Qualquer proposta democrática de alteração de políticas públicas precisa ser precedida de ampla discussão pela sociedade. E essa discussão deve ser pautada em dados confiáveis para que se entenda efetivamente a necessidade de mudança e, caso seja realmente necessária, ter clareza sobre a extensão e rumos dessas transformações. Não é o que se viu com a proposta apresentada pelo Ministério da Cultura – MinC, personificada em seu Ministro – Juca Ferreira – para alterar a “Lei Rouanet”, que é um mecanismo de financiamento de ações culturais a partir de três fontes distintas: recursos públicos (FNC – Fundo Nacional de Cultura), recursos oriundos de incentivo fiscal (Mecenato) e recursos privados (FICART – Fundo de Investimento Cultural e Artístico ).
O primeiro equívoco do MinC foi tratar a Lei Rouanet como se fosse apenas uma lei de incentivos fiscais; o segundo, bem pior, foi propor alteração legislativa sem ter diagnóstico sério sobre como funciona a economia da cultura no Brasil. O MinC não disponibilizou (recuso-me a acreditar que não disponha de tais dados) qual o valor monetário que a Cultura movimenta anualmente no Brasil, assim como não apresentou esses dados por região ou por segmento. Também não apresentou o número de pessoas empregadas no setor, e nem quanto esse setor foi ou poderá ser afetado pela crise mundial que se instalou no quarto trimestre do ano passado, e muito menos elaborou um projeto anticrise. Muito pelo contrário, deixou que, na contramão de outros setores, os impostos para o segmento cultural fossem elevados – e bastante – no final do ano passado.
O caminho escolhido foi o de demonizar a Lei Rouanet. Para justificar esse tipo de campanha, Juca Ferreira lançou mão de alguns dados estatísticos e começou a repeti-los desde meados do ano de 2008, tentando incutir em todos que a Lei Rouanet é muito ruim, tendo em vista que a decisão final de investimento é responsabilidade “apenas e tão somente” do setor de marketing das empresas. Ora, no que se refere aos incentivos fiscais, a lei foi criada justamente com esse viés, ou seja, que as empresas privadas investissem em cultura, mas não se pode esquecer que esses investimentos ocorrem a partir de projetos que possuem a chancela do MinC. No quesito incentivo fiscal a lei tem algumas falhas, mas muito mais ligadas a problemas de gestão do governo do que propriamente à atuação da iniciativa privada, que dentro de uma sociedade capitalista busca comumente o lucro, e isso não deve assustar ninguém. Já nas duas outras pontas, recursos públicos (FNC) e recursos privados (FICART), a Lei Rouanet praticamente nunca funcionou, e isso devido aos problemas de gestão do próprio Ministério.
Pelo visto, em vez de solucionar o problema, mais fácil parece ser demonizar o que funciona, mas que não atende a todos. Apela-se aos que estão alijados da lei e tem-se um exército para atirar pedras, muitos sem saber exatamente em quem e para quê. Vejamos. Inicialmente a proposta foi chamada de “Projeto de Alteração da Lei Rouanet”, mas, depois de ficar patente que revogava expressamente a Lei no 8.313, de 23 de dezembro de 1991, foi rebatizada para “Nova Lei de Fomento à Cultura”. Acontece que, atualmente, qualquer nova lei que crie incentivos fiscais tem de submeter-se à Lei de Diretrizes Orçamentárias, que prevê duração máxima de cinco anos para tais leis.
Com a repercussão de tal fato o MinC soltou em seu site uma nota esclarecendo que “as áreas jurídicas da Casa Civil e Ministério da Cultura, em comum acordo, entenderam que o projeto não cria uma renúncia fiscal nova, mas apenas altera o sistema atualmente existente da chamada Lei Rouanet (Lei nº 8.313/91)”. Ora, como a área jurídica do MinC não é um Tribunal, só há um jeito de a nova lei não ter de submeter-se a LDO: é mudar radicalmente o projeto, que deverá ser uma proposta de alteração da Lei Rouanet, e um projeto desses deverá ter estrutura totalmente diferente daquele que foi temerariamente apresentado e chamado de Programa Nacional de Fomento e Incentivo à Cultura – Profic.
Fica a pergunta: quem, a não ser aquele que pretende acabar com os incentivos fiscais no médio prazo, faria tal tipo de alteração legislativa? Qual o motivo de trocar uma legislação que carreia cerca de um bilhão de reais por ano para o setor cultural, e que pode durar ainda muitos anos, por outra que terá, com certeza, existência limitada? Muito mais lógico seria fazer as alterações necessárias na lei já existente e, desse modo, garantir os benefícios fiscais por tempo indeterminado.
Em vez de abordar pontos cruciais, como a necessidade de mais recursos orçamentários, estabelecer contrapartidas na aprovação de projetos e estimular os projetos duráveis em detrimento de eventos, o projeto apresentado pelo MinC (Profic) caracteriza-se pelo obscurantismo, primeiro por ser apresentado sem base de estudo e de dados que o anteceda, e segundo por não ser um projeto de lei com característica vinculante, deixando toda regulamentação para ser feita a posteriori, de acordo com o bel prazer do gestor de plantão.
Ademais, nos pontos em que realmente deveria trazer mudanças, como o escalonamento de incentivos por região ou por tipo de atividade cultural, que poderia promover as áreas e setores menos privilegiados, a mudança foi irrisória, para não dizer inexistente. Haja vista a proposta de escalonamento de incentivo, que não só reduzirá drasticamente o percentual a ser descontado do imposto de renda, como ficará a critério de uma comissão definir, anualmente, qual será a isenção fiscal. Vale citar a conversa que tive recentemente com um cineasta, que disse que a proposta da nova lei é ótima, mas apenas para eles, cineastas, já que o único setor que fica à margem da proposta do MinC é o do audiovisual, não alterado pelo Profic. Criou até um slogan: invista em cinema, aqui seu investimento é 100%. Detalhe, a Lei do Audiovisual permite abatimento de até 125% no valor investido pelas empresas. Entre mortos e feridos, salva-se apenas o audiovisual.
* Artigo originalmente publicado no jornal Gazeta Mercantil por Fábio Maciel, que é Presidente do Instituto PENSARTE. Professor. Advogado formado pela USP, mestre em filosofia do direito e do Estado, autor e ex-editor jurídico da Editora Saraiva. Também é co-fundador da Coordenadoria de Ruas e Espaços Sociais – CORES e já atuou como produtor cultural.
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