Onze das 14 escolas do Grupo Especial do Rio receberam investimento e algumas exibiram enredos especiais em ?homenagem? a seus patrocinadores.Por Deborah Rocha
O bicho
O “negócio” do samba começou na década de 60, quando o desfile, junto com os bicheiros, tornou-se a principal atração do carnaval carioca. Daí para frente, a verba que saía do bolso de seus patronos ficou cada vez maior e os desfiles, agora confeccionados pelos chamados carnavalescos, cada vez mais suntuosos. O visual exagerado começava a prevalecer sobre o samba e um novo padrão de desfile fixava suas diretrizes. O enredo da Beija-Flor, em 1976, foi o marco dessa fase de transformações, quando Joãosinho Trinta, contratado pelo bicheiro Anísio Abrahão David, produziu o desfile mais exuberante que já tinha sido visto.
Poder ilícito
A influência e o poderio dos bicheiros firmou-se ainda mais quando, em 1984, foi criada a Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa). Os “presidentes de honra” pediam parte do que era arrecadado com a venda de ingressos além dos direitos de transmissão da festa pela televisão. Porém, em 1993, um suposto envolvimento com o narcotráfico e a conseqüente prisão de onze bicheiros abalou suas estruturas e as do carnaval carioca. A crise levou as escolas de samba a procurarem outro tipo de investimento: o patrocínio.
Mecenato
A primeira escola a ser patrocinada foi a Imperatriz Leopoldinense, em 1995, com a ajuda do governo do Ceará. A partir daí, muitas marcas começaram a desfilar nas passarelas intensificando o mutualismo entre capital e exposição. Este ano, onze das 14 escolas do Grupo Especial do Rio receberam auxílio e algumas exibiram enredos especiais em “homenagem” a seus patrocinadores. A Varig investiu na Beija-Flor, a TAM no Salgueiro, a Xerox e Governos dos Estados do Nordeste na Mangueira, a Prefeitura da Cidade de Campos dos Goytacazes, na Imperatriz Leopoldinense, o Governo do Estado do Maranhão na Grande Rio e o Governo do Estado do Amazonas na Portela, entre outros.
“Patrocinar o desfile de uma grande escola de samba do carnaval do Rio é mais do que participar da maior festa popular do planeta. É, pela grandiosidade do espetáculo e por seu poder de comunicação, um excelente investimento”, diz um texto da Varig que financia a Beija-Flor, publicado no jornal Valor. “São milhares de pessoas envolvidas diretamente com o espetáculo; centenas de emissoras de rádio e de televisão transmitindo o show, ao vivo, para todo o mundo. Cada gesto, cada movimento, cada imagem é repetida milhões de vezes ao redor do planeta”, justifica o texto. Segundo o Valor, a concorrente TAM que investe no Salgueiro também não poupa esforços e está desembolsando R$ 1,8 milhão. O valor é dos maiores patrocínios deste ano. “O carnaval mudou muito, passou a ser megaespetáculo, não podemos contar só com a comunidade”, comenta Mauro Quintaes, carnavalesco do Salgueiro, em uma entrevista concedida à Almanaque Brasil.
O leite na comunidade
Em São Paulo, quem entra no ritmo e aproveita a falta de barreiras ao patrocínio explícito é a Nestlé que, segundo o jornal Valor, investiu R$ 500 mil em uma ação de merchandising com a Mocidade Alegre. A idéia do patrocínio veio da própria escola. Com o projeto do desfile pronto, a Mocidade bateu na porta da Nestlé, que considerou a idéia pertinente para a sua estratégia de comunicação.
No campo social, o apoio é ao projeto “Morada do futuro”, criado pela escola. “Não se trata apenas de um patrocínio, mas de uma parceria com a comunidade envolvida na escola”, diz Andrei Rakowitsch, diretor da divisão de alimentos e bebidas da multinacional ao Valor. Segundo ele, a “promoção” carnavalesca acabou casando com a estratégia de popularização da marca veiculada ao longo de 2001. “Essa ação integra-se completamente com a nova cara que estamos dando à Nestlé no Brasil”, comenta Rakowitsch ao jornal.
Níqueis no samba
A questão do patrocínio às escolas de samba está aos poucos deixando de ser incômoda entre seus “presidentes de honra” apesar de ainda serem poucos os que assumem oficialmente o investimento. Este ano, apenas Salgueiro, Beija-Flor, Imperatriz e Portela comentam o caso. Segundo a revista Carta Capital, o órgão formado pela cúpula dos contraventores não fala em jogo do bicho nem em patrocínio. “Não sei porque tanto receio em falar disso. Parece que estamos fazendo alguma coisa errada. Por que não? Por que a ópera do Teatro Municipal pode ter patrocínio e o desfile não?”, pergunta Sérgio Murilo Pereira Gomes, capatador de recursos que intermediou a verba para a Imperatriz Leopoldinense deste ano, em entrevista à Carta Capital.
Os chamados enredos “caça-níqueis”, aqueles produzidos para agradar o patrocinador, são vistos com maus olhos pelos integrantes das agremiações e causam um constrangido dilema por restringir a liberdade de criação na chamada arte do carnaval. Joãosinho Trinta, que já foi um crítico severo de tais enredos, hoje já aceita melhor o assunto e não nega seu apoio ao Maranhão, tema de seu enredo para a Grande Rio deste ano. “É só o carnavalesco ser competente para não deixar o enredo se prostituir em função do patrocinador”, argumenta Joãosinho em entrevista à Carta Capital.
100% mais fácil
Além de todos os atributos que transformam o carnaval na maior festa popular do país, este ano a festa foi brindada com mais um presente do Governo Federal. Projetos de escolas de samba passaram a ser entendidos como “artes cênicas” para efeito de aprovação em lei Rouanet, e não mais música popular. Isso significa que ele passa a ser enquadrado no artigo 18 da Lei Rouanet, passando a oferecer 100% de desconto no IR dos patrocinadores.
Reflexo do marketing , da propaganda e com um empurrãozinho do Governo, o processo de industrialização e de profissionalização do desfile está diminuindo a dependência do financiamento ilícito e criando novas máscaras a seus figurantes. Apesar disso, a lógica de lealdade do carnaval carioca continua atuante e arrancando calorosos aplausos dos espectadores.
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