Em entrevista ao Observatório Itaú Cultural, a economista e administradora pública Ana Carla Fonseca fala sobre o livro Economia Criativa como Estratégia de Desenvolvimento do qual é organizadora, editado em parceria com o Itaú Cultural, em formato digital, gratuito, em três idiomas que reúne diferentes pontos de vista de autores de todos os continentes sobre economia criativa.
O fio condutor da trajetória da economista e administradora pública Ana Carla Fonseca é a convergência entre economia, cultura e desenvolvimento. Segundo ela, foi o que a levou a fazer duas graduações em paralelo, em economia (USP) e em administração pública (FGV). Ao mesmo tempo estudava escultura, línguas, história da arte e pra completar a agenda apertada, encarava um estágio na Cinemateca Brasileira. Mas ainda não era o bastante. “Percebi que precisava conciliar outra convergência em meu repertório: entre os setores público, privado e a sociedade civil”, conta. Percepção que a levou a trabalhar por quinze anos como executiva de marketing e comunicação de multinacionais, morando na América Latina, em Londres e em Milão. Nos últimos anos também tem se dedicado a atividade de conferencista internacional, fazendo a ponte entre o Brasil e outros centros de discussão no mundo. Aliás, foi entre Madrid e São Paulo, quando retornava de um encontro em Marrocos que ela falou por e-mail ao Observatório Itaú Cultural sobre o livro que organizou “Economia Criativa como Estratégia de Desenvolvimento” (co-edição Instituto Itaú Cultural e Garimpo de Soluções), lançado neste mês. Em formato gratuito, em três idiomas, a publicação, feita em co-edição com o Instituto Itaú Cultural, reúne diferentes pontos de vista de autores de todos os continentes sobre economia criativa. Segundo ela há uma carência de conscientização acerca do que significa economia criativa, daí a importância de debates, seminários, livros e cursos. “É preciso promover uma visão integrada, que rompa com a velha tendência de pensar de modo linear – o econômico ou o cultural, o público ou o privado – ao invés de modo circular, no qual o único modo de alguém ganhar é trabalhando de forma orquestrada com o outro”, argumenta. Na entrevista a seguir, Ana faz uma análise extensa e esclarecedora sobre o tema, cita dados recentes como os divulgados no recente Creative Economy Report 2008, primeiro relatório mundial a respeito da economia criativa, envolvendo cinco agências da ONU, do qual ela foi consultora para a América Latina e o Caribe. “Os setores criativos contribuíram com mais de 11% do PIB dos Estados Unidos e acima de 11% do número de empregos de países como México e Filipinas”, destaca. Ela conta ainda detalhes do livro e comenta os desafios da economia criativa na América Latina, África, Índia, China e no mundo.
Observatório Itaú Cultural – Como foi o processo de criação do livro? Você o considera ousado para o pensamento mercadológico brasileiro?
ACF – A proposta do livro surgiu no início de 2007, como resposta ao desconforto que eu sentia por não termos um debate mais profundo e integrado acerca de como os países ditos em desenvolvimento encaravam e tratavam a economia criativa em seus contextos locais, ao invés de simplesmente adotarem um conceito externo, sem sua necessária tradução. Convidei então especialistas dos vários continentes, para que dissessem, à luz de seu país ou região, o que é economia criativa, se pode ou não ser uma estratégia de desenvolvimento e, em caso positivo, o que deve ser feito para tanto. Mais do que isso, porém, para atender ao objetivo maior de animar e inflamar um debate em escala mundial, ele tinha de ser acessível ao maior número possível de pessoas, em especial nos países ao sul do Equador. Foi por isso que, desde o início, ele foi pensado para ser digital, gratuito e publicado em diversos idiomas. A meu ver é inovador não somente para o pensamento mercadológico brasileiro, mas para o mundial, já que desconheço outro livro que concilie cinco de suas características: o formato digital, a gratuidade, a publicação em três línguas, o ponto de vista de autores de todos os continentes e um tema ainda em desenvolvimento. Acho que o Brasil deve ser orgulhar de ter tomado essa iniciativa, assim como hoje se consolidou como um dos países com maior número de licenças Creative Commons e foi um dos responsáveis pela concretização da Convenção pela Diversidade Cultural.
OIC – Qual o status corrente da economia criativa no Brasil?
ACF – É um tema em desenvolvimento – como, aliás, na maior parte do mundo. É exatamente esse um de seus fascínios: a possibilidade de nos reposicionarmos em um período de transformações de paradigmas socioeconômicos e de aproveitarmos esse momento para revermos a estratégia de desenvolvimento que queremos traçar.
OIC – De onde surgiu esse conceito?
ACF – A primeira menção ao conceito surgiu em 1994, na Austrália, durante um pronunciamento chamado “Creative Nation” (Nação Criativa). Na época, o governo do país reconhecia que a globalização e as tecnologias de informação e comunicações representavam um risco (o que inflamou o debate acerca da exceção cultural, posteriormente diversidade cultural), mas também uma oportunidade para fazer valer o aspecto socioeconômico da criatividade dos australianos. Foi, porém, o governo britânico Tony Blair, a partir de 1997, que conferiu maior envergadura ao tema. Na época, uma análise das contas nacionais sinalizou que havia 13 setores econômicos que se destacavam por sua possibilidade de geração de emprego, renda e diferencial competitivo – cunhados de “indústrias criativas”. Vale mencionar que indústria, no jargão econômico, é grosso modo um setor (daí se aplicar até a serviços, como indústria financeira). Esses 13 setores são em grandes linhas o que nosso próprio Ministério da Cultura (MinC) definiu como setores culturais, no convênio travado com o IBGE e que abrange de artesanato a indústrias culturais, incluindo novas tecnologias, fundamentais para a transmissão de conteúdo pelos meios digitais. Cabe, evidentemente, uma tradução desses setores ao contexto específico de cada país, região ou município. Como em qualquer análise econômica, o que é mais adequado a um contexto não o é necessariamente a outro – e foi esse o esteio de pensamento que me motivou a organizar o livro.
OIC – Quando o Brasil começou a despertar para essa discussão?
ACF – Em 2006, quando o MinC aventou a criação do Centro Internacional de Indústrias Criativas, e para a qual foi desenvolvida uma proposta completa, por mim e por Lala Deheinzelin (infelizmente jamais levada a termo). Desde então, o país viu a realização de alguns seminários internacionais, lapidares para a conscientização desse novo momento de discussão, em especial no Ceará, em São Paulo (que organizei por três dias, na FIESP) e no Espírito Santo, além de iniciativas mais recentes, no Rio de Janeiro, no Acre, em Goiás e novamente no Ceará (onde as Secretarias da Cultura e da Ciência e Tecnologia anunciaram a breve criação do Instituto de Economia da Cultura). Em termos de base conceitual, vimos nos dois últimos anos o lançamento de alguns livros voltados a essa temática, dentre os quais o meu, Economia da Cultura e Desenvolvimento Sustentável (Prêmio Jabuti 2007), o dos professores Stefano Florissi e Leandro Valiati (que também coordenam o curso de especialização em economia da cultura da UFRGS) e o de Alfredo Bertini, voltado ao audiovisual. Vale mencionar também os cursos oferecidos pela DUO e pela Universidade Candido Mendes, por meio da Associação Brasileira de Gestão Cultural.
OIC – Quais as pretensões e possibilidades para o futuro?
ACF – As possibilidades para o futuro dependem de como os governos, nacional, estaduais e municipais aproveitarão ou não esse momento de definições para finalmente considerar os setores econômico, social e cultural de modo convergente e de seu bom senso em reconhecer que a cultura, em suas mais diversas manifestações, constitui um investimento econômico, não uma despesa. Dependerá também de como o setor privado, quiçá especialmente aberto a novas estratégias, em decorrência da crise sintomática que engoliu o mundo, aproveitará esse momento para tomar a dianteira em negócios que envolvem criatividade, valor agregado e diferenciação. O Sebrae, nesse sentido, tem promovido várias iniciativas interessantes, inclusive em âmbito estadual.
OIC – Qual é o link real entre economia criativa e a economia real vivenciada por um país, estabelecendo comparativos entre indústrias criativas, indústrias conservadoras e todo o sistema que se enraíza nessas fontes?
ACF – Há duas respostas complementares à sua pergunta. A primeira delas diz respeito às indústrias criativas em si, ou seja, aos setores que cada país define como tais. Nesse sentido, o Creative Economy Report 2008, primeiro relatório mundial a respeito da economia criativa, envolvendo cinco agências da ONU e do qual fui a consultora da ONU para a América Latina e o Caribe, traz dados riquíssimos. Basta mencionar que os setores criativos contribuíram com mais de 11% do PIB dos Estados Unidos e acima de 11% do número de empregos de países como México e Filipinas. A segunda resposta transporta a análise das indústrias criativas para uma visão mais completa da economia criativa, mostrando como a criatividade oferece novo carvão à locomotiva das indústrias tradicionais. Basta, por exemplo, observar como a moda gera valor agregado à cadeia têxtil e de confecções (segundo maior setor empregador do Brasil) ou ainda como nossos saberes gastronômicos diferenciam as commodities agrícolas.
OIC – Qual a diferença de aplicação da economia criativa em um país central e um periférico?
ACF – O conceito é o mesmo e envolve a análise de como a criatividade impacta no valor agregado, na capacidade de geração de emprego e renda e no diferencial de produtos e serviços em uma determinada economia, no palco da globalização. A diferença repousa essencialmente em duas vertentes, conforme mencionado acima: na tradução desse conceito ao contexto local e na maturidade dos setores público e privado para colocá-lo em prática, de forma integrada. É evidente, porém, que essa análise deve ser realizada à luz da capacidade de influência de cada país para fazer valer seus direitos culturais, sociais e econômicos nas comprovadamente tendenciosas regulamentações internacionais, já que desenvolvidas com base em um paradigma ocidental e individualista. Vide, como exemplo máximo, a legislação dos direitos de propriedade intelectual. Enquanto o Quênia passou praticamente dois anos para derrubar o registro do nome Kikoy (um pareô típico da costa africana) por parte de uma empresa britânica, os Estados Unidos conseguiram prorrogar a extensão dos direitos autorais do Mickey Mouse, de 70 para 95 anos. Note-se que, quando o ratinho foi criado, em 1928, seu tempo de proteção era de 56 anos. Mas, quando se soma a essa análise o fato de Disney ser a nona marca mais valiosa do mundo (avaliada em 2008 em US$30 bilhões, conforme o ranking da Interbrand), comprava-se mais uma vez quão importante é a convergência de interesses entre público, privado e sociedade civil.
OIC – A economia criativa pode funcionar como inclusão social? Por quê?
ACF – Pode, desde que vista sob uma ótica de desenvolvimento e essencialmente sob dois aspectos: em primeiro lugar, alguns setores criativos são particularmente empregadores, como artesanato e música. Em segundo, porque em essência a economia criativa reconhece que o diferencial econômico advém da criatividade humana – em outras palavras, que a criatividade é um ativo econômico, inclusive de pessoas e comunidades até então vistas como economicamente incapazes. Agora, entre reconhecer esse fato e propiciar as condições para que essa criatividade se concretize, há uma distância abissal – e é aí que entra a necessidade crucial de unir o potencial e o real por meio de uma política de desenvolvimento. Nessa, é imprescindível considerar várias questões, dentre as quais ressalto duas: educação (absolutamente primordial para desenvolver a capacidade de raciocínio, análise e síntese, além obviamente do instrumental técnico para transformar informação e conhecimento) e tecnologias (em especial as novas mídias, que se consolidam crescentemente como o divisor de águas entre os países que terão ou não fôlego para galgar novas etapas de desenvolvimento).
OIC – Quais são os maiores obstáculos à economia criativa e como podemos superá-los?
ACF – De modo mais específico, há gargalos nas cadeias das indústrias criativas, sendo um dos mais comuns a carência de crédito para empreendimentos criativos. Isso se dá em parte por falta de uma metodologia de valoração do intangível criativo, fazendo com que não só os empreendedores criativos, mas também as próprias instituições financeiras percam oportunidades de negócios. A saída é reconhecer que estamos analisando a economia criativa pelo prisma da economia industrial, o que algumas instituições, como o BNDES e o BNB, têm tateado no Brasil e já se consolidou em algumas instituições financeiras do Canadá e da França. De forma mais ampla, ainda há carência de conscientização acerca do que é a economia criativa – daí a importância crucial de gerarmos debates, como por meio de seminários, livros e cursos – e de promover uma visão integrada, que rompa com a velha tendência a pensar de modo linear – o econômico ou o cultural, o público ou o privado – ao invés de modo circular, no qual o único modo de alguém ganhar é trabalhando de forma orquestrada com o outro. Como resumiu de forma inspirada Pablo Capilé, na I Jornada de Economia da Cultura que organizei com Fred Perillo, no SESC de Rondônia, hoje em dia até para ser egoísta é preciso pensar no outro.
OIC – Qual o papel da economia criativa no desenvolvimento da democracia, da distribuição e acesso de informação?
ACF – Como define o economista indiano Amartya Sen, Prêmio Nobel de Economia, desenvolvimento requer a expansão de liberdades de escolha. Traduzindo o conceito para este debate, um país só pode de fato se desenvolver se seus cidadãos são capazes de tomar suas próprias decisões, de direito e de fato (daí a importância da educação, como instrumental para a formação do raciocínio e das tecnologias, como acesso a informações e conhecimento). Por um lado, uma sociedade desenvolvida dificilmente aceita um regime ditatorial ou se permite ser massa de manobra ideológica e populista. Por outro, ao reconhecer o valor econômico da produção e do conhecimento cultural damos aos criadores a possibilidade de serem entendidos e valorizados também como agentes econômicos. Por decorrência, aumenta a possibilidade de que sobrevivam dessa produção e desse conhecimento, ao invés de terem de trabalhar em outra atividade. Voltamos aqui ao conceito de desenvolvimento, restituindo às pessoas a possibilidade de escolherem com o que querem trabalhar.
OIC – Pode falar um pouco sobre a sua trajetória e os caminhos que a fizeram chegar ao tema do livro?
ACF – Quando eu parava por mais tempo em algum país, aproveitava a oportunidade para analisar como se dava a relação entre público e privado no trato da cultura (a boa e velha discussão entre política pública x política governamental), quão firme eram as diretrizes, quão ao sabor do mercado a cultura ficava, os mecanismos de financiamento existentes, os modelos de PPP, e coisas do gênero. Foi o que me levou em dar esse foco à minha dissertação de mestrado na USP. Acho que a inovação da abordagem justifica em parte o 10 com distinção e louvor que recebi da banca e o porquê de esta ter me incentivado a publicar o livro Marketing Cultural e Financiamento da Cultura, em 2002. Ainda quando morava em Milão fui convidada a participar do Instituto Pensarte, então em formação, e quando voltei ao Brasil fundei a empresa Garimpo de Soluções – economia, cultura e desenvolvimento, voltada justamente a consultorias, assessorias, projetos e estudos de economia da cultura, economia criativa, políticas públicas, oportunidades de negócios e estratégias empresariais unindo cultura e desenvolvimento. Hoje também faço doutorado em Arquitetura e Urbanismo (USP), analisando como fluxos econômicos e culturais podem promover o desenvolvimento local. Isso envolve um outro conceito em formação – o de cidades criativas – e, mais uma vez, sua tradução para contextos específicos. Esse é o tema da minha tese e do meu próximo livro.
Por Carlos Minuano
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