As ilegalidades do processo que culminou na publicação do decreto sobre a implantação da TV Digital no Brasil

Um decreto durante a Copa – Em 29 de junho, durante a Copa do Mundo, e dias após ser obrigado pela legislação eleitoral a se assumir candidato à reeleição, o presidente Lula assinou o Decreto 5.820/06 (leia em www.indecs.org.br) que implanta o Sistema Brasileiro de Televisão Digital Terrestre (VHF e UHF).

Ao lado de Lula estavam os ministros Dilma Roussef (Casa Civil), Hélio Costa (Comunicações), Luiz Fernando Furlan (Indústria e Comércio) e Sérgio Rezende (Ciência e Tecnologia). Gilberto Gil, que já tornara pública sua discordância com os rumos propostos pelo ministro Hélio Costa, não compareceu à cerimônia por estar de férias. E tampouco teve seu nome (ou de seus assessores) lembrado pelo presidente nos agradecimentos finais.

Vários coordenadores de projetos de pesquisa financiados no âmbito do SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital) também não estiveram presentes. E, o mais notável, não foi citada a Fundação CPqD, que ficou responsável por confeccionar os relatórios que deveriam embasar a decisão final do governo.

Já a Globo preferiu não aparecer em público ao lado de um decreto que ela tanto defendeu e deixou Roberto Franco, do SBT, falar em nome dos radiodifusores.

O que o decreto diz – O pequeno decreto que implanta a TV Digital aberta no Brasil apresenta poucas definições e remete boa parte das medidas a serem tomadas para uma futura regulamentação.

O decreto determina que o Brasil será o segundo país do mundo a usar a tecnologia japonesa ISDB. Antes dele, apenas o Japão empregava tal modulação. Este foi um pleito das emissoras que alegavam que o ISDB tinha se saído melhor nos testes de campo realizados pela Universidade Mackenzie (embora nenhum dos três padrões testados tenha conseguido ser captado por 100% dos pontos de recepção) e que somente o ISDB era capaz de segmentar o espectro (escondendo que a tecnologia brasileira chamada Sorcer também realizava o mesmo processo). O ISDB permite manter a estreita relação comercial entre a maior emissora brasileira e os fornecedores japoneses de equipamentos eletrônicos (especialmente NEC e Sony).

O ponto mais polêmico do decreto é a “consignação” de uma faixa extra de espectro para cada emissora (geradora e retransmissora) existente. A figura da consignação pressupõe que se trata do mesmo serviço prestado pela TV analógica, que agora demandaria uma faixa extra para continuar a ser oferecido. Na prática, contudo, o decreto permite que novas outorgas sejam dadas aos atuais radiodifusores sem que a decisão passe pelo Congresso Nacional. Isso porque alta definição, multiprogramação e interatividade claramente constituem um novo serviço, diferente da atual radiodifusão analógica.

Se cada emissora receber uma outorga nova (agora disfarçada de “consignação” de faixa extra do espectro), segundo o Plano Básico de Distribuição de Canais de Televisão Digital (PBTVD), da Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) e citado pelo próprio decreto, não haverá espaço para novos canais de TV durante o processo de transição (que o decreto prevê que dure 10 anos), pelo menos nas áreas metropolitanas de São Paulo e Rio de Janeiro.

O que o decreto não diz – Apesar de já se definir pela escolha da modulação japonesa, o decreto nada menciona sobre quais tecnologias nacionais serão incorporadas (embora fique óbvio que as pesquisas brasileiras em modulação serão desperdiçadas, em troca da adoção da modulação japonesa).

Também não há definições sobre a política industrial que tornará possível a TV Digital no Brasil. Não ficou definido se (e como) haverá transferência de tecnologia e os critérios para pagamento de royalties. Nem mesmo a tão falada fábrica de semicondutores foi mencionada.

Como o decreto entrega todo um novo canal para cada emissora existente e não menciona a proibição à multiprogramação, nada impede que os radiodifusores ocupem este espaço com várias programações simultâneas. Assim, ao invés de termos um canal ocupado por quatro novas emissoras, poderemos ter 4 Bandeirantes, 4 RedesTV, 4 CNTs, 4 Records, 4 SBTs e 4 Globos, por exemplo. Ao invés de diversidade, mais do mesmo.

O decreto prevê que as emissoras usem a interatividade como um serviço de valor agregado às suas programações. Mas o decreto não obriga que esta interatividade seja gratuita. O que significa permitir que as emissoras façam acordos com as operadoras de telecomunicações em torno do acesso ao canal de retorno pago, criando, em relação à TV aberta, dois tipos de cidadãos: aqueles que podem pagar pela interatividade e aqueles que continuarão com uma TV unidirecional.

Toda a gama de novos serviços que poderiam estar disponíveis na TV digital (como educação à distância, tele-medicina, e-mail, governo eletrônico e e-bank, por exemplo) terá que dividir espaço com as emissoras dos poderes públicos e as entidades da sociedade civil no canal chamado “de cidadania”. E apenas nas cidades onde houver espaço disponível no espectro de UHF.

As ilegalidades do processo que culminou no decreto – O decreto desrespeita em vários pontos o decreto anterior sobre a TV Digital (4.901/03), demonstrando claramente uma mudança de rumos do governo Lula em relação ao tema.

O artigo 3° do decreto 4.901/03 previa a apresentação, pelo Comitê de Desenvolvimento, de um relatório com propostas sobre: 1) o modelo de referência; 2) o padrão tecnológico; 3) a forma de exploração; 4) o período e o modelo de transição. Até hoje não se sabe se tal relatório ao menos chegou a ser feito, já que o governo jamais divulgou nada a respeito. O que se torna ainda mais grave na medida em que o decreto 5.820/06 não possui nem exposição de motivos nem justificativa.

O artigo 5° do mesmo decreto previa que o Conselho Consultivo (formado por representantes da sociedade civil) deveria propor “as ações e diretrizes fundamentais relativas ao SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital)”. Apesar de vários pedidos formais das entidades que o integram, o Conselho Consultivo deixou de ser convocado pelo ministro Hélio Costa desde novembro de 2005 e jamais pôde se pronunciar sobre as decisões tomadas pelo governo.

Os princípios – O artigo 1° do decreto 4.901/03 define os princípios do SBTVD, que continuam válidos até o momento. No novo decreto editado pelo governo não há a intenção de garantir nenhum destes princípios, o que causa uma contradição entre os dois instrumentos legais.

O Decreto 4.901/03 define como princípios, entre outros:

I – promover a inclusão social, a diversidade cultural do País e a língua pátria por meio do acesso à tecnologia digital, visando à democratização da informação;

II – propiciar a criação de rede universal de educação à distância;

III – estimular a pesquisa e o desenvolvimento e propiciar a expansão de tecnologias brasileiras e da indústria nacional relacionadas à tecnologia de informação e comunicação;

IX – contribuir para a convergência tecnológica e empresarial dos serviços de comunicações;

XI – incentivar a indústria regional e local na produção de instrumentos e serviços digitais.

O acordo secreto – Segundo o artigo 49 da Constituição Federal, qualquer acordo internacional firmado pelo governo, e que venha a representar ônus, deverá ser referendado pelo Congresso Nacional.

A escolha do ISDB (o padrão japonês) passará necessariamente por financiamentos do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), por políticas de isenção fiscal e até de crédito ao consumidor. Portanto, haverá ônus.

Baseado neste raciocínio, os deputados Luiza Erundina (PSB-SP) e Orlando Fantazzini (PSOL-SP) solicitaram formalmente que o governo remeta uma cópia do acordo firmado com os japoneses à Comissão de Ciência, Tecnologia, Comunicação e Informática (CCTCI) da Câmara dos Deputados.

Até o momento, porém, o acordo permanece secreto.

O processo democrático – Uma decisão desta magnitude, capaz de alterar profundamente o principal meio de comunicação da atualidade, deveria ser debatido com a sociedade. Afinal, a TV brasileira interfere diretamente na condução da política, da economia e dos processos culturais do país.

Contudo, o tema jamais foi alvo de audiências públicas e a decisão do governo não foi remetida à consulta pública.

As ilegalidades do próprio decreto – O artigo 5° do Decreto 5.820/06 não define quais serão as inovações tecnológicas brasileiras a serem incorporadas pelo SBTVD e nem quando elas serão adotadas. Portanto, não está garantido o cumprimento do inciso III do artigo 1° do Decreto 4.901/03 (ainda em vigor) que fala explicitamente no desenvolvimento de tecnologias e da indústria nacional.

Interatividade

O artigo 6° do decreto 5.820/06 prevê a interatividade como parte do SBTVD. Mas um decreto presidencial não pode se sobrepor à Constituição Federal e à lei aprovada pelo Congresso Nacional.

A Emenda Constitucional n° 3, na época defendida pelos próprios radiodifusores, alterou o inciso XII do artigo 21 da Constituição Federal, separando radiodifusão de telecomunicações.

E a Lei 4.117/62 define a radiodifusão como “serviço destinado a ser recebido direta e livremente pelo público em geral”.

Portanto, a interatividade não faz parte dos serviços possíveis de serem prestados pela radiodifusão, o que torna o decreto não só ineficaz, mas também ilegal.

Outorga disfarçada

O artigo 7° do decreto 5.820/06 é de todos o mais grave, ao permitir que o Executivo se sobreponha ao Legislativo na sua tarefa de outorgar novas concessões de TV, utilizando a figura da “consignação” de “faixa extra” do espectro para o mesmo serviço atualmente prestado pelas emissoras. Ocorre que esta nova “faixa extra” transmitirá em alta definição e para recepção móvel, podendo transmitir várias programações simultaneamente e com serviços interativos. Claramente, não se trata do mesmo serviço prestado até então pela radiodifusão analógica. É um novo serviço (por isso, justamente, a existência deste decreto) que demandaria novas outorgas.

Caso haja a “consignação” de um canal inteiro de 6 MHz para cada concessionária, autorizada e permissionária existente, de acordo com o Plano Básico de Distribuição de Canais de Televisão Digital (PBTVD), não haverá, nas áreas metropolitanas do Rio de Janeiro e São Paulo, a possibilidade do “ingresso de novas empresas”, mencionado no inciso VI do artigo 1° do decreto 4.901/03.

A “consignação” de novos canais não leva em conta a regulamentação dos artigos 220 a 223 da Constituição Federal. Ou seja, a radiodifusão segue sem ser regulamentada e agora podendo dispor de um maior espaço no espectro eletromagnético e prestar novos serviços.

Já, de acordo com o artigo 10 deste decreto, ao fim do período de transição (fixado em 10 anos), as emissoras terão que devolver o canal que lhes foi outorgado e ficarão com o canal consignado. Com esta prática, o decreto assume que não se trata de “faixa extra” (porque sobreviverá ao final das transmissões analógicas) e sim de uma nova concessão. E, ao mesmo tempo, cria-se uma situação insólita de retomada da concessão enquanto se mantém o uso da “consignação”.

Anatel

Conforme os artigos 19, 158 e 211 da Lei 9.472/97 (Lei Geral de Telecomunicações – LGT), é a Agência Nacional de Telecomunicações (Anatel) a responsável por administrar o espectro de radiofreqüências. Portanto, no artigo 8° do decreto 5.820/06, a responsabilidade de divulgar o cronograma de consignações dos novos canais para as atuais emissoras deveria ficar a cargo da Anatel e não do Ministério das Comunicações.

De graça

Segundo o artigo 48 da LGT, a outorga de serviços de telecomunicações “será sempre a título oneroso” e fica autorizada a cobrança do Fistel (Fundo de Fiscalização das Telecomunicações) e da TFF (Taxa de Fiscalização de Funcionamento). Portanto, o expediente da “consignação” representa, também, a cessão gratuita de bem público e finito para ente privado.

Inclusão digital?

Todo o potencial de inclusão que a TV Digital possui (e-mail, governo eletrônico, tele-medicina, educação à distância, e-bank, etc) fica resumido à expressão “governo eletrônico”, que, de acordo com o decreto, ocupará apenas uma fração do canal “de cidadania”. Com isso, não se garante o cumprimento do inciso I do artigo 1° do Decreto 4.901/03, que fala explicitamente em “promover a inclusão social” e o inciso II do mesmo artigo que cita a criação de uma “rede universal de educação à distância”.

Canais da União

Se o governo não está passando por cima do Congresso Nacional e outorgando canais sem a devida licitação, mas apenas consignando “faixa extra” para os canais já existentes, como o decreto 5.820/06, no seu artigo 13, pode falar em consignação de quatro novos canais para a União? Se estes canais não existem atualmente, como podem receber uma faixa extra?

Gustavo Gindre


editor

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