*Continuação do texto “O autor existe – Parte I”, publicado no dia 3/7/12. Clique aqui para ler.
No caso específico do Brasil – que é o B dos BRICS – expliquei aos colegas europeus, americanos, japoneses, australianos, africanos e sul-americanos o pano de fundo no qual a CPI do ECAD foi promovida pelo Senado: um tecido cuja trama é formada pela conjunção de três forças distintas, reunidas de forma oportunista, em busca de um determinado resultado. Em primeiro, os senadores presidente e relator da CPI do ECAD, movidos por cálculos políticos específicos e de curto alcance, sendo certo que os frutos já estão sendo colhidos e aproveitados, conforme comprova a enorme visibilidade dada pelas organizações Globo especialmente ao presidente da CPI do ECAD, Senador Randolfe Rodrigues agora na CPI do Mr. Waterfall.
Era importante explicar aos colegas estrangeiros que na abertura das sessões de oitivas de testemunhas da CPI dos Senadores Randolfe e Lindbergh, esse último afirmara a necessidade de armar aquele teatro, aquele espetáculo, ou como bem foi dito depois pela Sandra de Sá, aquele “circo”, para comprovar de alguma forma comportamento criminoso por parte dos responsáveis pelas associações de titulares de direitos autorais de obras musicais, e assim justificar uma reforma no sistema, através de proposta legislativa que visa demonstrar que o Estado brasileiro pretende intervir na relação dos autores e titulares de direitos autorais com o público.
Para o senador Lindbergh, o atual governo tem a intenção de intervir no funcionamento do livre mercado. A justificativa seria a necessidade do Estado brasileiro se posicionar no ambiente de globalização desregulada, que influi no encaminhamento das questões econômicas e políticas em todos os lugares, e que tais questões incluem as relações que giram em torno da difusão da criação intelectual. Falta demonstrar se essa intenção de fato existe, o que seria demonstrado através de uma análise das políticas do Estado brasileiro frente às questões econômicas e financeiras em sentido mais amplo do que os aspectos específicos relacionados à circulação de obras artísticas.
O Senador relator sabe o que deve dizer para obter apoio do público e produzir os recursos políticos desejados e previamente calculados. Da mesma forma, o Senador presidente, sabe como usar as câmeras e o espaço de fama que lhe foi oferecido pelo mais poderoso veículo de comunicação do país. As acusações apresentadas na CPI, contra os responsáveis pelas associações organizadas para a gestão coletiva dos direitos autorais de execução pública de obras musicais, na forma da lei, bem como as acusações ao Escritório Central, também criado por lei, se basearam, todas, em reportagens publicadas pelo jornal o Globo. A fim de garantir a legitimidade da investigação e até mesmo da criação da comissão parlamentar de inquérito, os senadores se aliaram aos compositores insatisfeitos com a atuação de suas respectivas associações na defesa de seus interesses. Um processo de enfrentamento que nada tem de novo em qualquer forma de organização associativa. O jogo democrático é complexo e obter o consenso de forma a manter todos os milhares de associados felizes e satisfeitos é praticamente impossível. O benefício de um, nem sempre é o benefício de todos, portanto, sempre houve e sempre haverá, em qualquer lugar do mundo, autores descontentes com os caminhos adotados pelas associações das quais são membros.
Assim, se juntam os políticos em busca de produção de recursos políticos com os criadores descontentes, apoiados pelo maior grupo de comunicação do país, que não deseja pagar direitos autorais pela utilização de obras musicais em sua programação. Pelo menos, não querem pagar o preço cobrado pelo ECAD, no exercício de sua função de arrecadar e distribuir os direitos de execução pública de obras musicais, na forma prevista em Lei. Dizem que o ECAD cobra demais. Querem pagar menos, não querem discutir, ou na discussão não reconhecem o ECAD como interlocutor legítimo para falar em nome dos compositores, ou não levam em consideração a reivindicação dos autores. Por outro lado, quando cobram pela utilização das obras das quais são titulares dos direitos autorais, suas produções audiovisuais e seus direitos exclusivos de transmissão, cobram o preço que entendem ser ajustado, e com certeza não facilitam qualquer discussão, nem aceitam argumentos de que a sua produção cultural tem caráter público e informativo, por isso, deve ser ofertado gratuitamente ou por valor mínimo, independentemente de ser aviltante quando considerada a cadeia produtiva que depende da continuidade da produção intelectual e se insere nessa área da economia criativa.
Conforme eu disse em Dublin aos colegas que ouviam interessadíssimos o meu relatório, políticos em busca de produzir recursos políticos se aliando aos organismos de comunicação aparentemente em defesa dos autores descontentes com o sistema de gestão coletiva de direitos autorais, sempre existiram e sempre existirão. Lutar contra políticos oportunistas, é perder tempo, porque essa é a forma como se faz política, pelo menos no nosso país. Brigar com compositores descontentes é inaceitável, uma vez que não estamos aqui para brigar, mas sim para trabalhar para compositores, sejam eles felizes e satisfeitos com o nosso trabalho, sejam eles descontentes e donos de uma certeza indiscutível de que fariam muito melhor do que nós, caso estivessem sentados em nossas cadeiras, como se fosse proibido ou impossível ocupar nossos lugares. Resta então questionar o que de fato nos impede de manter uma relação saudável com o organismo de radiodifusão, que no Brasil, diferentemente do costume em outros países, é também produtor de conteúdo audiovisual, portanto, titular de direitos autorais. Como detentor de direitos de propriedade intelectual deveria entender que a remuneração dos autores é fundamental para a sua própria atividade. No entanto, como produtor e titular de direitos autorais de obras artísticas quer cobrar mais caro, enquanto como exibidor e usuário de obras deseja pagar menos pelas licenças de utilização dessas obras, de titularidade de terceiros.
Esse conflito fez o jornal O Globo publicar seguidamente reportagens pretensamente investigativas, mas que, no entanto, não investigam nada, publicam textos que levam o leitor a concluir que o sistema ECAD é de fato dominado por burocratas, todos eles, indiscriminadamente, comparáveis com criminosos perigosos, ou com os integrantes das várias máfias e redes que vivem de negócios criminosos com ocupantes de cargos oficiais nos três poderes da República. Assim, ganham o apoio dos descontentes e fornecem as condições necessárias para os políticos usarem sua autoridade para promover uma pretensa investigação cujo relatório final está pronto antes mesmo de começar e que tem como finalidade principal criar a justificativa para uma proposta legislativa de regulação do sistema de gestão coletiva, mudando por completo a estrutura hoje existente, criada, da mesma forma, em decorrência da lei dos direitos autorais.
O jornal O Globo atuou de forma clara em favor da criação da CPI, produzindo e publicando os argumentos defendidos pelos senadores, em troca de espaço na mídia e outras formas de troca de influência e de ferramentas políticas, legitimados pelo discurso em favor dos autores, apoiados em um pressuposto que não se sustenta. Dizem os senadores, com apoio de muitos centímetros quadrados publicados para criar um vilão a ser declarado culpado de todos os defeitos e problemas e por isso imputável e punível, que temos a pior lei de Direitos Autorais do mundo, ou uma das piores. Mas não explicam quais as referências, quais os critérios de julgamento de pior e melhor. Pior para quem, melhor para quem, às custas de quem? Coube ao veículo de comunicação produzir a notícia a ser explorada pelo político, com um discurso em defesa do interesse dos autores, usando a voz de alguns autores descontentes e assumindo serem esses mensageiros de um pensamento supostamente unânime e uníssono, a expressão da voz e do entendimento comum de todos os criadores. Assim, basta aparecer apenas um que não concorde com os argumentos desse grupo de descontentes, para a tese em defesa de um todo inexistente, fabricado e vendido com a ajuda do veículo de comunicação, perder a legitimidade e o sentido.
Como podemos entender, depois de tudo isso, a publicação de um editorial que diz expressar a opinião do Jornal o Globo contrária à intervenção na estrutura e no funcionamento da gestão coletiva de direitos de execução pública no Brasil proposta no relatório final da CPI? Com certeza, as respostas a essa pergunta podem ser muitas. O problema é amplo e complexo e não pode ser enfrentado com receitas e prescrições antigas e desgastadas. A ideia de que é preciso existir um inimigo definido contra quem se luta indefinidamente como mecanismo de estímulo à manutenção da vontade, verdadeiro motor da atividade, também não serve mais para enfrentar a complexidade da questão em discussão.
Com toda certeza, compositores nada tem contra conversar, debater, dialogar sobre o tema dos Direitos Autorais, da gestão coletiva, da economia criativa, da força produtiva dos criadores de obras artísticas, da importância política e econômica do trabalho imaterial. Desde que haja disposição para o diálogo em busca de compreensão alternativa para o problema que se coloca à nossa frente. Para isso é interessante adotar uma perspectiva que permita avançar efetivamente na análise crítica do sistema de proteção aos direitos autorais. Olhar as origens, buscar as forças e motivação dos criadores que escrevem parte fundamental da história da construção e transformação do conjunto de princípios, normas e regras que regulam a proteção aos direitos dos autores relativamente às suas criações artísticas, bem como o funcionamento das relações econômicas e sociais que giram em torno da criação artística. Não é preciso ficar preso à história, ou a certa versão da história construída com determinada finalidade, especialmente a de promover o ambiente que permitiu o desenvolvimento do modelo e estrutura de proteção que temos hoje. É possível olhar para a história e adotar uma perspectiva crítica em busca de aspectos que não vem sendo considerados no diálogo, ou na falta de diálogo, entre forças contrárias. A compreensão do problema apenas como uma disputa entre os “contra” e os “a favor” serve para deixar tudo como está, preso a um tipo de força inicial, inaugural, movida pela necessidade de combater. Hoje, a questão tem outra feição, ou outras várias e contraditórias faces.
A União Brasileira de Compositores comemora 70 anos de sua fundação por um grupo de compositores que desejava atuar na construção de uma estrutura da gestão coletiva dos seus direitos sobre suas obras. Os compositores perceberam há séculos que cada um tem um interesse individual semelhante e convergente com o do outro que se encontra na mesma situação que ele: são titulares de direitos sobre obra artísticas – um direito que não é de compreensão simples para o senso comum – diante de uma dificuldade extrema ou até da impossibilidade de fazer valer o seu direito em razão da característica do bem: a imaterialidade. Essa história escrevemos em um livro que a UBC acaba de publicar em comemoração ao seu aniversário de 70 anos. A história que lá está escrita busca traduzir o espírito do compositor, do criador, daquele que é a origem de ser de toda essa conversa.
Fizemos um livro que fala das ideias que percebemos terem movido essa história, mas discutimos também o atual estágio do negócio da gestão coletiva e pretendemos discutir ainda muito mais. Inserimos essa história em outra mais ampla, que é a das sociedades criadas por autores para a gestão conjunta de seus direitos, que, por sua vez, se confunde com a história das ideias dos autores a respeito dos seus direitos, da sua inserção no mercado como força produtiva. Sobre isso queremos discutir, sobre o poder produtivo gerado pela criação intelectual artística. Queremos falar sobre o autor que existe como força produtiva, que não desapareceu com a mudança do conceito de público e a transformação da comunicação, e de sua teoria, promovida pela inovação tecnológica, essa também resultado do esforço criativo intelectual.