A reforma da legislação autoral brasileira provoca debates, em meio a conflitos de interesse cuja conciliação se tornou extremamente difícil em face da digitalização de praticamente todos os meios de comunicação. Nesse contexto, um setor da economia assume uma posição sui generis, por ser ao mesmo tempo grande produtor e grande usuário de conteúdo protegido: a mídia.

As empresas podem ser comparadas a “indústrias de transformação” que adquirem o conteúdo como insumo (sob a forma de fonogramas, imagens, textos, formatos etc.) e o comercializam como produto (novelas, séries, filmes, reality shows etc.), após um processo criativo-produtivo de complexidade variável. Seja atuando como compradoras ou vendedoras de conteúdo, elas devem operar em harmonia com a legislação de propriedade intelectual (especialmente os direitos autorais).

A legislação é em geral obedecida pela indústria, mas nem sempre é obedecida pelo consumidor. Isso se deve à facilidade com que o usuário das mídias digitais pode acessar, copiar e distribuir o conteúdo disponível na internet. Ou seja, a indústria é obrigada a pagar, sempre e cada vez mais, pelo conteúdo que “compra”, mas o consumidor nem sempre paga (nem que seja por meio da exclusividade da audiência) pelo conteúdo que a indústria “vende”.

No longo prazo, essa realidade colocará em xeque a sustentabilidade da própria atividade, que depende da capacidade de recuperar, na ponta do consumo, os investimentos realizados na ponta da criação. Nessa atividade, o conteúdo é adquirido, beneficiado e distribuído com base em seu valor intrínseco. E o retorno dos investimentos depende da percepção de qualidade do produto. É assim que atuam os canais de TV aberta e por assinatura, os portais “legalizados”, os jornais e revistas, além de produtores de conteúdo “avulso” fixado em DVDs, CDs etc.

Para alguns críticos, a mídia deixou de ser necessária. É comum vê-los apontar para outras formas, que podem ser classificadas em: (a) institucional; (b) amadora; e (c) não-mídia.

Na mídia institucional, o conteúdo é apenas um meio para se atingir, direta ou indiretamente, a um objetivo paralelo (político, comercial etc.). Os investimentos são recuperados indiretamente, por meio de produtos associados. Assim, por exemplo, se oferece um software “grátis” com o objetivo de vender suporte técnico; um livro “grátis” para vender palestra; libera-se o download do filme para vender um projeto eleitoral. O conteúdo em si é apenas uma ferramenta de marketing.

A mídia amadora é típica dos tempos da internet. Aqui o conteúdo é ferramenta de comunicação interpessoal. Os milhões de blogs amadores e redes sociais como Orkut e Facebook estão nessa categoria. O conteúdo em si pode ser amador ou profissional, mas sua mediação (ou seja: sua seleção, tratamento, crítica etc.) é feita por não-profissionais, que se remuneram por meios “não-monetários” (notoriedade, altruísmo etc.) e nem sempre se preocupam em cobrir investimentos de terceiros na criação/produção do conteúdo que estão distribuindo.

E sempre houve a possibilidade de não-mídia, em que o conteúdo é distribuído diretamente pelo criador, sem qualquer juízo crítico de viabilidade de terceiros. Assim fazem o produtor independente que exibe os próprios filmes, o músico que grava seus discos e o escritor que edita os próprios livros.

É preciso admitir que as novas modalidades de mídia “colaborativa” que surgiram com a internet são uma ideia sedutora, que deve ser considerada seriamente. Mas este não pode ser o único caminho, nem o principal. Prescindir da mídia profissional é condenar a cultura a se tornar um palheiro de conteúdo amador, institucional ou de baixo valor agregado, talvez atrelado a estratégias de financiamento insondáveis. Em outras palavras, sem mídia profissional, as gerações futuras terão que se contentar apenas com conteúdo produzido “nas horas vagas”. Ou, o que é mais perigoso, graças aos favores de empresas ou do Estado.

É hora de refletir: que tipo de civilização se constrói sobre a negação do valor do trabalho intelectual, e apenas do trabalho intelectual? Se não existe conteúdo grátis, parece lógico concluir que alguém paga por ele. A questão é quem e por quê. Propriedade intelectual demais é ruim; de menos, também. Encontrar o ponto de equilíbrio legal é uma questão de bom senso.

* originalmente publicado no jornal O Globo em 19/07/2010.


Advogado e autor do livro "Mídia e Propriedade Intelectual: A Crônica de um Modelo em Transformação".

4Comentários

  • Leonardo Ferreira, 23 de julho de 2010 @ 2:49 Reply

    Acredito que a solução do problema esteja na criação de “coletivos de artistas”.
    Colocando o foco no setor audiovisual fiz um gráfico tentando explicar o que penso: sss://leoarteiro.deviantart.com/#/d2u5zxj

    Mas acredito que não seja apenas uma questão de mudar as regras do jogo, é preciso que os artistas mudem a cabeça também. Em conversas o que percebo é que as pessoas querem ser empregadas, é um processo mais prático, mas do jeito que tá as pessoas deveriam ser mais empreendedoras com relação a sua obra.

  • Cláudio Lins de Vasconcelos, 23 de julho de 2010 @ 12:08 Reply

    Caro Leonardo Ferreira,

    Antes de tudo, obrigado pelo comentário e parabéns pela bela e claríssima composição gráfica de seu modelo. Como disse no artigo, as novas formas de mídia colaborativa, que surgem com a redução de quase tudo que vemos ou ouvimos a combinações de “zeros” e “uns”, são uma ideia a ser considerada seriamente e é isso que você e tantos outros pensadores da cultura digital estão fazendo.

    Permita-me, contudo, problematizar sobre alguns pontos do processo criativo-produtivo que você expõe/propõe. O fato de que um “coletivo de artistas” pode, em face das tecnologias hoje disponíveis, criar, produzir e distribuir o próprio conteúdo não significa uma mudança de processo, mas uma simples verticalização. Ou seja, o coletivo-investidor ainda precisará dar um jeito de arrecadar mais com o “chapéu” de distribuidor/vendedor do que gastou quando estava com o “chapéu” de investidor/criador/produtor.

    Mesmo admitindo que esse coletivo consiga produzir colaborativamente um conteúdo comparável em qualidade ao que hoje a indústria produz (note que a maioria das pessoas quer acesso a conteúdos “mainstream”, que são filmes e séries negociados na “cabeça”, e não na “cauda longa”, que custam qualquer coisa na casa dos milhões e envolvem um processo de produção extremamente complexo) ele terá, no mínimo, as mesmas dificuldades da indústria para “monetizar” seu produto ao final da cadeia.

    Seu modelo propõe basicamente quatro fontes de receita: (a) publicidade; (b) inscrição em festivais; (c) licenciamento de direitos; e (d) cessão de direitos. Estes são, com a possível exceção do item (b), as mesmas fontes de receita da indústria, que, no entanto, estão seriamente ameaçadas. As fontes (c) e (d) dependem, essencialmente, do respeito aos direitos autorais do “coletivo”, ou, para falar de um jeito menos romântico, do “controle sobre o conteúdo”, pois ninguém vai pagar pelo licenciamento ou cessão de um filme que está disponível gratuitamente para quem quiser ver.

    A fonte (a) depende da exclusividade de exibição (portanto, de novo, do respeito aos direitos do autor), pois o que o anunciante quer saber é quantas pessoas terão contato com sua marca. Se o coletivo não conseguir evitar a fragmentação da audiência em inúmeras janelas sobre as quais ele não tem qualquer controle, não há como garantir à Coca-Cola (sempre ela…) que o conteúdo que a empresa patrocinou não está sendo exibido em outra janela, talvez associado à marca da Pepsi. A solução proposta por alguns é o velho e bom “merchandising”, ou seja, integrar a Coca-Cola ao conteúdo. Pode até funcionar em um filme sobre “sol, mar e biquíni”, mas fico imaginando quem fará merchandising na série “Roma”, no “Primo Basílio” ou em “2001: Uma Odisséia no Espaço”.

    Quanto à forma (b), me parece que talvez não seja suficiente para “bancar” produções caras. Afinal, quanto um patrocinador investiria para circular um filme em circuitos naturalmente limitados em visibilidade como em geral são os festivais? Note que, hoje, o mercado publicitário está acostumado a falar em “dezenas de milhões” de espectadores em qualquer faixa de 30 segundos do horário nobre.

    Volto à questão inicial do artigo: seja produzido pela indústria, pelo coletivo ou por qualquer outro “player” do mercado cultural, o conteúdo deve ser negociado pelo seu valor intrínseco. E se alguém souber como fazer isso sem recorrer aos direitos autorais (e nem a favores, seja dos mecenas ou do Estado), pediria que, por favor, exponha.

    Abraço e, mais uma vez, obrigado pela oportunidade do debate.

    Cláudio

  • paulo tedesco, 28 de julho de 2010 @ 13:52 Reply

    Cláudio, estou gostando muito das tuas análises. Tenho também um gráfico, porém voltado ao setor editorial-autoral, que por questões de proteção de direitos (esse gráfico será a base para um livro que estou para lançar ainda este ano), não o exponho ainda na internet. Pergunto se tens um email onde poderíamos conversar.
    Abraço,
    PAULO TEDESCO http://www.oficinadolivro.net.br

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