A Proposta de Emenda à Constituição 98/2007 – também conhecida como PEC da Música – está em processo de aprovação no Congresso Nacional. Trata-se de uma demanda dos profissionais da música – intérpretes, compositores, músicos, técnicos e produtores – em resposta às assimetrias tributárias existentes no Brasil no setor musical.
A primeira assimetria diz respeito ao tratamento desigual de bens culturais: enquanto livros, periódicos, revistas e jornais são imunes de impostos, CDs e DVDs sofrem uma pesada tributação. Sendo ambos veículos que fazem circular cultura pelo país, tal discriminação não se justifica.
Um segundo aspecto relevante diz respeito à incidência de impostos dentro do próprio setor. Em razão de particularidades brasileiras, a produção nacional tem tratamento tributário desfavorável se comparada a grandes produções internacionais. Expressões importantes da nossa cultura produzidas localmente, como a de música folclórica e a de música instrumental, por exemplo, pagam no Brasil mais impostos que discos do Black Eyed Peas.
O que causa tal distorção é a combinação de uma legislação tributária ultrapassada com um modelo econômico concentrador. Neste modelo, as grandes fábricas que produzem CDs e DVDs, instaladas na Zona Franca de Manaus, tornaram-se também grandes distribuidores de produtos fonográficos. Extrapolando sua atuação na indústria, tais empresas passaram a comercializar diretamente os produtos gravados, deflagrando um quadro em que os papéis de fornecedor e concorrente comercial se confundem. Uma situação concorrencial ‘sui generes’, para dizer o mínimo. Além disso, graças a um benefício fiscal extra concedido pelo governo do Amazonas, estas indústrias ainda recuperam impostos pago pelos seus clientes de outros estados, agravando as desigualdades.
Do outro lado, os produtores nacionais, espalhados por todo o país, batem-se contra uma carga tributária esmagadora. Responsáveis conjuntamente por mais lançamentos que as multinacionais do disco em seu conjunto, os produtores independentes enfrentam dificuldades para fazer circular sua produção. A exigência do pagamento antecipado de impostos (ICMS – substituição tributária) engessa de tal modo a circulação das produção locais que, se um produtor independente emplacasse um sucesso nacional, ele quebraria em razão dos impostos a pagar, antes mesmo de receber um centavo pelas vendas. Em outras palavras, o modelo tributário vigente desestimula a cadeia produtiva independente formal, justamente aquela com maior potencial de geração de emprego, renda e diversidade.
A aprovação da PEC da Música acaba com esta situação esdrúxula, estimulando a atuação de produtores em todo o país. Veja abaixo o teor do texto aprovado (alínea ‘e’):
“Art. 150 – Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
(…)
VI – instituir impostos sobre:
(…)
e) “Fonogramas e Videofonogramas musicais produzidos no Brasil, contendo obras musicais ou lítero-musicais de autores brasileiros, e/ou obras em geral interpretadas por artistas brasileiros, bem como os suportes materiais ou arquivos digitais que os contenham, salvo na etapa de replicação industrial de mídias ópticas de leitura a laser”.
Como se percebe, o texto preserva a vantagem competitiva da Zona Franca no que diz respeito à industrialização de mídias digitais, mas equipara os produtores de todos os Estados no que se refere à circulação da produção. Concluímos então que, para além das questões tributárias, a emenda contribui enormemente para a preservação da diversidade cultural brasileira. Além disso, ao incluir os arquivos digitais, a proposta também mostra sintonia com os novos tempos da internet e das redes sociais.
Aproveitamos aqui a oportunidade para comentar o texto de autoria do Presidente da OAB-RJ, Wadih Damous, publicado no Jornal O Globo (6 de janeiro de 2012), sobre a PEC. Em seu artigo, Damous expressa apoio à aprovação da proposta, mas revela preocupações quanto a aspectos não alcançados por ela, como o da remuneração digna dos músicos brasileiros, dos contratos leoninos praticados por algumas gravadoras e a questão da distribuição de direitos autorais.
Realmente, a PEC 98/2007 não possui o condão de resolver todos os problemas do setor. Podemos apontar uma extensa Pauta da Cultura, ainda longe de ser resolvida, como a aprovação do Vale-Cultura, as reformas das leis Rouanet e a de Direitos Autorais, a questão da meia entrada, os direitos trabalhistas, sociais e previdenciários dos profissionais da música (aqui incluídos os trabalhadores técnicos), a questão da remuneração na internet, os problemas enfrentados no transporte aéreo instrumentos musicais, etc, etc, etc. Será preciso muito empenho do governo e a participação de toda a sociedade para cuidar satisfatoriamente desta extensa e importante pauta.
Mas a expressiva votação alcançada em 13 de dezembro de 2011, na aprovação em segundo turno da PEC da Música na Câmara dos Deputados (393 votos a favor e apenas 06 contra), demonstra o claro entendimento de que os problemas precisam ser enfrentados. Afinal, entre as funções precípuas do Estado brasileiro, inclui-se a preservação de nossa diversidade cultural e o incentivo à produção criativa, em todas as regiões do país.
A Economia da Cultura, para além de seu aspecto econômico, é fundamental por seu viés simbólico, moldando o traço distintivo de nossa sociedade perante o mundo. O Brasil atravessará nos próximos anos um período inaudito de desenvolvimento e protagonismo no cenário internacional. Neste sentido, a aprovação da PEC 98/2007 representa um avanço decisivo no fortalecimento de nossa identidade brasileira, em toda sua diversidade, criatividade e excelência técnica.
*Artigo escrito com Felipe Radicetti, Vice-Presidente da MusimagemBrasil