Na Teia 2007, as dificuldades e os desafios dos Pontos de Cultura que desenvolvem atividades circenses, em diferentes regiões brasileiras, também terão seu espaço.

Com o Programa Nacional de Cultura, Educação e Cidadania – Cultura Viva, muitos dos circos que andam Brasil afora ganharam fôlego, transformando-se em Pontos de Cultura e servindo-se de apoio do Estado para auxiliar a manutenção de suas atividades. Apoio que proporciona também novas possibilidades de articulação e parcerias, imprescindíveis à sustentabilidade do setor.

Contudo, as dificuldades continuam grandes, seja pela necessidade de integração da categoria, pela falta de recursos, pelos entraves das realidades locais ou mesmo pela natureza da manifestação artística que, preservando as características do circo tradicional, não encontram tanto espaço na mídia e no mercado.

Mesmo assim, o instinto de superação do circo faz com que ele nunca perca a capacidade de reencantamento da realidade e, sim, insista na manutenção de iniciativas essenciais à sua própria existência, que depende da comunidade que o circunda. Nas suas andanças e permanências, os Pontos de Cultura circenses fazem conexões sociais que interferem diretamente no cotidiano de seu entorno e refundam essa arte que mora no seio do imaginário coletivo.

Senhoras e senhores, respeitável público, orgulhosamente apresentamos…
O quintal de Dona Neide de Nazaré transformou-se em lona de circo desde que ela mudou-se com o marido, o Mestre Zezito, para Águas Lindas, cidade próxima a Brasília, em 1991. Mestre Zezito ergueu o Circo Boneco e Riso junto com a comunidade, e, ao partir no ano passado, deixou à Dona Neide a tarefa de administrar o Ponto de Cultura, além, é claro, de ensinar malabarismos, monociclo, perna-de-pau e construção de brinquedos com material reciclável às crianças da cidade.

“Ah, mas o que os meninos mais gostam mesmo é das cenas de palhaço”, diz a mestra Dona Neide, que apresenta números de mágica e ventríloco. O Ponto de Cultura Boneco e Riso se orgulha de ser um centro de referência aos artistas de circo da região, e de abrir sua lona às atividades de circo e teatro que chegam à cidade. Todas as atividades são gratuitas e, segundo Dona Neide, têm sempre grande adesão da população. Nesse final de ano, por exemplo, no seu picadeiro, acontecerá uma das três etapas do “Prêmio Carequinha”, da Cooperativa Brasileira de Teatro.

Do outro lado do país, em Maceió, Alagoas, mais precisamente sobre um morro, atrás de um complexo de mansões com bela vista para o mar e ao lado de um enorme lixão a céu aberto, está a comunidade Vila Mater II, onde acontecem as atividades do Circo-Escola Guerreiros da Vila. É um bairro de 508 famílias, cerca de 280 barracos, que vivem basicamente da “catação” do lixo. O objetivo do projeto é levar a arte do circo às crianças e adolescentes do local, para que encontrem outra forma de sobrevivência que não o lixo.

Mas a dificuldade se apresenta já na primeira fala da coordenadora ao telefone. “Estamos sem lona. Precisamos subir a lona do circo.” Lenora Parrago Couto explica que a estrutura se desgastou devido à maresia e às chuvas do inverno, mas diz que as oficinas de circo e teatro têm se mantido, há um mês, na frente do morro, no salão do clube da OAB/AL, com quem mantém uma parceria.

Segundo Lenora, o ensino das artes do circo contribuiu decisivamente para decréscimo sensível do número de crianças freqüentadoras do lixão. “O problemas são os adolescentes que continuam catando lixo à noite”, diz ela. O Circo-Escola encena espetáculos e ministra aulas de malabares, acrobacia, pirofagia, monociclo, música, teatro e contação de histórias.

Algumas dessas atividades também são realizadas na zona norte de São Paulo pelo Ponto de Cultura Circo Inclusão Cultural, que há três meses ministra aulas a crianças da rede pública de ensino. O coordenador do espaço, Camilo Torres, também diretor do Circo Folias de Picadeiro, acredita que iniciativas como esta são essenciais à perpetuação da técnica tradicional do circo de variedades, que “deve incorporar novas linguagens sem desvirtuar a sua essência”.

A incorporação de novos elementos, resguardando a estética do circo tradicional, também é posição defendida por Junior Perim, coordenador da Escola de Circo Pequeno Tigre, do Rio de Janeiro. Nas quatro modalidades de artes circenses oferecidas (equilibrismo, manipulação de objetos, acrobacias e artes integradas), por meio de 16 técnicas, a Escola atende cerca de 200 pessoas de 7 a 24 anos.

O objetivo do projeto, além de profissionalizar esses estudantes, é resgatar o pensamento no processo tradicional do circo, com inovação da qualidade estética, fusão com elementos urbanos – trazidos pelos próprios participantes – e potencializar a capacidade do circo de “absorver toda a diversidade cultural brasileira”, conforme Perim.

Com essa proposta, a Escola de Circo Pequeno Tigre mantém sua lona há duas temporadas na tradicional Praça XI, no Rio de Janeiro, com o espetáculo “Vida de Artista”, alcançando um público de 200 a 250 pessoas por dia. 70% da renda do espetáculo é voltada ao financiamento dos jovens artistas de circo e 30% aos projetos sociais da Crescer e Viver – entidade proponente do ponto de cultura – no Rio e em São Gonçalo.

Mão no trapézio
No contexto de valorização da atividade circense, ponto de convergência entre os projetos foi o fato de fazerem parte do Programa Cultura Viva, como Pontos de Cultura. A despeito das várias dificuldades enfrentadas, algumas vantagens tornaram-se factíveis com o apoio do Programa, como a questão das possibilidades de articulação e fechamento de parcerias.

Para Junior Perim, por exemplo, ser Ponto de Cultura traz um reconhecimento que amplia a margem de convênios para a manutenção dos projetos. Segundo ele, além desse aspecto, algumas políticas federais contribuíram sobremaneira para o fomento do circo, como o Prêmio Estímulo ao Circo, sedimentado pela Fundação Nacional de Arte (Funarte).

Na mesma linha, Camilo Torres, vice-presidente da Associação Brasileira de Circo, reforça a importância do Prêmio e do Cultura Viva. “O Programa facilita a difusão e a propagação do circo, enquanto linguagem artística e enquanto escola”, diz ele, que também lembra o viés educacional da atividade.

O Circo-Escola Guerreiros da Vila também “deu uma virada”, de acordo com Lenora Couto, quando se tornou Ponto de Cultura em 2004. Com isso, foi possível a estruturação do espaço, com estúdio, equipamentos técnicos, além do próprio recebimento de instrumentos circenses, como os monociclos e cabos de aço.

Em Águas Lindas, o apoio também foi bem-vindo. Dona Neide explica que a montagem de espetáculos em outras cidades, como Brasília, só foram possíveis graças ao aporte destinado pelo Cultura Viva ao Ponto – que contou com a colaboração do Cooperativa Brasileira de Teatro para formatar o projeto, já que Dona Neide assumiu que “tem coisas que a gente não sabe e é melhor falar que não sabe. Eu não sei mexer em computador”.

Acrobacias
Porém, no circo, os números vão da alegria dos palhaços à apreensão dos equilibristas – e, então, o semblante muda com os inúmeros problemas que surgem. Assim, os Pontos sofrem com situações semelhantes, como a falta de verbas e a dificuldade de articulação política do setor.

“Olha, um pãozinho com suco já ajudava bastante”, reclama Dona Neide, que teve o aporte de recursos do Cultura Viva cortado há seis meses, e agora aguarda a liberação prevista para novembro. Para ela, a falta de dinheiro para o “lanche” é um problema sério, pois afasta muitas crianças das atividades circenses, já que a comunidade é extremamente carente.

Para o Ponto de Cultura Guerreiros da Vila, em Maceió, a esse problema somam-se outros da realidade local. Em virtude disso, os recursos advindos do Cultura Viva passaram a não ser suficientes, e mesmo as parcerias firmadas são limitadas frente a problemas de várias naturezas.

Proposto pelo Centro de Educação Ambiental São Bartolomeu (Ceasb), o Ponto já nasceu com o espírito circense intimamente ligado à veia ambiental. Para tanto, mantém um convênio com o Fundo Nacional de Meio Ambiente, que colabora no saneamento do problema do lixão.

Além disso, trabalha a linguagem do circo concomitantemente a outras pautas também caras à comunidade, como a questão da regularização fundiária. A comunidade de Vila Mater II ganhou a terra da prefeitura de Maceió, mas um problema burocrático permitiu o avanço da especulação imobiliária sobre o local. Além disso, há o risco real de retirarem a comunidade local para a construção de um aterro sanitário, o que poderia ferir gravemente o senso de identidade e pertencimento da população.

No mais, o Ponto é profundamente empenhado na erradicação do trabalho infantil na região, onde é alto o índice de crianças catadoras de lixo. Para essa tarefa, os Guerreiros contam com o apoio – insuficiente também – da Unicef. Todos esses problemas são retratados pelos jovens artistas da peça “Mobilizoando”, com que o ponto concorre na Mostra Cultura Viva deste ano.

Picadeiro
Para Camilo Torres, do Circo Inclusão Cultural e Associação Brasileira de Circo, são vários os gargalos que precisam ser solucionados para a melhoria da situação do circo no Brasil. De acordo com ele, a itinerância, a dinâmica nômade, e as distâncias guardadas entre os circos impedem uma articulação mais eficiente entre eles e a unificação das reivindicações. Cenário que interfere , inclusive, na elaboração de uma política pública nacional para o circo.

Na opinião de Junior Perim, da Escola de Circo Pequeno Tigre, existem outras barreiras a serem transpassadas pelo circo que itinera. Uma delas é o diálogo com as prefeituras, que muitas vezes obstam a entrada das companhias. Seria preciso uma capilarização da política de circo, para alcançar a esfera municipal.

De outro lado, há a discussão do mercado cultural do circo. Para Perim, o circo tradicional tem dificuldades naturais de atrair grandes investimentos. Camilo Torres concorda e acrescenta: “mesmo a palavra ‘tradicional’ torna-se quase um empecilho à relação com o mercado”, já que o formato clássico de lona e mastro é bem menos atraente que os grandes espetáculos dos circos contemporâneos, que contam com efeitos e inovações tecnológicas mais convidativos ao grande público.

Torres acredita que há uma “ligeira aura de preconceito” do mercado para com o circo tradicional, e muito por responsabilidade do próprio circo, que não raro tem dificuldades de incorporar elementos mais modernos às produções. Um panorama que, segundo ele, está se transformando.

A Escola de Circo Pequeno Tigre, por exemplo, no espetáculo atual já incorporou conceitos como o de economia criativa e sustentabilidade ao seu processo de produção. Perim acredita que o circo deve repensar esse processo, mantendo todavia suas características tradicionais.

Um terceiro aspecto dessa discussão é a profissionalização do setor, que leva ao mercado artistas repercussores do ofício do circo e colaboradores na consolidação do segmento. Assim, a emancipação dos estudantes de circo é algo levado à risca por todos os projetos, tanto no que diz respeito à seqüência dos estudos quanto na atuação em outros espaços, como escolas, centros culturais e locais públicos.

Guilherme Varella *
* reportagem produzida pelo 100canais, publicada originalmente em s://www.teia2007.org.br/noticias/6504095.


Advogado do IDEC na área de direito autoral e acesso à cultura.

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