Assim como no ano de 2013, Cultura e Mercado teve uma rica produção jornalística. Por isso, também vamos dividir a retrospectiva de 2014 em mais de uma parte.
O ano começou com a publicação de uma entrevista exclusiva com o ex-secretário de Fomento e Incentivo à Cultura, Henilton Menezes, que em dezembro havia entregado à ministra Marta Suplicy seu pedido de exoneração do Ministério da Cultura. Outra reportagem tratava da queda do valor total captado via Lei Rouanet em 2013, que assim como nos últimos dois anos viu crescimento no número de projetos apresentados e aprovados, mas não do patrocínio. Por outro lado, via-se no país a ascensão de feiras de arte e a ampliação de possibilidades de negócios e financiamento a novos e consagrados talentos.
Em fevereiro, o deputado Alessandro Molon (PT-RJ), apresentava no Plenário da Câmara dos Deputados o novo texto do Marco Civil da Internet e, em São Paulo, o governador Geraldo Alckmin anunciava investimento recorde de mais de R$ 135 milhões no ProAC ICMS. No mês seguinte, pesquisa da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República indicava que a televisão era o meio predileto de comunicação dos brasileiros (76,4%), seguido da internet (13,1%).
Em Austin, Texas (EUA), Neil Young causava alvoroço no SXSW: com o aval de um seleto grupo de ícones da música pop, lançou uma campanha de crowdfunding para financiar o Pono, um novo aparelho, capaz de reproduzir músicas em alta resolução, disponibilizadas em uma plataforma criada para a compra dos arquivos.
Em Minas Gerais, a Mostra de Cinema de Tiradentes se consolidava como celeiro de exposição para novos cineastas e de filmes experimentais.
Como destaque desta primeira parte da retrospectiva de 2014, trazemos reportagem que trazia, a partir da pesquisa Panorama Setorial da Cultura, reflexões sobre o conceito de cultura no Brasil.
Mas o que é cultura?
Por Mônica Herculano
Publicado originalmente em 03/10/2014
Nos principais debates dos candidatos à presidência da República neste atual período eleitoral no Brasil, uma palavra esteve ausente: cultura. Quem trabalha na área e está nas redes sociais acompanhou uma enxurrada de manifestações sobre a falta de propostas para o desenvolvimento do setor no país. Reclamavam, sobretudo, da desconsideração sobre os potenciais econômico e social da cultura.
“Entender o que cultura é na visão do brasileiro nos denota qual a construção hegemônica à qual estamos socialmente sujeitos”, afirma a pesquisadora e doutoranda em comunicação e práticas de consumo Gisele Jordão. Ela foi responsável pela pesquisa Panorama Setorial da Cultura Brasileira, cuja segunda edição, lançada em setembro, estudou os hábitos de consumo da população do país.
Um dos aspectos abordados no levantamento é qual o conceito de cultura que o brasileiro tem. E talvez o resultado ajude a entender por que o assunto não apareceu na urna com os temas das perguntas para os candidatos.
A cultura, lembra Gisele, é um signo com amplo aspecto conotativo, que adquire diferentes significados de acordo com os distintos contextos em que é observado. Duas utilizações são mais corriqueiras na contemporaneidade: a que estabelece o termo como processo de acumulação cultural, e a que o trata como sinônimo de atividades artísticas. A primeira diz respeito à cultura de um determinado grupo como referência de estado desenvolvido de conhecimento.
“Conceitualmente, cultura abarca as noções de conhecimento e informação, simultaneamente. Contudo, quando se verifica quais as dimensões percebidas pelo brasileiro, entende-se que não há associação dessas dimensões com a noção de cultura”, conta Gisele. Muitos dos discursos encontrados na pesquisa – na declaração de produtores, de artistas, de críticas, de veículos de imprensa – remontam à ideia de cultura como algo elitizado. “Isso vem reforçando uma ideia bastante antiga, promovida desde o século XVIII pelo movimento academicista das artes, de que cultura é um estado mental elevado, desenvolvido, para poucos.”
A percepção de que cultura não é algo para todos, ainda presente não só entre consumidores mas também entre agentes, viabilizadores e difusores, acaba constituindo-se como obstáculo para o consumo cultural. “Em geral, as associações realizadas pelos respondentes nos levam a compreender que o brasileiro associa à ideia de cultura todas as práticas que ele não realiza. Cultura é, para o brasileiro, diferente de informação e diferente de diversão.”
É por isso, diz a pesquisadora, que atividades como ouvir música, ir ao cinema e a circo, ler livros, ir a livrarias ou loja de CD, por exemplo, não são vistas como “culturais” pelos entrevistados. “Se há a prática, se está próxima, não pode ser cultura, porque ‘isso é para poucos’. Essa percepção, trabalhada historicamente e reforçada por diversos discursos que verificamos, incrustam na ideia do brasileiro a cultura como algo distante.”
Na prática – A pesquisa solicitou aos entrevistados que fizessem livres associações entre as práticas e as ideias de diversão, informação e cultura. Gisele explica que foi absorvida a noção de cultura de forma não totalizante, em que se pode pensar no plural e no singular simultaneamente: a cultura e as culturas. “Neste sentido, a cultura deixa de ser fim e passa a ser recurso político e econômico.”
Desde essa perspectiva, foi localizado o conceito de práticas culturais – todas as atividades de produção e recepção cultural: escrever, compor, pintar, dançar, frequentar teatro, cinema, concertos etc – sem hierarquizar ou classificar, verificando-as como atividades mediadoras e, assim, com potencial dialógico e comunicacional, favorecendo a interação do indivíduo com a sociedade.
As atividades citadas como as mais realizadas fora de casa – ir ao cinema, ir ao restaurante como lazer, passeios em parques/ao ar livre, viajar pelo Brasil, ir a shows de música popular e ir a festas regionais/típicas/quermesses – foram associadas à diversão.
Entre as atividades que o brasileiro mais gosta, três (ouvir música, ir ao cinema e ir a shows de música popular) são relacionadas apenas à diversão; duas (assistir à TV e ouvir rádio) à informação e à diversão; e uma (acessar a internet) apenas à informação. A única atividade associada à cultura de alguma forma – e neste caso em associação conjunta com informação – foi a prática religiosa, a primeira atividade citada como a mais realizada fora de casa no último ano.
Com exceção da religião, todas as outras atividades relacionadas de alguma forma com a ideia de cultura – exposição fotográfica, visita a museus, galerias e cidades históricas, ópera, teatro, espetáculo de dança, atividades em centros culturais – foram as menos realizadas no último ano e as que os entrevistados disseram gostar menos.
O problema, acredita Gisele, não está no que se chama ou não de “cultura”, mas sim no desencontro do que cada ator valida por cultura e, desta forma, o que pode ou não ser legitimado como cultural. “Entender as crenças coletivas sobre cultura favorece a avaliação de políticas e caminhos escolhidos.”
Leia também: