é divulgar novos autores e difundir o hábito da leitura sem utilizar a linguagem didática. Criado em julho do ano passado para cobrir a Festa Literária Internacional de Parati (FLIP), o “Entrelinhas” completa um ano no ar.

“Nunca teve claro no Brasil uma literatura popular de alcance nacional, só a televisão consegue isso. Para muita gente a literatura é chata, para outros qualquer assunto que for tratar na televisão vai ficar banal. O ‘Entrelinhas’ não é só educativo, é muito mais amplo, tem outras preocupações”, diz Ivan Marques, idealizador e diretor do programa.

Há 13 anos na Cultura, já foi editor-chefe do Metrópolis de 1993 a 2005. Diz ter “cavado” aos poucos o espaço dentro da emissora. “Sei que, mesmo na Cultura, o programa é uma exceção, tende a desaparecer”, prevê Marques. O “Entrelinhas” tem um espaço reduzido dentro da Cultura, sua duração é de 20 minutos, duas vezes por semana. Para se sustentar, recorre a um patrocínio externo, da Imprensa Oficial, que custeia os gastos de toda a equipe.

Matéria publicada originalmente pela Agência Carta Maior, e reproduzida por copyleft

Maurício Reimberg


editor

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