Uma análise jurídica dos principais pontos do decreto que altera a lei de incentivo à cultura mais utilizada no país: “as alterações promovidas pelo Decreto voltam-se primordialmente aos produtores culturais”

Desde 28 de abril de 2006, a Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91) passou a ter uma nova regulamentação. Trata-se do decreto n° 5.761/06, formulado no âmbito do Ministério da Cultura e que visa a conferir nova roupagem para um sistema que, desde a promulgação da Lei em 1991, tem se revelado o mais importante para o financiamento da atividade cultural no Brasil.

Da leitura de seu texto depreende-se, de imediato, que o novo Decreto objetiva ajustar a realidade da utilização dos incentivos fiscais à política cultural do Governo Federal e, ao mesmo tempo, corrigir algumas das distorções verificadas – e amplamente difundidas – no manejo da legislação nestes quase 15 anos de existência.

Antes de qualquer consideração cabe adiantar que, como não poderia deixar de ser, a edição do Decreto não altera o conteúdo da Lei naquilo que há de essencial, relativo aos aspectos fiscais atinentes ao benefício fruível pelos contribuintes do Imposto sobre a Renda e Proventos de Qualquer Natureza e às atividades de cunho cultural e artístico apoiadas pelo PRONAC (Programa Nacional de Apoio à Cultura, também instituído pela Lei Rouanet).

Nessa linha, pode-se dizer que, tendo em vista o tripé Estado / Produtores Culturais / Patrocinadores (contribuintes de IR) sobre o qual se estrutura o sistema de incentivos fiscais para o financiamento da cultura, as alterações promovidas pelo Decreto voltam-se primordialmente aos produtores culturais, aos quais impôs-se exigências de ordem técnica que visam à adequação dos projetos submetidos ao crivo do MinC à política cultural por este estabelecida.

São exemplos destas exigências os critérios de acessibilidade previstos pelo art. 27 e respectivos incisos do novo Decreto. De acordo com tais disposições, passa haver previsão regulamentar expressa de que “dos programas, projetos e ações realizados com recursos incentivados, total ou parcialmente, deverá constar formas para a democratização do acesso aos bens e serviços resultantes” (art. 27, caput). Referida democratização, nos termos dos incisos do mesmo art. 27, revelar-se-á mediante diminuição dos preços e ampliação das condições de acessibilidade a deficientes físicos, dentre outras possibilidades, nos eventos produzidos com recursos oriundos de renúncia fiscal pelo Poder Público.

Com efeito, trata-se de inovação interessante, e que em nosso entendimento não ultrapassa os limites do Poder Regulamentar de competência do Poder Executivo: ao contrário, a própria Constituição Federal, em seu art. 215, estabelece que “o Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e acesso às fontes da cultura nacional, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão das manifestações culturais”. Dessa forma, as imposições do Decreto apenas vem para dar concreção à disposição constitucional, restando inequívoca sua legalidade e, a bem da verdade, sua oportunidade – em vista de grandes distorções evidenciadas pela utilização de recursos sem qualquer tipo de ampliação do acesso da sociedade aos resultados gerados.

Mas há pontos de menor tranqüilidade. Com efeito, o PRONAC estrutura-se sobre três mecanismos distintos: Fundo Nacional de Cultura – FNC, Mecenato (incentivos fiscais) e os Fundos de Investimento Cultural e Artístico – FICART, sendo certo que, no tocante à natureza destes mecanismos, verifica-se importante gradação da participação pública em cada um deles, visando ao estímulo da sociedade para que participe ativamente dos processos de financiamento da cultura. Sob este prisma, o FNC é um fundo de natureza pública por excelência, enquanto os FICART, na outra ponta, são geridos com recursos 100% privados (sem qualquer incentivo fiscal, diferentemente de outros fundos atualmente existentes, como os FUNCINE).

Contudo, o novo Decreto, ao regulamentar os FICART, traz em seu bojo disposição que abre espaço para grande discussão, em seu art. 21, segundo o qual “o Ministério da Cultura, em articulação com a CVM, definirá regras e procedimentos para acompanhamento de fiscalização da execução dos programas, projetos e ações culturais beneficiados com recursos do FICART”.

A questão que se impõe, aqui, é saber se o MinC teria competência para promover qualquer fiscalização em relação à atuação de um fundo de investimentos exclusivamente privado, constituído e regulamentado segundo normas específicas. Mais que isso, resta indagar quais os efeitos que um dispositivo desse tipo pode ter sobre a atuação dos agentes privados, em vista da insegurança gerada por um comando normativo que, abrindo a possibilidade de ulterior fiscalização, sequer aponta os critérios, limites ou orientação que tal fiscalização deverá observar.

Em nosso entendimento, referida fiscalização revela-se descabida, e afirmamos isso na medida em que tal disposição contraria as disposições da Lei Rouanet, se não um artigo ou dispositivo específicos, com certeza a sistemática estabelecida por ela para o financiamento da cultura.

Com efeito, a Lei Rouanet, em seus arts. 8º a 17, institui os FICART e estabelece as diretrizes fundamentais para seu funcionamento; em seu art. 10, encontra-se previsão que ajudará a elucidar a questão: “compete à Comissão de Valores Mobiliários, ouvida a SEC/PR, disciplinar a constituição, funcionamento e administração dos Ficart, observadas as disposições desta lei e as normas gerais aplicáveis aos fundos de investimento”.

Atente-se, no particular, para dois aspectos: compete à CVM a disciplina da constituição, funcionamento e administração dos FICART, ouvida a SEC/PR (atual Ministério da Cultura, extinto durante o governo Collor). Quer parecer, in casu, que o texto do novo Decreto subverteu a regra de competência estabelecida pela Lei (deixando a CVM em plano efetivamente secundário); a par disso, tem-se que a competência instituída por Lei é para definição de regras para constituição, funcionamento e administração dos Fundos, e não das iniciativas econômicas (privadas, diga-se) que serão objeto de investimento.

Em outras palavras: não há que se falar em fiscalização dos projetos beneficiados com recursos dos FICART, a uma porque está-se a tratar de recursos privados, em um mecanismo que visa a privilegiar a atuação privada em prol da cultura (no âmbito do PRONAC), e a duas porque a via do regulamento é ineficaz para impor obrigações que tenham por escopo limitar ou restringir a atuação privada, sujeitando-a à fiscalização estatal. Trata-se do vital princípio da legalidade, o qual nos parece atingido pelo art. 21 do novo Decreto.

Ao lado das alterações já comentadas, as quais permitem supor que o novo Decreto traz consigo uma “aura” de ampliação do papel fiscalizador do Estado sobre os projetos culturais incentivados, merece destaque também a criação de ferramentas para ampliar a canalização de recursos do Mecenato (de longe, dentre os mecanismos do PRONAC aquele que mais recursos agrega) para as políticas do Ministério da Cultura.

Dentre tais ferramentas, destaca-se a menção expressa feita pelo novo Decreto à possibilidade de constituição de Editais – “processos públicos de seleção”, na dicção do Decreto – sejam coordenados pelo próprio MinC ou sejam formulados por empresas patrocinadoras, de forma independente.

De acordo com o novo texto (art. 5º, §2º), “as empresas patrocinadoras interessadas em aderir aos processos seletivos promovidos pelo Ministério da Cultura deverão informar, previamente, o volume de recursos que pretendem investir, bem como sua área de interesse, respeitados o montante e a distribuição dos recursos definidas pelo Ministério da Cultura”.

É bem verdade que referidos processos públicos de seleção já vinham sendo executados pelo MinC desde 2005, com forte adesão das empresas estatais (em regra, os maiores patrocinadores via Lei Rouanet). O novo Decreto, neste passo, institucionaliza o procedimento e confere supedâneo às empresas que desejarem promover seus próprios editais.

Trata-se de inovação que preserva os interesses de empresas e produtores, sobretudo destes últimos, que por meio dos editais terão acesso mais transparente às empresas, com critérios de seleção a apoio previamente definidos. Resta indagar se o MinC, no silêncio do ato regulamentar, procurará impor restrições e/ou exigências às empresas que optarem por apresentar ao MinC seus processos de seleção pública de projetos: note-se, no particular, que o §3º do mesmo art. 5º apenas obriga tais empresas a “informar” ao MinC tais iniciativas, não havendo, a princípio, qualquer exigência adicional senão aquelas já impostas à generalidade dos projetos comumente submetidos (individualmente) à apreciação do MinC.

Outra alteração que surge para desmistificar algumas das questões que atormentam os gestores de empresas e entidades que se valem da Lei Rouanet é aquela contida no art. 26 do novo texto, regulamentando a questão das despesas administrativas.

Problema bastante recorrente referia-se à classificação das ‘despesas administrativas’, isto é, aquelas que, embora não diretamente relacionadas ao objeto do projeto cultural proposto, conferiam aos proponentes de projetos a garantia de seu funcionamento durante a realização do mesmo (tais como pagamento de despesas com saneamento e esgoto, energia elétrica, folha de pagamento e afins). Em suma, a problemática residia no fato de que nem sempre o MinC classificava as despesas administrativas sob um mesmo (e único) critério, e muitas vezes negava às entidades a inclusão, nos projetos, de determinadas despesas (administrativas), sob o argumento de que não se referiam diretamente ao objeto do projeto proposto.

Desnecessário afirmar quantos problemas tal indefinição ocasionava, ora aprovando-se despesas de natureza administrativa e ora rejeitando-se tais despesas (muitas vezes, até quando não se tratavam de custos puramente administrativos, como ocorre no caso de pagamento de empregados que atuarão diretamente para a realização do projeto). Nesse sentido, o art. 26 do novo Decreto busca solução para questão ao estabelecer que “para efeito deste Decreto, entende-se por despesas administrativas aquelas executadas na atividade-meio dos programas, projetos e ações culturais, excluídos os gastos com pagamento de pessoal indispensáveis à execução das atividades-fim e seus respectivos encargos sociais, desde que previstas na planilha de custos”.

No particular, o Decreto agiu com prudência na definição adotada, ao mesmo tempo em que, no pleno exercício do poder regulamentar, estabeleceu o limite de 15%, sobre o valor total do projeto proposto ao MinC, para as despesas classificadas como administrativas. Dessa forma, entendemos, atingiu-se o duplo objetivo de estimular o funcionamento dos proponentes (sobretudo aqueles sem finalidade lucrativa), sem contudo ampliar demasiadamente o valor dos projetos culturais com despesas sem vinculação direta ao objeto dos projetos.

É de se mencionar, ainda, que o Decreto tocou em temas de grande aplicabilidade prática, como o percentual, dentre os  produtos resultantes dos projetos executados com incentivos fiscais, passível de destinação aos respectivos patrocinadores, diminuindo-o dos antigos 25% para 10%. Além disso, ampliou-se o número de exemplares dos produtos realizados que devem ser destinados ao Ministério da Cultura para comprovação da consecução das metas previstas, de 01 para 06 cópias do produto cultural ou do registro da ação realizada pelo projeto.

Ainda quanto aos detalhes, acentuou-se a visibilidade que deve ser dada à participação do Ministério da Cultura nos projetos financiados pelos recursos oriundos da renúncia fiscal, com disposição que obriga aos produtores a exibição da logomarca do Ministério da Cultura com, no mínimo, a mesma exposição da marca do patrocinador majoritário. Além disso, a marca do Ministério deve aparecer nas peças promocionais e campanhas institucionais dos patrocinadores que façam referência a programas, projetos e ações culturais beneficiados com incentivos fiscais.

Por fim – o que deve ser considerado um ponto fraco do Decreto, pela insegurança jurídica que ocasiona – vários dos temas objeto de diversos (às vezes intensos) debates havidos para discussão das necessárias alterações à Lei Rouanet, embora referidos pelo novo Decreto,  ficaram para regulamentação posterior, por meio de ato a ser expedido pelo Ministro da Cultura em até cento e vinte dias contados da publicação do Edital. Em função disso, uma real opinião sobre a dimensão das alterações promovidas pelo novo regulamento da lei de incentivo somente poderá ser emitida com precisão após a edição das referidas portarias e instrumentos normativos específicos.

É o caso, propriamente, das regras aplicáveis às instituições vinculadas a patrocinadores, limite de percentual para pagamento de agenciadores (captadores) de recursos, regras para prorrogação de projetos e outras tantas, as quais, até que se editem os respectivos atos, ficarão sem normatização própria – restando a todos aqueles que lidam com a Lei Federal de Apoio à Cultura aguardar as novidades que os atos vindouros trarão.

Fabio de Sa Cesnik é advogado, sócio do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados, especializado em cultura e terceiro setor e autor dos livros “Globalização da Cultura”, “Projetos Culturais” e “Guia do Incentivo a Cultura”.

José Maurício Fittipaldi é advogado e sócio do escritório Cesnik, Quintino e Salinas Advogados.

Fábio Cesnik e José Maurício Fittipaldi


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