Quando procede à distribuição de verbas entre empresas e/ou artistas do setor por meio de outros canais que não as Leis de Incentivo, o Minc adota outros critérios, que não os de mercado. Tais critérios também acabam provocando um série de descontentamentos entre os agentes do setor. Vamos lembrar apenas um dos acontecimentos recentes: a polêmica que se travou entre Ferreira Gullar e o Ministro Gil nos idos de 2006.
A revista Carta Capital do dia 18 de janeiro de 2006, trazia à página 50 a matéria “Tudo pelos Prêmios” em que a repórter Ana Paula Souza analisava uma discussão , publicada em vários jornais de grande circulação, na época, quando vários intelectuais e artistas acusaram o Minc de ser um órgão autoritário, centralizador e incompetente, reagindo rancorosamente, de acordo com o ponto de vista da repórter, ao fato de terem ficado de fora da distribuição de verbas promovida pelo BNDES para projetos culturais. Ainda de acordo com a revista, os artistas e intelectuais (Ferreira Gullar, Caetano Velloso, Luis Carlos Barreto entre outros) reclamavam da interferência do Ministério na distribuição de recursos via editais, que estariam sendo analisados “sem a devida isenção” por parte das comissões escaladas para este fim. Tais comissões, estariam demonstrando “preconceito” contra os produtores mais bem sucedidos do ponto de vista comercial e financeiro, os chamados “consagrados”, em favor de artistas mais inexpressivos.
Ivana Bentes, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro, declarou à revista: “O movimento contra os editais públicos é encabeçado pelas figuras que foram sempre beneficiadas pela política de balcão, pela política do ‘sabe com quem está falando?” (CARTA CAPITAL, 2006).
Sem poder nos estendermos muito na questão das políticas públicas de financiamento – questão muito ampla e profunda para caber no espaço restrito deste artigo – notamos aqui uma situação de duplicidade de valores: por um lado, uma tentativa de incremento de um setor econômico, novo, um setor de ponta da economia capitalista – as indústrias criativas. De outro a sobrevivência de mecanismos e comportamentos herdados de uma tradição clientelista . De um lado a idéia de “doações ou benesses governamentais” e de outro a idéia de investimentos em setores produtivos. Mais uma vez a ambiguidade e a coexistência de contrários.
Isso se torna ainda mais problemático quando o recurso econômico governamental se destina ao apoio de grupos e/ ou empresas que manipulam símbolos. Do ponto de vista da teoria dos sistemas simbólicos podemos afirmar que qualquer sistema classificatório ou qualquer comunidade com identidade que se diferencia de outras, cria exclusão: grupos familiares, religiosos, tribais, nacionais etc – produzem a divisão “nós” e “eles”. A maneira como esses grupos criam exclusão é completamente diferente uma das outras. E, mais, o fato de haver grupos mais ou menos fechados não cria necessariamente uma situação de injustiça. Pertencer ou não a uma famíia ou a um grupo religioso, a uma tribo específica não significa viver uma situação de injustiça social ou de carência relativa a outros grupos.
Podemos dizer que participar ou não de determinados gêneros culturais não cria imediatamente uma consciência de desigualdade ou de injustiça. Nesta situação não acontece a formação de uma consciência nas classes populares de uma premência ou necessidade de acesso às formas mais eruditas de cultura. Não encontramos piquetes reivindicatórios por mais acesso a concertos, óperas ou ballets. A definição do que seria, portanto, a democratização da cultura passa a ser iniciativa e tarefa das camadas superiores da administração cultural – do seu núcleo de gestão e planejamento.
Portanto, não foi por acaso que na mesma revista, na página 53, em entrevista, o Ministro Gilberto Gil declarou:
(As críticas que vêm sendo feitas ao Minc) têm a ver com a discriminação positiva, digamos assim, que estamos tentando fazer, focando áreas que não eram focadas e, portanto, estabelecendo um conflito distributivo com esses setores. É um conflito que não existia nessa intensidade antes, porque eles tinham acesso a recursos que estão sendo redistribuídos. Estamos tentando trabalhar com um pouco mais de atendimento periférico.´(…) É a característica seletiva de governar”. Mais adiante, completa o Ministro: “(…) vamos destinar recursos a manifestações que não tinham espaço e voz. Você está fazendo uma espécie de cota, dizendo que vai deixar de atender ou atender menos tais setores para passar a atender ou atender mais a tais outros. É política governamental. Eu até brinco que esse tipo de política é algo que foi sempre pedido. O cinema novo brasileiro, o teatro todo, a literatura mais engajada etc., passaram as últimas décadas dizendo isso: vamos lá, vamos incluir os excluídos, os underdogs da história.
Com todo o respeito ao Ministro, gostaria de argumentar o seguinte: o Estado é um dos fatores predominantes nessa maneira de agregar diferenças culturais e desigualdades econômicas. Aqui, no caso é o Estado que está transformando conteudo cultural em dinheiro, ao traçar linhas excludentes entre o que “é” e o que “não é” cultura, entre o que é digno de atribuição de valor ou não. Assim como “A beleza está nos olhos de quem vê” é o grupo social que avalia o projeto e seu resultado e que justifica a razão do investimento público nesse conjunto que está, direta ou indiretamente, traçando as linhas de quem está dentro e de quem está fora. É quem está em posição de delinear políticas que, em última análise determina quais os conteúdos e/ou projetos serão considerados iniciativas espontâneas, para o consumo próprio, quais os que serão destinados às trocas mercantis, e quais os que serão destinados à busca de subvenções.
Há modelos, há regras, há exigências. Nem todo quadro é pintura – há os mais nobres e os menos nobres. Há os ingênuos ou “naifs” e os consgrados. Há os que só mercem “pontinho de cultura” ou ajuda do “Mais Cultura” e os que fazem jus a alguns milhões. Há os que podem ser incluidos e os que devem ser excluidos.
O que estamos querendo mostrar é que o setor cultural é extremamente complexo. É formado por centenas de milhares de indivíduos autônomos, gente que vive em áreas rurais remotas e sem nenhum tipo de acesso à educação formal, empresas individuais, micro e pequenas, empresas de médio porte, além de movimentos artísticos, artistas sofisticadíssimos e de renome internacional, grupos de auto-produção e consumo que não têm qualquer tipo de registro ou formalização (grupos conhecidos como “folclóricos”), convivendo com gigantes internacionais como a rede Globo, a Sony, a HBO, a FOX e a Warner etc, etc.
Da mesma maneira, os consumidores culturais também se fragmentam em milhares de grupos ou “tribos” com gostos e necessidades totalmente diferentes. Atender a todas essas diferenças, perceber quais são meras diferenças e quais são desigualdades efetivas, ter uma atitude redistributiva sem massacrar os produtores que produzem, consomem, vivem e sobrevivem dentro de uma sociedade de mercado, que afinal é a nossa, (por menos que alguns possam gostar disso), requer uma análise muito rica, sutil, elaborada, e pouco maniqueista. A busca de soluções via um único instrumento é simplificadora e perigosa. A formulação de políticas para o setor precisa levar em conta todas essas particularidades, sob o risco de acabar produzindo regras e instrumentos que não servem e não agradam a ninguém.
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