Ao que tudo indica sim, não apenas por conta da pandemia. Mas por reflexo direto de uma grande sabotagem à lei federal de incentivo à cultura ocorrida ao longo de 2020, com maior evidência no final do ano.

Sem investimentos diretos do governo, sem uma política pública digna para a cultura, não resta outra opção a produtores além do incentivo fiscal. Claro que o mecenato da forma como ocorre no Brasil já não era justo, inclusivo e abrangente. Já é um mecanismo excludente, que não alcança todas as necessidades do setor, não chega aos iniciantes, amadores, periféricos e tampouco a quem está fora do eixo RJ-SP por uma série de fatores. Apesar de deixar muita gente de fora, o mecanismo vinha sendo a única tábua de salvação para muitos produtores independentes, bem como para grandes corpos artísticos e instituições culturais.

Em 2020, o que presenciamos foi uma lentidão na aprovação de projetos na lei federal de incentivo à cultura que se consolidou ao final do ano como uma sabotagem explícita, para impedir que os projetos conquistassem patrocínios: contribuindo para uma redução drástica no número de projetos aprovados e na viabilização de patrocínios. O histórico é, resumidamente, o seguinte:

1. lentidão das análises ao longo do ano, com redução do número de pareceristas (139 foram demitidos, quando apenas 25 foram contratados);

2. exoneração do gestor mais experiente da área, o sério e comprometido Odecir Prata da Costa;

3. além da morosidade na avaliação – há um prazo previsto pela Instrução Normativa que regulamenta a lei que não vem sendo respeitado – proponentes diversos relatam o recebimento de diligências idênticas, propositadamente repetidas para que a Secretaria de Cultura ganhe mais prazo, bem como diligências “picadas”, falando de um mesmo assunto em diferentes ocasiões ao invés de abordarem todas as questões num mesmo diligenciamento. Mais que isso: solicitações abusivas a título de “novos entendimentos da secretaria” sobre pontos nebulosos da legislação ou das últimas INs e arquivamento sem justificativas plausíveis de projetos daqueles proponentes mais experientes, que tinham melhores condições de cobrar, questionar e exigir celeridade nas suas avaliações.

Ao final do ano, quando os aportes de recursos das pessoas jurídicas se intensificam, o saldo era de CENTENAS de projetos com patrocinadores interessados mas sem as devidas aprovações ou pior, projetos aprovados, sem a abertura de contas para depósito (as contas correntes exclusivas de projetos incentivados são sempre abertas pelo próprio governo e os patrocinadores só podem efetivar seu investimento e consequente benefício fiscal aportando nessas contas específicas).

O caso chegou à opinião pública. Matérias foram publicadas em grandes mídias de alcance nacional e o governo se limitou a publicar notas em redes sociais com as suas “justificativas”.

As desculpas governamentais são pífias e ilusórias:

– a principal justificativa do governo é que existe um passivo na prestação de contas de projetos e, por essa razão, o governo precisaria reduzir o número de projetos aprovados para reduzir a quantidade de análises de prestações de contas: uma coisa não tem nada a ver com a outra, essa atitude simplesmente não resolve o passivo da prestação de contas, pois são setores e funcionários diferentes que cuidam de uma coisa e outra; o passivo de prestação de contas não analisadas precisa de medidas que simplifiquem a prestação de contas, de melhoria nas condições e no sistema para tal e de uma equipe maior para essa gestão. Reduzir o número de projetos aprovados não significa um impacto imediato e nem de médio prazo nas prestações de contas, até porque não há garantias de que os projetos aprovados irão captar; outra questão é que não é culpa do produtor proponente haver uma demanda de milhares de projetos não alisados, ele não pode ser punido por erros da gestão (atual e anteriores). Essa medida apenas trava a cultura em momento em que já está sofrendo muito, fortemente impactada pela pandemia.

– priorização do setor de patrimônio e museus: o governo diz que dará prioridade na análise a projetos desses setores. Uma falácia para criar uma imagem menos negativa. Para quem está de fora e não conhece o setor, não enxerga o desmonte que vem sendo realizado nesta área desde que o Governo atual assumiu, parece uma troca justa. Reduzem os projetos temporários para investimento em projetos perenes. Só que os principais órgãos ligados ao patrimônio e memória vêm sendo destruídos nesta mesma gestão, com cargos sendo distribuídos a pessoas incompetentes e que jamais tiveram experiência na área, orçamentos sendo contingenciados e cortados de forma drástica, nenhuma prioridade, investimento ou política sendo pensada ou providenciada de fato para o setor. Esse discurso apenas comprova a premeditação da falência da lei de incentivo, pois uns meses atrás o governo federal lançava campanha ressaltando a importância da nossa memória, sem anunciar porém nenhum programa ou medida, apenas uma publicidade que hoje se compreende qual a função: legitimar para os leigos e a maioria da sociedade, a falsa boa intenção por trás da extinção – na prática – da Rouanet. E haverá quem compre. Além disso, é ilegal uma normativa alterar a lei, o que de fato acontece neste caso, uma vez que a lei de incentivo é clara em sua abrangência a todos os setores culturais: artes visuais, artes cênicas, música, audiovisual e tantos outros segmentos artísticos precisam ser contemplados por lei.

As reações do setor foram diversas: desde notas de repúdio, matérias divulgadas pela imprensa, até liminares e processos judiciais, bem como tentativas de apoio junto aos parlamentares (sem sucesso por enquanto), porém mesmo assim, centenas de projetos não conseguiram vencer a burocracia e se nada mudar até 30/12/2020 perderão seus patrocinadores e um montante relevante de recursos poderá deixar de ser aplicado na cultura.

Seria positivo que a cultura tivesse que se forçar a enxergar outras fontes de financiamento? Diante de uma sociedade que não reconhece a cultura como investimento, muito menos como setor prioritário, a realidade é que essa extinção velada e abrupta dos recursos da lei de incentivo – que tem sido o único recurso e alternativa, portanto, para a área – podem significar na prática, um apagão no setor, ainda mais em tempos de pandemia.


contributor

Produtor Cultural, atua com leis de incentivo para cultura e outras do Terceiro Setor. Fã de HQ.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *